domingo, 9 de dezembro de 2018




Amigos – 17


Há cerca de meio século, certamente já passado, trabalhava na mesma empresa do que eu, um ainda jovem angolano, o motorista, sempre prestável, simpático, com quem foi fácil criar um vínculo, não só de respeito mútuo, por eu ser o “chefe”, mas sobretudo de amizade e entendimento.
Conversávamos, vez por outra íamos tomar uma cerveja juntos, e era impossível não gostar dele.
O Luis Alexandre Neto.
Casado, nasceu-lhe mais um filho, o terceiro, e convidou-me, com a minha mulher, para sermos o padrinho da criança a quem se deu o nome de Alexandre, convite que muito nos sensibilizou e honrou.
Morava no Bairro Prenda, numa casa modesta mas muito arrumada.
Pequena cerimônia na igreja, um simples beberete, uma “festa” sem luxo, mas grande na sua simplicidade.
Não passou muito tempo fui transferido para Moçambique, tendo perdido o contato com essa família.
Quando regressei a Luanda, já depois da revolução, antes de lá sair definitivamente, a cidade vivia um “estado de sítio” extremamente complicado. Ninguém procurava ninguém.
Os vários grupos políticos, sobretudo MPLA e FNLA, guerreavam-se (por cima da nossa casa assobiavam balas, e ouviam-se bazucadas, as entradas nas favelas eram rigorosamente controladas) e só uma vez consegui encontrar o meu compadre quando o fui procurar no trabalho, na mesma empresa em que sempre trabalhou.
Triste, como eu, com a situação, lá me contou que a família, estava toda bem, se alguém pudesse estar bem no meio daquele inferno, e o afilhado, que teria uns dez anos, lá ia estudando e crescendo.
Voltei a Luanda duas vezes em 1991, quando houve uma pequena trégua na guerra entre o MPLA e a UNITA. A empresa onde ele trabalhava, das poucas vezes que lá fui, encontrei a porta fechada. Foi-me impossível saber onde o encontrar, até porque as favelas não tinham nome de ruas, e eu não tinha a quem perguntar por ele.
Só em 2006, quando lá cheguei depois da travessia Rio-Luanda no “Mussulo”, conheci pessoalmente o Manuel de Sousa, amigo via internet desde alguns anos, e foi quem, com os seus conhecimentos e muito trabalho conseguiu saber onde o encontrar. Levou-me por caminhos que só alguém que lá vive teria capacidade de percorrer, perguntando aqui e além, quando começou a ser mais fácil nos orientarem, porque o respeitado “Kota Luis Neto”, vivia naquela área desde sempre.
Eu lembrava-me que a casa, grande para o meio onde se encontrava, ficava numa esquina de duas ruas largas, mas a favela tinha crescido de tal forma que até as ruas foram ocupadas por novas casas pouco mais do que palhoças.
Tivemos que deixar o carro um pouco longe e seguir por vielas onde nalguns lugares não se podiam cruzar duas pessoas. A casa tinha ficado cercada, abafada, por novos moradores.
Basta pensar que em 1975 a população de Luanda, entre a cidade urbanizada, das classes média e alta, e das favelas, teria cerca de 400.000 pessoas. Em 2006 calculava-se, porque nunca se fizera um recenseamento, talvez uns 5 ou 6 milhões!
Finalmente lá chegámos.
Foi um encontro de grande significado! O afilhado, nascido e batizado em 1964 era major do Exército. Que bom. Tinha feito a guerra, foi sendo promovido a Primeiro Sargento e por fim nomeado oficial. Disse ele que major era um posto que ninguém considerava, e que para passar ao grau superior estava a fazer um curso para tenente-coronel, onde então poderia adquirir um estatuto de bem mais alto nível e valor.
O pai, o meu querido e humilde amigo, grande no coração, não estava passando bem.
Caímos nos braços um do outro sem tempo para disfarçar as lágrimas que teimavam em correr-nos pela cara. A Comadre, magrinha, velhotinha como todos nós, chegou mais tarde. Ainda trabalhava, modesto trabalho nos correios, sabendo que tinha a visita do compadre veio correndo. Que abraço bonito! Meu Deus. Perguntou muito por todos os meus, mandou um filho buscar cerveja e refrigerantes e um bolinho!
Sorria com uma transbordante simpatia, ao ver outro velhote que, ela sabia que apesar de tantos anos e tantos milhares de quilômetros de separação, jamais os esqueceu.
Um dos netos, talvez com uns dois anos, sentou-se ao meu colo, muito espantado com a minha barba, passava a mãozinha e sorria, mas não deixou que alguém o tirasse dali!
2006

