segunda-feira, 13 de março de 2017



TROPAS NEGRAS

Este texto foi retirado do livro com o título acima, escrito em 1926 pelo major Francisco de Aragão, nascido em Pangim, Índia, de famílias açoreanas, que combateu no Sul de Angola, em Naulila em 1914, onde foi aprisionado, e no norte de Moçambique em 1917/18, sempre enfrentando os bem treinados, comandados e municiados alemães.
Neste livro mostra um profundo conhecimento e sentido de organização das tropas “coloniais”, a que o govêrno nunca deu seguimento, e onde sobressai a proposta de não existirem dois exércitos – metropolitano e colonial – mas um único, com soldados de ambos os lados, todos usufruindo das mesmas condições e obrigações.
O livro que enaltece os soldados africanos, começa por citar alguns que foram louvados e condecorados.
Vamos ao livro:

Ali, 1º cabo da 24.ª companhia expedicionária, louvado
 “pela coragem, sangue frio e valentia que revelou durante o combate de 22-11-1916, na defesa da água da ribeira de Nevala. - Tendo sido nomeado para ir à posição ocupada pela companhia buscar munições, mostrou extraordinária coragem transportando um cunhete através de terreno batido por uma me­tralhadora que procurava atingi-lo, transmi­tindo ao seu comandante de pelotão, em voz baixa, para que as demais praças o não pu­dessem ouvir, a informação, que recebera do Comandante da companhia, de que não havia mais munições”».
Promovido por distinção, medalha de valor militar, Cruz de Guerra.

Almério, 1° cabo indígena da 4.ªda Beira, louvado
«pela muita coragem e sangue frio que de­monstrou no combate de Negomano no dia 35-11-017 e ainda porque, debaixo de fogo intenso das metralhadoras inimigas, ajudou a transportar para a rectaguarda o major Tei­xeira Pinto, quando este caiu ferido, voltando em seguida a ocupar o seu logar na linha de fogo».
Cruz de Guerra

Tear, 1.° cabo indígena do Corpo de Polícia do Niassa, louvado       
«pela extraordinária valentia e arrojo com que, na manha de 8-12-1917 na Serra Mkula, à frente de 6 praças indígenas, se lançou ao ataque do inimigo que ocupava a água com infantaria e metralhadoras, só retirando para se remuniciar e transportar um ferido, voltando novamente ao ataque, sem para isso ter rece­bido qualquer ordem, mantendo-se na frente até ao assalto do inimigo”
Promovido por distinção — Cruz de Guerra.

Tabu, soldado indígena da 39.ª Companhia Expedi­cionária, louvado
“porque no combate de Nhamacurra, despre­zando o perigo, esteve sempre na posição de combate a peito descoberto, fazendo fogo inin­terruptamente sobre os alemães que via através o cisal, indicando aos seus camaradas os pontos que deviam visar, mostrando assim muita coragem, sangue frio e perfeita compreensão dos seus deveres».
Promovido por distinçao – Cruz de Guerra.

E segue o livro...

