segunda-feira, 23 de outubro de 2017


Mais... soltas

Já contei em diversos outros escritos, impressos ou virtuais, muitas peripécias vividas durante os oito anos em que trabalhei na Cuca. A memória que ainda não falhou de vez (mas sinto aproximar-se esse terrível momento) volta e meia cutuca-me os neurónios e lembro de alguma coisa mais. Só não sei se me estou a repetir, coisa normal na minha juventude, se é assunto novo!
Como escrevi uns quantos livros, metade inéditos e, em mais de dez anos postei no blog mais de 800 – oitocentos – textos, pode ser que em algum deles apareça a mesma história... ou parecida!
1958 - Apesar de ter sido admitido na Cuca para ser cervejeiro na Fábrica de Nova Lisboa, que estava ainda no começo de levantar paredes, entregaram-me um alvará, um galpão (armazém) com duas máquinas dentro, novas, por estrear, e recebi a “ordem”:
- Sabe o que são estas máquinas?
- Sei.
- Pois então nós temos um alvará para fazer rações, e é isso que você vai fazer.
- ?!?!?!?!
Eu nada sabia de vacas, nem de porcos, nem galinhas, a não ser depois de cozinhados, mas estava com a batata quente nas mãos e tive que me virar.
E, sem me preocupar com o Diretor Geral, que só atrapalhava, e mais a equipe burocrática da fábrica que me queria controlar, em alguns meses, tínhamos uma fábrica de rações a funcionar.
Regularmente eu fazia relatórios para os “patrões”, todos em Lisboa, informando da situação da fábrica, vendas, perspectivas, modo como foram calculados os preços de custo e de venda, etc.
Um ano passado desembarca em Luanda todo o Conselho de Administração para festejarem não sei quantos anos da fábrica de cerveja que começara a produzir em 1956, e num dia recebi a “intimação” para no dia seguinte, logo cedo, me apresentar perante toda a “elite patronal”, o Conselho dos “Mais Velhos”, para lhes falar da fábrica das rações!
Lá vou eu. A “assembleia da grana”, todos sentados atrás de uma mesa (como se fosse uma CPI !) e eu sentado numa cadeirinha de “réu” em frente da alta finança.
Sai a primeira pergunta feita pelo decano dos administradores, uma pessoa que aliás recordo com muita simpatia:
- Então como vão as rações? Pergunta concreta e objetiva!
- Eu tenho enviado para Lisboa, para a Administração, relatórios mais ou menos mensais onde coloco sempre o andamento da fábrica como custos, aumento de vendas, ponto de virada (é mais bonito o “turning point”!), e todos os detalhes que julgo de interesse para os senhores analisarem.
- Oooohhh! – Todos se entreolham à procura de alguém que tenha lido os sobreditos relatórios, e só se viram abanos, negativos, de cabeças.
Moral da história: eu tinha estado a escrever “p’ró boneco”, porque ninguém lera nada e, consequentemente, de nada sabiam!
Por dentro, muito ri, e pensei: Já os meti, a todos, no bolso!
Lá contei o que se passava, que tudo corria bem, que tínhamos ultrapassado em vendas o “turning point” não necessitando de mais investimentos, que a perspectiva de crescer era muito positiva, etc.
O Presidente não se conteve, ar feliz, solta esta exclamação para os colegas:
- Que maravilha! Temos uma nova fábrica!
­E eu, de ignoto funcionário, virei quase um herói! Muito cumprimentado! E com direito a melhoria de salário!

