segunda-feira, 16 de outubro de 2017



O Brasil é, sobretudo, um país de contrastes. Da Amazônia à Caatinga, das enormes capitais às mais humildes localidades, de rios supercaudalosos a regiões onde não chove, e quando chove é uma vez em cada sete anos, já não falando nos milionários e nas favelas, na riqueza e na pobreza, flagrantes.
Mais de oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados de superfície, o terceiro ou quarto produtor mundial de alimentos, mais de duzentos milhões de habitantes, onde apesar dos assassinatos, corrupção, banditismo/política, a esmagadora maioria das gentes são de uma gentileza e carinho que não se encontra em outro país, parece que teria tudo, mesmo tudo, para ser o paraíso terreal.
Mas...
Eu estou cansado. Todos estamos cansados de assistir, permanentemente, ao descaso, à impunidade, ao jeitinho corrupto, a ver sumir pelos esgotos dos bolsos dos governantes a riqueza que a população, sofridamente produz, sem que se consiga ver uma luz, uma luzinha, lá......... lá no fim do túnel!
Os jovens que não vêm qualquer futuro a prazo mediano, vão ou querem ir embora, os institutos de investigação estão sem verbas e os cientistas abandonam o país, as universidades em greve porque não têm dinheiro para pagar aos funcionários, nem sequer a conta da luz, a insegurança obriga a fecharem, quase diariamente restaurantes e bares que estavam abertos à noite, a cada quinze segundos um celular é roubado e logo aparece à venda nas cracolândias e nalguns camelôs, cargas e cargas de caminhões são roubadas (no Estado do Rio a média, este ano é de 28 cargas roubadas POR DIA !!!) e a mercadoria logo aparece à venda em lojas suspeitas e vendedores ambulantes, enfim um desregramento, um descaso, uma tristeza sem fim.
E todos, todos, estamos cansados, estamos fartos disto.
Ainda há quem julgue que terá sido De Gaulle que disse que o Brasil não é um país sério ! Há dias escrevi sobre isto. Não foi ele, mas, ao tempo, o Embaixador do Brasil em Paris, Carlos Alves de Souza (1901-1990).