Quando no último período da guerra, em Moçambique, acabámos por nos convencer da impossibilidade de continuar a luta com tropas europeias, improvisámos, à pressa, numerosas com­panhias indígenas que a urgência de man­ter na frente, cada vez mais extensa, efectivos numerosos, nos obrigou a instruir em condições precárias e deficientes.
Só forçados por uma realidade que não perdoa nos resignáramos a fazê-lo.
Mas, nem a preparação que lhes demos foi cuidada, porque não tínhamos previsto com antecedência a necessidade do seu em­prego, nem os chefes e graduados puseram grande confiança nas suas qualidades: uns supunham-nas incapazes de se defrontarem com os askaris inimigos (os soldados africanos do Tanganika), aguerridos por três anos de luta e de êxitos; receavam aumentar sensivelmente os efectivos dessas tropas — não fosse voltar-se contra nós o instrumento de força que criávamos.                
Todos cometeram uma grave injustiça atribuindo às tropas de cor culpas que nunca lhes pertenceram: durante quatro anos de luta a nossa infantaria indígena sempre se bateu com valorosa decisão, quando bem enquadrada e comandada, e das suas fileiras não saiu um exemplo de deslealdade ou de traição. Companhias de landins e de macuas, de angonis ou de mchopes — todas suportaram a sua dura sorte com aquela estóica resi­gnação que tantos lhes admiraram. Lança­das na frente à pressa e mal preparadas, em luta com um adversário cuja fama cada vez mais exaltávamos e criador dum sistema de guerra que nós, os europeus, nunca fo­mos capazes de aprender e realizar, batidas em dezenas de recontros sem que se modificassem as circunstâncias que a isso nos conduziam e sem que se procurasse melhorar as suas condições morais e materiais —| nunca por elas passou o espírito da revolta e, até final da campanha, serviram, — já quási aniquiladas — com lealdade e dedicação, a bandeira a cuja defesa as chamáramos.
Muitas citações premiaram essa dedicação e a natural bravura e valentia que as caracterizam. Mas o concurso mais importante que deram à causa por que nos batíamos permanece ignorado para a maioria dos portugueses.
Naqueles climas hostis, que prontamente invalidam o europeu, resiste a todas as agru­ras o soldado indígena. Alegremente e sem fadiga, bronzeado — a rir-se ao sol que o não queima —, olhando seguramente a selva emaranhada e confusa, ele lá vai, o ousado e tradicional caminhante que tudo sabe, tudo vê, tudo conhece e tudo improvisa, palmilhando os intermináveis quilómetros das marchas africanas, sem um desânimo e sem um desalento.
Com sagacidade e solícita delicadeza ini­cia o branco confiante e ingénuo, desconhecedor da vida do mato, nos segredos complicados e nos mistérios tenebrosos da floresta.
E ele constrói a carinhosa palhota que o abriga nas noites de friagem, e cozinha, num fogo que faz brotar repentinamente da terra, a mísera refeição que o conforta.
Homem da planície, a sua mão, em vi­seira, limita e descobre os horizontes longínquos e esfumados. E o rasto das feras e do inimigo que procuramos ou nos perse­gue — logo o lê, com a clareza e segurança de velho letrado, na areia igual, apenas poeirenta, como na rocha que se defende, agressiva, do traço e da impressão do vian­dante,
E quando, à noite, nos acampamentos es­condidos por entre a densa ramagem das árvores seculares, se acendem as fogueiras — a sua conversa, algaraviada, evoca, sem desânimo, antes com uma esperança, os dias distantes do sossego e da abundância, a ve­lha terra amiga que o dever obrigou a abandonar...
O prestígio do branco e a lembrança das duras lutas que sustentou, altivamente, contra ele, fazem-no aceitar agora, já sub­metido, a sua protecção e autoridade in­discutíveis. E reconhece na sua firmeza intransigente, logo que justa, a melhor afirmação do seu direito.
De resto, o branco para ele, na ideia e na palavra – chinderi ou m’zungo – é o português
Há 400 anos que nas suas aldeias passa de boca em boca, de vida em vida, a histó­ria dos seus cometimentos aventurosos— algumas vezes dolorosa e sangrentamente assinalados — e se fala da sua grave aparên­cia, que uma ingénita generosidade para com os indígenas adoça e suaviza.
Verdadeiro amparo do europeu, infatigá­vel auxiliar do capitão-mor tradicional e do «senhor comandante», toda a África altiva e agreste se deixa vencer por nós — ao seu conselho sábio e à sua experiência vigilante.
Leal e submisso, venera com o respeito que só tributa aos deuses a memória dos grandes homens que em larga e porfiada luta o venceram e dominaram. E o nome de Mousinho — o Grande Feiticeiro — pro­nunciam-no ainda muito baixo, quase que no gesto de quem olha a terra para se prostrar.
Teimam que não morreu!
Pode lá ter caído, varado pelo destino em plena glória, o homem lendário que der­rubou com um gesto o Gungunhana e, ao cabo duma cavalgada de dias, através dos segredos misteriosos das florestas de Gaza, descobriu e abateu para sempre essa heróica figura de chefe negro que foi o ter­rível Maguiguana.
Pode lá ter desaparecido o homem da justiça implacável e segura, aquele de quem, depois do fuzilamento do Manhume e do Queto, diziam os negros dentro do Kraal de Manjacaze — «branco sabe tudo, até sabe quem há-de mandar matar!»
Quê? Morrer, o homem grande, que, em horas, corre ao Maputo, e à frente de 60 cavaleiros esmaga a revolta de tantos mi­lhares de negros sublevados? Para eles não parece possível que o «feitiço» invencível que possuía o tivesse assim abandonado.
E, ainda há poucos meses, um velho soldado landim que acompanhou Mousinho nas campanhas de Moçambique, já encar­quilhado e encolhido na sua pele da velhice, entrava nervosamente no Quartel da Guarda, em Lourenço Marques, procurava com insistência o oficial de dia e lhe dava parte de que dois condenados indígenas, fugidos da cidade, tentavam albergar-se na sua aldeia, escondendo-se da justiça portu­guesa que os procurava.
Que a lealdade dos nossos bravos soldados de cor, ainda hoje, acompanha fielmente a memória do Grande Chefe branco — quando já há tanto a morte, que procurou entre os seus, o guarda ciosa­mente sob o mármore, ingrato e frio, que lhe cobre o corpo inanimado...