Isto animou os acionistas e começaram a pensar em concretizar outros investimentos!
As garrafas, de vidro, para a cerveja, vinham da Companhia Vidreira de Moçambique, de que eram também sócios. Mas havia um custo a suportar com embalagem, transporte e custos alfandegários, que apesar de ser tudo Portugal, nas alfândegas... não era!
Em 1956 haviam já constituído uma sociedade, a VIDRUL, em Angola, com a mesma finalidade.
1959 - Pergunta a um, pergunta a outro e veio a saber-se que na estrada que vai de Luanda para o Cacuaco, nalgum lugar, haveria uma areia de alta qualidade para fazer vidro. Boa sílica.
E o Diretor Geral teve a brilhante ideia de me chamar e mostrar uma carta vinda de Lisboa, dos patrões, para mandar alguém buscar amostras dessa areia, e que, com rapidez as remetesse para Portugal, para análise, porque queriam começar a fabricar garrafas. Não sei se o “sucesso” da fábrica de rações os levou a pensar que eu pudesse ter o mesmo resultado com vidros! Duvido.
- Mas eu não sei nada de areia nem de vidros!
- Não tem que saber: você conhece a estrada para o Cacuaco?
- Muito bem. Passo lá muitas vezes quando vamos à caça!
- Aí a um ou dois quilômetros antes, ou depois (?), há uma curva (creio que para a esquerda!) e do lado direito uma pequena barreira, aí de metro e meio de altura. Você logo vê. É uma areia muito branca. Vá lá e traga um saco cheio dessa areia. Rápido que estão a pedir até para mandar de avião.
- Muito bem.
Um ajudante, uma enxada e uma pá, dois sacos, e ali vamos nós feitos turistas à procurar da areia branca, mais ou menos ali, ao pé duma curva (tinha várias)... a caminho do Cacuaco, onde normalmente parava só para comer “chocos en su tinta, mexilhões e camarão e beber umas belas Cucas”.
Acabámos por ver alguma coisa que se parecia com o que estávamos procurando, saí do carro, ar de profundo entendedor geológico, começo a apalpar aquelas terras brancas, e conclui cientificamente:
- Deve ser isto!
O que não se via era grande extensão desse areal, o que pressupunha uma reduzida garrafaria, mas, quem sabe?, talvez escavando, ali estaria a mina.
Enchemos os dois sacos pela metade, porque pesavam p’ra... e voltámos à fábrica.
-Pronto. Aqui tem. Era isto que queriam?
O diretor, engenheiro geógrafo, também sabia tanto de areias como eu, mas disse logo:
- Isto mesmo. Vou mandar embalar e enviar para Lisboa, de avião.
Deve ter pago uma nota alta porque areia, e boa como aquela era, pesava bem.
Eu esqueci as areias.
Ano e meio depois vou a Lisboa, passo no gabinete de um dos administradores e vejo, lá, num canto, encostadinhos e tranquilos, os dois sacos!
- O que é aquilo?
- A areia que você mandou!
 Corri como um desalmado, catei a areia, nesse dia foi mandada de avião e, um ano e meio depois a areia jazia, intocada, talvez até esquecida, num canto.
Era assim.
No site da VIDRUL, implantada no Cacuaco (!) diz que a Companhia foi fundada em 1956. Talvez. Em 1959 procuravam a areia. Em 1961 a areia jazia quieta dentro dos sacos. Em 1965 eu saí da Cuca e... nada mais soube da fábrica, nem de areias, nem de garrafas!
Hoje é uma empresa importante. E parece que ninguém sabe, com exatidão, quando começou a produzir garrafas! Só sabem que a sociedade foi constituída em 1956!

1961 – Sou mandado para França fazer uma série de estágios, começando pelo CEO – Centre d’Études et d’Organisation – em Versailles, onde me apresentei no dia 2 de Janeiro, às 08H25M, antes daquilo abrir.
Às 08H35M apareceu o diretor, desculpou-se do “atraso” (!), muito atencioso e objetivo, cujo nome, infelizmente já esqueci, que sabia da minha chegada e, depois dos usuais cumprimentos e mútuas cortesias, atira-me a primeira pergunta (em francês, como é de supor!):
- Então o que é que você vem estudar?
- Não tenho a mínima ideia! Simplesmente recebi instruções para me apresentar aqui, hoje às 08H30M, mas sem mais conversa.
- Bom. Vou então mandar um telegrama para Lisboa para eles definirem o seu programa de estudos.
- Nem pense nisso. Vamos ficar os dois aqui sentados, olhando para a cara um do outro, no mínimo uns meses ou uns anos e a resposta, nem nessa altura deve vir!
- ?!?!?!?!
- O “big-chefe” disse-me que eu vinha fazer uma série de estudos e estágios e se no fim lhe dissessem que eu era “suficientemente esperto e capaz” iria depois montar um serviço de vendas da companhia, que até hoje se limita a vender a quem lá chega com dinheiro e um caminhão para carregar a cerveja. Além disso eu criei do zero uma fábrica de rações, que vai muito bem, e penso que de rações para gado vocês aqui nada sabem, portanto não será sobre este tema que vamos discutir.
- Tem razão. De rações nada sabemos. Então o que sugere que façamos?
- Primeiro partimos do princípio que eu não sou tão estúpido assim! Fundamental. Neste caso vamos discutir entre nós o que acharmos que mais interesse tem na montagem dum serviço comercial, desde o zero: instruções a vendedores e inspetores de vendas, pesquisa de mercado, objetivos, estatísticas, etc. Depois então manda-se esse plano de estudos para Lisboa que eles vão ficar muito contentes, mesmo sem o lerem!
E assim foi. O primeiro dia foi passado com o “cardápio” na mão a escolher temas, definir horários, porque para cada tema teria um professor especializado e era necessário encaixar a disponibilidade deles com o meu programa.
Correu muito bem. Dois meses e meio de muito estudo. Creio que mandaram dizer que eu não era aquele cretino, porque ao regressar a Angola, fui criar o tal serviço de vendas, relações públicas, etc.