Quase nada a Wikipédia nos diz sobre este senhor. É pena.
Procurei e encontrei, com facilidade, usado, o livro que ele escreveu, quase dezoito anos depois de se ter aposentado em 1961, «um embaixador em tempos de crise», que retrata um pouco do que era o Brasil entre os anos 20 e 60, do século passado.
Muito bem escrito, por um homem extremamente culto e educado, que viveu momentos importantes na história da Europa e do Mundo, de caráter impecável, a sua leitura leva-nos do riso à indignação em poucas linhas.
O descalabro dos serviços públicos no Brasil, o infernal tráfico de influências, o desbarato das finanças públicas, o descaso do Itamaraty perante problemas cruciais, a negligência dos mesmo serviços que não respondiam a assuntos angustiantes como, por exemplo, quando o Embaixador telegrafou de Belgrado informando dia e hora em que a Alemanha ia invadir a Polônia, dão um retrato que parece sair quase dos tempos das capitanias quando um assunto era enviado à corte, em Lisboa e, quando havia boa vontade e bons ministros, a resposta voltava ao Brasil largos meses ou anos depois... quando...
E a correspondência que chegava às Embaixadas, com um ou mais meses de atraso, era toda censurada pelo DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda - órgão de propaganda no governo Getúlio Vargas.
A certa altura, em 1937, depois da Revolução de 1932, o Embaixador escreve: «conclui que liberdade e democracia no Brasil eram utopia e não valia a pena fazer sacrifícios inúteis».
Mais adiante, depois de relatar um curioso caso em Belgrado, sobre passaportes, diz que hoje, 1977, « está tudo facilitado: basta a declaração de um diplomata que é casado com fulana de tal, sem apresentar qualquer quer certidão, e o Itamaraty manda passar passaporte diplomático. Acontece que há (ou havia?) casos em que um funcionário aparecia casado com duas ou mais esposas. »
(Ainda hoje não estamos muito longe disso: o ex-presidente, agora oficialmente bandido, mandou passar passaportes diplomáticos a toda a família, e apesar de ter deixado a presidência há dez anos, alguns continuam a usufruir dessa regalia. E muitos outros comparsas.)
No fim da II Guerra, o Brasil tinha direito a indenizações. Além das muitas vidas humanas que se perderam, teve 33 navios afundados por submarinos alemães.
Em 1942 «o Almirante Ingram, Comandante da Esquadra Americana do Atlântico Sul, solicitou ao Governo brasileiro quais as categorias de navios que precisávamos. O assunto foi levado ao Presidente (Vargas) que pediu ao Ministro da Marinha, que consultou o Estado Maior da Armada, que consultou o Almirantado, etc. Ficámos na eterna discussão se deveríamos pedir destroiers, scouts, encouraçados ou submarinos. O tempo foi correndo e nenhuma resposta. Chegou o fim da guerra e o Brasil jamais enviou a resposta solicitada! »
Em 1945, o Brasil tinha um bom saldo em dólares nos Estados Unidos. Quando o Embaixador foi a Nova Iorque tomou conhecimento «de um tremendo escândalo na venda de automóveis, novos e velhos para o Brasil, que por ter pouco combustível tinha pouquíssimos carros. Os automóveis eram muito baratos nos Estados Unidos e caríssimos no Brasil. E assim desapareceu o saldo em dólares, que o Brasil possuía nos Estados Unidos, única vantagem de ordem material que o nosso país havia obtido pela sua participação na Segunda Guerra Mundial. »
1946-47 – Embaixador em Havana. «Naquela época eu julgava que todos pagavam, normalmente, as passagens nos aviões da Panair do Brasil. Puro engano. Pagar excesso de bagagem era considerado humilhação, e muito poucos pagavam a passagem integral. Um dia assisti a uma discussão curiosa: um multimilionário reclamava por estar a pagar pelo excesso de bagagem e ameaçava o agente da Panair de demissão. O agente foi demitido. Um dos meus secretários disse-me, num voo a caminho do Brasil, que eu era a única pessoa a bordo que tinha pago a passagem integral. A Panair só não faliu antes porque um dos maiores acionistas era a Companhia de Seguros Ajax, que fora agraciada com o monopólio de todos os aviões e autarquias. Assim, concedia passagens e até hospedagem nos hotéis aos protegidos do Governo. Esse escândalo era sabido de todos que viviam no exterior. »
(E hoje... como é?)
Há um mês em 12 de Setembro, escrevi um apontamento sobre a célebre frase atribuída a De Gaulle, mas agora, com o livro do Embaixador apareceram mais detalhes que fazem da Guerra da Lagosta, uma página, não épica mas hípica, aliás asinina, “guerra” tão caricata que até o menestrel, Ari Toledo fez chalaça com isso, “que barcos franceses, de volta à França levavam lagosta que lá no France todo o mundo gosta”!
Nada mais ridículo do que a chamada "guerra da lagosta", que apenas demonstrou a falta de entrosamento da Secretaria de Estado com as Embaixadas e a leviandade dos nossos governantes. Tudo se passou de modo completamente diverso do que os jornais publicaram.
