quinta-feira, 2 de março de 2017


« Camões em Moçambique »

Encontrar, aliás, ter visto Camões no “Encontro de Escritores”, foi algo que só um sonho, profundo, poderia proporcionar. Falar com ele é que é sempre mais difícil, e isso nem sonhar!
No Encontro foi ouvido Garcia de Orta insinuar a Camões que a Ilha dos Amores não deveria ser a tão idílica ilha, revestida de floresta onde nesta frescura desembarcaram, e onde andavam as belas musas, como incautas... e se fingiam seguir os animais que não seguiam, mas, seria a Ilha de Moçambique.
Na sua primeira passagem, a caminho da Índia ele nos deixou algumas estâncias (LIV e LVI) que se enquadram bem no resto do texto:

“Esta ilha pequena, que habitamos,
É em toda esta terra certa escala
De todos os que as ondas navegamos,
De Quíloa, de Mombaça e de Sofala,
E, por ser necessária, procuramos,
Com próprios da terra, de habitá-la;
E, porque enfim vos notifique,
Chama-se a pequena ilha – Moçambique.

Isto dizendo, o mouro se tornou
A seus bateis com toda a companhia;
Do capitão e gente se apartou
Com mostras de devida cortesia.
Nisto, Febo nas águas encerrou
Co carro de cristal o claro dia,
Dando cargo à Irmã que alumiasse
O largo mundo, enquanto repousasse.”

E sobre a “Ilha dos Amores”, corroborando Garcia de Orta, podemos ajudar com este pequeno poema de Alberto de Lacerda, nascido nesta Ilha:
Ó corpos dados com melodia
As melodias do meu amor!
Ó pretas lindas! Ponta da Ilha!
Vestem soberbos panos de cor.
Deles se despem com doçura,
Vénus despida do próprio mar,
É com doçura que negras, lindas,
Desaparecem no meu calor.

Mal sabia Camões que depois de quinze anos sofridos na Índia, enganado, passaria nesta Ilha dois anos, quando pensava regressar a Portugal, à espera de quem fizesse a esmola de lhe pagar a alimentação na viagem para Portugal.
Dois anos, sofridos, vendo Febo e a Irmã, sempre se alterando, sem se poder livrar daquela visão, certamente bonita, mas vista por quem anseia dali sair...
Camões, um pinga-amor, um rabo de saias, ninguém terá muitas dúvidas que a coberto da complacência da Irmã, terá consolado parte das suas mágoas com

 Os corpos dados com melodia
As melodias do meu amor!
Ó pretas lindas! Ponta da Ilha!

Mas queixava-se com os seus papeis, a sua escrita:

Onde acharei lugar tão apartado,
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura;
Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente;

Que, pois a minha pena é sem medida,
Ali triste serei em dias ledos,
E dias tristes me farão contente.

É com base neste soneto, por causa “das entranhas dos penedos”, que o Visconde de Juromenha “decidiu” que Camões tinha estado em Macau, assim como o “matou” em Alcácer Quibir ao lado de Dom Sebastião.
Naquele tempo era fácil conseguir passagem de Lisboa para a Índia, mas a volta era difícil e cara. Os navios saiam da Índia sofregamente carregados de especiarias, de baús e das riquezas que alguns por lá acumularam, a maioria das quais ficou espalhada no fundo dos mares ou terá servido de enfeites aos nativos da Costa de Natal.
Dois terços dos navios que saíam de Portugal para a Índia não regressaram!
Camões, que sempre fora “o cavaleiro andante do Sonho e dos grandes arrebatamentos”, como lhe chamou Hernani Cidade, estava agora prisioneiro da sua miséria financeira.
Em 1567 Pero Barreto, sobrinho do Vice-Rei Dom Francisco Barreto, que da Índia passava a capitão de Sofala, onde ficaria nesse comando a viver na Ilha, ofereceu-se para levar Camões até Moçambique.
Durante os primeiros tempos Camões terá vivido “numa formosa torre de dois sobrados, (junto à fortaleza velha, onde hoje se encontra o Palácio dos Governadores) com aposentos onde vivia o Feitor e o Alcaide-Mor”, agasalhado por Pedro Barreto.
Diogo do Couto amigo e companheiro de estudo do Poeta, e no serviço na Índia, refere que houve uma questão entre Pero Barreto e Camões devido ao temperamento impulsivo deste, o que levou o Poeta a procurar outro abrigo, bem mais modesto. Pior, sem dinheiro para seu sustento, passou a viver conforme pôde, com o auxílio de alguns amigos que ali ainda o estimavam e, em 1569 dava os últimos retoques nos Lusíadas.
É sabido também ter sido Camões vítima da inveja de alguns e da mediocridade de muitos, pois ali já existiam muitos despeitados e inúteis.”
Os navios que passavam não traziam nenhum amigo ou conhecido de Camões que pagasse o seu sustento durante a viagem para a Pátria.
Diz ainda Diogo do Couto “que nesse mesmo inverno (1569) foi escrevendo muito, em um livro que ia fazendo, que se intitulava “Parnaso”, livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe furtaram e nunca pude saber dele no Reino, por muito que o inquiri, e foi furto notável.”
Finalmente, terminava o ano de 1569, Diogo do Couto e outros amigos, no regresso a Portugal, foram obrigados a arribar a Moçambique, onde o mau tempo os reteve, e onde encontraram Luis de Camões na miséria, sofrendo as maiores privações, e todos se cotizaram para lhe dar roupas que tanto precisava e lhe pagarem o sustento durante a viagem até Lisboa, onde finalmente chegou na primavera de 1570.
Saíra de Lisboa em 1553 e regressava ao fim de dezessete anos!
Curioso notar que nesse mesmo ano de 1569 regressou também Pedro Barreto. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira diz que Pedro Barreto “De regresso a Portugal, trouxe do Oriente o poeta Luiz de Camões”.  Em quem confiar? Diogo do Couto não parece ter sido mentiroso, e o enciclopedista limitou-se a se informar que ambos tinham viajado no mesmo ano, mas... terá penetrado o suficiente nas “Décadas” ou no ”Diálogo do Soldado Prático!
Terá Camões sido desterrado da Índia, no tempo de Dom Francisco Barreto em virtude da publicação das redondilhas “Disparates da Índia” e de uma sátira em prosa às festas de Goa, comemorativas da nomeação de Barreto para governador?
O símbolo máximo da língua portuguesa, a quem o jovem rei Dom Sebastião concedeu uma pequena pensão a "Luís de Camões, cavaleiro fidalgo de minha Casa", teve uma vida sofrida, e ainda hoje ninguém sabe onde foram parar os seus restos mortais.
O túmulo no Mosteiro dos Jerónimos, como se sabe, é uma farsa.
Como muitas outras.
Ainda de Alberto de Lacerda, três linhas dão-nos uma ideia desta Ilha:

“Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam
No meio da rua como peregrinos
Dum mundo mais aberto e cristalino

E o que aconteceu ao seu dedicado criado Jau? Quem lhe pagou a viagem para Portugal? Pobre Jau que tanto se dedicou e tão esquecido ficou!

25/01/2017


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