Os outros filhos presentes, admirados por tão insólita visita, foram buscar um velho álbum de fotografias em que lá estávamos, ainda jovens os três velhotes, e até o pai José Guilherme Pereira Caldas. Era muita emoção junta! Mais ainda por se sentir que talvez, só talvez, fosse esta a última vez que se viam e abraçavam!
No livro “MUSSULO – Um Abraço à Vela”:
“Manuel de Sousa mandou depois para o Brasil o relato do que tinha presenciado: ...lá para o interior do aglomerado de casebres e becos do Bairro do Prenda, um Compadre, o Afilhado, a Mãe e alguns dos filhos do primeiro, que já não revia há muitos anos - aqui houve o contar de inúmeras histórias, revisão de fotos antigas de amigos comuns e de família e algumas lágrimas caídas e sorrisos de alegria expansiva à mistura.

2007

O dia terminado, o sol já escondido atrás da fortaleza de São Miguel, mais uma vez sentado na esplanada do CNL, (o Tio) olhava para aquela cidade que lhe tinha visto nascer tantos filhos, e da qual se estava também a despedir, num atropelo de sentimentos difíceis de explicar. Angola lutara contra o colonialismo durante... quantos anos? Sempre! Mas houve uma época, enquanto a guerra colonial fazia as suas vítimas, que um estreitamento de relações entre as gentes se acentuou. Contra-senso? Talvez. Mas em quantos contra-sensos se tropeça durante a vida para se vir a concluir que são essas as grandes verdades?
Quem viveu Angola intensamente, conheceu o seu interior, contatou com o seu povo, sabe quanto isto é indiscutível.”
E inesquecível.
Ainda nos voltámos a ver no ano seguinte, quando fui novamente a Luanda para lançar o livro. A perna não estava melhor.
E não soube mais daquela família, mesmo tendo pedido notícias, por várias vias, que nunca vieram.
Que saudade!
Como eu faço votos para que tenham saúde e um Santo Natal.

08/12/2018


4 comentários:

  1. Francisco,
    Luanda, em 2006, teria entre 5 M e 5.5 M de almas.
    Actualmente, tem quase 7 M.
    Se nada for feito, e nada está a ser feito, apesar de muita conversa, Luanda será uma megapólis (acima de 10 M) durante a próxima década.
    Qualquer pessoa com olhos de ver percebe que tal é absolutamente incompatível com um mínimo de civilidade urbana (saneamento, etc.).
    Esta bomba demográfica é a maior ameaça que paira sobre Angola.
    A guerra colonial em Angola (e não tanto em Moçambique) teve este inesperado efeito: aproximou ao ponto de tornar amigos duas gerações coevas que se guerrearam. Sou testemunha disso.
    Infelizmente, tal não acontecerá mais nas gerações seguintes.
    Por último, eis um amigo sobre o qual nada sei. Mas posso pedir para se investigar.
    Abraço
    APM

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  2. Tratando-se de um país "socialista", não admira que as legendas das fotos sejam progressistas em 90 anos cada uma delas.
    Abraço

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  3. Como eu gosto de o ler.. Obrigada por tão bonitas histórias Feliz Natal para si, tia Bela e toda a restante família

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