Como eram “rápidos” no gatilho aqueles meus administradores! As cervejas davam muito, muito dinheiro; preocuparem-se para que?

19/10/2017


3 comentários:

  1. Senhor Francisco Gomes Amorim:

    Os números sobre a produção de petróleo de Angola
    que o senhor apresenta no seu blogue não coincidem
    minimamente com os que aparecem em publicações conceituadas, tais como a BP Statistical Review of
    World Energy e a Revista Mensal da Energia do USA
    Department of Energy/Energy Information Administration
    (DOE/EIA). Não gosta dos americanos? Pois são eles, através
    de empresas petrolíferas como a Chevron/Texaco, a Exxon/Mobil e a Conoco/Philips, a par dos franceses da Total, dos ingleses da British Petroleum (BP), dos brasileiros da Petrobras, dos italianos da ENI, dos dinamarqueses da Maersk, dos noruegueses da Statoil, dos espanhóis da Repsol, da Galp Energia de Portugal e de uma chusma de empresas petrolíferas ditas "independentes" que exploram e produzem o petróleo de Angola, atualmente apenas no offshore, porque o onshore já se esgotou há muito tempo (offshore de águas rasas - shallow waters - offshore profundo e offshore ultra profundo) enquanto a SONANGOL angolana se comporta como uma mera gestora de contratos petrolíferos. E é o dinheiro proveniente do
    petróleo que sustenta o regime angolano.


    Sugiro-lhe que, antes de voltar a publicar na Internet mais textos sobre o petróleo, consulte os seguintes sites:

    www.eia.gov/mer - site da USA Energy Information Administration (EIA).
    www.opec.org - site da OPEP, à qual Angola pertence desde 2007.

    e que faça o download da revista anual (sai sempre em Junho) BP Statistical Review of World Energy. Nas publicações técnicas da EIA, da OPEP e da BP há números fiáveis e atualizados sobre a produção de petróleo de todos os países produtores do Mundo, sobre o preço do petróleo desde os anos 1960, sobre o impacto ambiental da indústria do petróleo, sobre a refinação de petróleo e a comercialização de produtos petrolíferos e outros temas relacionados com a indústria do petróleo.


    Engo Fernando Justino

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  2. Meu amigo engenheiro
    Não sei a que se refere no seu comentário porque neste texto não há qualquer menção à produção de petróleo. Presumo que se tenha enganado.
    A propósito: pergunta se eu não gosto de americanos? Sinceramente não são os meus preferidos. Prefiro os angolanos.

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  3. Sr. Francisco Amorim
    Relativamente à Vidrul, a verdade é que os registos desapareceram e poucas pessoas conhecem as reais datas de arranque da fábrica. No entanto, hoje mesmo, estive a conversar com um dos trabalhadores mais antigos desta fábrica que começou a trabalhar a 28 de Dezembro de 1964 (dados confirmados pela ficha de trabalhador que foi encontrada). Começou como Ajudante de Maquinista da máquina de garrafas. Em Dezembro de 1964 havia na Vidrul uma máquina de quatro secções que fazia garrafas uma máquina que fabricava copos e ainda uma unidade que fazia pequenos mosaicos para revestimento de paredes.
    Sempre que encontrar mais informação sobre a Vidrul, não hesitarei em partilha-la.
    Carlos Martins

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