O Sr. Pleven, antigo Presidente do Conselho da França, amigo e correligionário do General De Gaulle, presidia a maior companhia de pesca da Bretanha. Estava escasseando a lagosta na costa francesa, e os navios iniciaram a pesca na África, tendo Dakar como base. No fim de algum tempo, acharam que a lagosta também era pouca na costa da África. Pleven pediu ao Quai d'Orsay para telegrafar ao Embaixador da França no Brasil, a fim de solicitar ao Governo brasi­leiro licença para pescarem na costa nordeste do Brasil. O Embaixador obteve uma audiência com o Presidente João Goulart, que deu instruções às autoridades competentes para que os pesqueiros franceses iniciassem a pesca. A Embaixada do Brasil nunca teve a menor informação da gestão do Embaixador da França, e do Brasil tampouco mandaram à Missão Diplomática em Paris uma só pala­vra sobre esse assunto. Como tudo foi tratado no Palácio do Planalto, tenho dúvidas de ter sido o Itamaraty informado dessa permissão.
Os pesqueiros franceses começaram a trabalhar e transportavam a lagosta para Dakar, de onde eram expedidas por avião para Paris.
Anual­mente, em Genebra, se reúne a Conferência dos Direitos do Mar e o representante do Brasil era sempre o Embaixador Gilberto Amado. Na última Reunião, mais uma vez, o Delegado do Brasil defendeu a tese de que deveria continuar a ser mantido o mar territorial de 12 milhas. Outros países queriam estendê-lo para 50 e até 100 milhas, mas o Delegado brasileiro manteve firme sua posição. Nada ficou resolvido; não foi as­sinado nenhum tratado e tudo ficou adiado para a próxima Conferência anual. Os franceses estavam pescando a 30 milhas da costa brasileira, onde constataram haver maior quantidade de lagostas. Tudo isso ignorava a Embaixada do Brasil em Paris.
Um dia foi procurar João Goulart o Senador Barros de Carvalho, amigo do Presidente, para informar-lhe que as companhias brasileiras de pesca, com sede em Recife, estavam indig­nadas com a licença dada aos franceses pelo Governo. Estavam elas perdendo cerca de quatro milhões de dólares anuais com essa pesca de lagosta pelos pesqueiros da Bretanha. O Presidente, provavelmente sem pensar nas consequências do seu ato, com a mesma ligeireza que dera autorização, a revogou. O Ministro da Marinha, Almirante Suzano reuniu a imprensa e solenemente anunciou que o serviço secreto da Armada obtivera informação segura que o porta-aviões Clemenceau, a mais poderosa embarcação da Marinha de Guerra francesa, escoltado por dois destroiers e uma fragata, navegava para o Brasil. Suzano, pavio curto, mandou a esquadra sair para o mar, “pronta para o que der e vier”, e sequestrou e levou para Recife dois navios pesqueiros franceses, já carregados de lagostas. A Embaixada em Paris continuava tudo ig­norando.
Da França não veio nada.
Certo dia, o Embaixador Chabornel, Secretário-Geral do Ministério, pedia-me para ir vê-lo e, pela primeira vez, soube de todas essas gestões de Pleven e do sequestro dos dois pesqueiros. Pedia-me que telegrafasse ao Governo brasileiro solicitando a liberação imediata das embarcações e a continuação da pesca, autorizada pessoalmente pelo Presidente da República, na presença do Embaixador da França. Tele­grafei imediatamente ao Itamaraty. Pelos jornais franceses soube que ti­nham sido liberados os pesqueiros, mas o Itamaraty não respondeu ao meu telegrama. O Embaixador Roché confiou-me que o Governo francês não se conformava com o sequestro, que poderia ter consequên­cias graves. A permanência, em Recife, de navios de guerra brasileiros patrulhando a costa, agravava a situação. No dia seguinte, fui novamente chamado pelo Secretário-Geral do Quai d'Orsay, que me comunicou haver o Governo francês mandado uma canhoneira da Marinha de Guerra para proteger os pesqueiros franceses, que estavam a cerca de 40 milhas da costa brasileira, e, consequentemente, fora das nossas águas territoriais. Te­legrafei ao Itamaraty e continuei sem resposta. Da minha casa, resolvi telefonar ao Chanceler Araújo Castro, que disse-me haver conversado com o Presidente. Jango considerava o assunto sem importância e narrou-lhe a conversa com o Senador Barros Carvalho. Disse-lhe mais que o sequestro fora coisa do Almirante Suzano, Ministro da Marinha. O Araújo Castro não conseguiu convencer o Dr. João Goulart de que o caso poderia tornar-se sério e pediu-me para reforçar seu ponto de vista, telefonando diretamente para o Presidente da República. Foi o que fiz. Disse ao Presidente que eu conhecia bem o Suzano, desde o meu tempo de Marinha, que, apesar de ser considerado um bom oficial, sempre foi atrabiliário. Retrucou-me Jango que o Araújo Castro e eu estávamos "levando a sério um caso sem a menor importância".
Os jornais franceses não mais falaram no assunto, porém a imprensa brasileira, com rara infelicidade, fazia comentários inverídicos sobre o problema e diziam que a Marinha brasileira tinha dado uma boa lição aos franceses.
Certo dia, quando os jornais franceses não mais falavam sobre a "guerra da lagosta", a Secretaria da Presidência da República comuni­cou-me que o General De Gaulle desejava ver-me no dia seguinte, à tarde. Eu sabia o que me esperava. Ia advogar uma causa ingrata, pois sempre achei que a França, estava coberta de razões e o incidente tinha sido envenenado pela imprensa brasileira. Aliás, recordo-me que no auge da crise, fui procurado pelo Sr. Luiz Edgar de Andrade, correspondente do "Jornal do Brasil" em Paris, com quem mantinha boas relações. Neguei-me a dar-lhe uma entrevista, pois havia lido no seu conceituado jornal notícias inteiramente inverídicas. No dia seguinte, fui avistar-me com o General. Começou fazendo um histórico sobre o caso da la­gosta, a permissão do Presidente Goulart para a pesca, o sequestro dos pesqueiros, as notícias inverídicas da imprensa brasileira e as críticas a ele e à França. Era sabido que o Presidente De Gaulle tinha o hábito de misturar sua extraordinária e real personalidade com a própria França. Tudo que ele disse era a verdade nua e crua. Argumentos sérios para responder, eu não os tinha e peguei-me numa falha cometida pelo Governo francês. Disse-lhe que o Governo brasileiro havia ficado chocado com a ida de um navio de guerra para proteger os pesqueiros. Respondeu-me, prontamente, que a canhoneira francesa tinha ficado, ao lado dos pes­queiros, a 40 milhas da costa brasileira, e que as águas territoriais continua­vam a ser de 12 milhas, tese aliás defendida pelo Delegado do Brasil em Genebra. Finalmente, o General pediu-me transmitir ao meu Governo nossa conversa. Assediado pela imprensa e correspondentes dos jornais brasileiros, respondi que nada tinha a declarar, e se quisessem informações solicitas­sem à Secretaria da Presidência da República. Telegrafei ao Itamaraty e, pouco mais tarde, compareci à recepção que oferecia na sua residência o Presidente da Assembleia Nacional, Sr. Jacques Chaban-Delmas. Repentinamente, surgiu diante de mim o jornalista Luiz Edgar de Andrade. Insistiu para que eu lhe dissesse algo sobre minha entrevista com o General De Gaulle. Respondi-lhe que não daria nenhuma entrevista. Mas, não poderia deixar de ter uma conversa amistosa com uma pessoa por quem sempre tive a maior consideração. Falei-lhe sobre o tal samba carnavalesco, "a Lagosta é nossa", as caricaturas do Presidente De Gaulle e terminei a conversa di­zendo: Luiz Edgard, "le Brésil n'est pas un pays sérieux". Provavelmente, ele telegrafou ao Brasil não deixando claro se a frase era minha ou do General De Gaulle, com quem eu me avistara poucas horas. Luiz Edgar é um homem correto, e estou certo de que o seu telex ao jornal não teve intuitos sensacionalistas. Mas, a frase "pegou". É evidente que, sendo hóspede do General De Gaulle, homem difícil, porém muito bem educado, ele, pela sua formação e tem­peramento, não pronunciaria frase tão francamente inamistosa em relação ao país do Chefe da Missão que ele mandara chamar. Eu pronunciei essa frase numa conversa informal com uma pessoa das minhas relações.
Muitas outras histórias, interessantes e ridículas conta o Embaixador Carlos de Souza, que termina o seu livro com este desabafo:
Na minha vivência de mais de 50 anos nos meios militares, diplomáticos, políticos e sociais, cheguei a duas conclusões melancólicas:
“A primeira é a de que a argila da qual foi feito o brasileiro, não é de boa qualidade. E a outra, em que foi acertada a minha frase, atribuída ao General De Gaulle:
"le Brésil n'est pas un pays sérieux".

Com esta nojeira a que estamos a assistir na política, na justiça, na segurança, etc., parece que infelizmente o Embaixador continua cheio de razão.


13-out-17

2 comentários:

  1. Francisco, como diria Manuel laranjeira, também isto dá vontade de morrer. Obrigado pela crónica deliciosa, malgré tout!

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  2. Francisco, no frigir dos ovos o Brasil é um país maravilhoso. O mundo é conturbado, é só ler as notícias internacionais, estamos longe dos primeiros do ranking (as Dinamarcas) mas também estamos longe dos últimos (os Malawis). O fato é que somos bipolares, quando a economia cresce, achamos aqui o paraíso, quando cai, achamos o inferno. O fato é que a economia é cíclica e haverá de subir de novo e aí todo mundo há de achar o Brasil o melhor país do mundo novamente. E o fato de que a corrupção agora é revelada e punida deve ser visto como um avanço, não um retrocesso. Retrocesso era varrer tudo pra baixo do tapete.

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