*          *          *
Muito curioso é que no fim do livro, que comprei há não sei já quantos anos, tem cinco folhas, escritas à mão (parece que em 1935), acrescentadas pelo seu antigo proprietário, que faz uns muito interessantes considerandos sobre “tropas negras” pelo mundo: França, Turquia e, o que vem agora muito a propósito, nos Estados Unidos. É este pedaço que o senhor trampa deveria ler, reler e engolir:
“Durante a Guerra de Secessão, as tropas negras utilizadas pelos federais do Norte dos E.U.A. em número de 300.000 comandados por oficiais brancos, fizeram-se notar pela disciplina, boa apresentação e fidelidade e tiveram um papel decisivo na sorte da guerra.
Desde sempre houve negros no exército do E.U. e ali mostraram as mais sólidas qualidades militares em Cuba e Filipinas na guerra contra os espanhoes. O regimento negro, os famosos Buffalo Soldiers do 25° Regimento de Infantaria, 1890, que tomou de assalto a colina de S. João, em Cuba, é célebre no exército americano e foi chamado a Nova York para desfilar numa pompa triunfal.”

Buffalo Soldiers do 25° Regimento de Infantaria

Mark Matthews, o último Buffalo Soldier, com a patente de 1° sargento, morreu em 2005 com 111 anos e está sepultado no Arlington National Cemetery.


08/02/2017


Um comentário:

  1. Francisco,
    Os Buffalo Soldiers deram pano para muitos filmes, alguns bem bons. Não sei se viu.
    Sobre Moçambique e, mais exactamente sobre a 1ª GG em África, sobretudo na África Oriental, porque no Sudoeste Africano durou pouco, há um livro excelente.
    Já ouviu falar de von Lettow-Vorbeck (vLV)?
    Era capitão quando acompanhou o General von Trotta nas expedições militares contra os Herrero, San e outros povos da Namíbia, nada interessados em terem alemães como vizinhos. Com disciplina germânica, von Trotta foi empurrando os revoltosos para o deserto onde tinha envenenado os poços. Foi o primeiro genocídio na era moderna: entre 250,000 e 400,000 pessoas terão morrido.
    A presença de Mucubais, Herreros e San no Sul de Angola deve-se a von Trotta.
    A 1ª GG encontrou vLV na Tanzânia, então colónia alemão. Enquanto um cruzador alemão navegou pelo Índico, os ingleses nunca conseguiram fazer desembarcar tropas (sobretudo, do Raj) que aguentassem terreno. Mas o cruzador acabou por ser encurralado no delta de um rio e foi destruído pela rudimentar aviação britânica. Isso não impediu que vLV tivesse arregimentado os marinheiros sobreviventes, desmontasse as peças de artilharia, as metralhadoras e outras armas a bordo, recuperasse todas as munições e iniciásse uma guerra, primeiro, semi-convencional, mais tarde, de guerrilha pura e dura.
    Combatido e perseguido pelas tropas britânicas, idas do Quénia e do Índico, e pelas tropas belgas, idas do Congo, vLV fez-lhes a vida negra (literalmente) durante os quatro anos que a campanha durou.
    Em dado momento, vLV dirigiu-se para Sul, na esperança de conquistar um porto de mar (Nacala? Beira? não se sabe), não para escapar, mas para poder ser reabastecido e remuniciado (vivia, sobretudo, do que encontrava e do material que ia capturando aos que o perseguiam e às tropas portuguesas que tentavam travar-lhe o passo para Sul).
    Sabe-se que se aproximou da Beira, para grande desespero do Estado-Maior britânico, aproveitando bem o facto de a Companhia do Niassa ser de capitais alemães. Mas não se sabe a razão que o levou a inverter a marcha e a dirigir-se para Norte, de novo para o território da Tanzânia.
    Com o Armistício, vLR, então já general, foi o único oficial alemão que nunca se rendeu. E só embainhou a sua espada depois de ter assegurado que todos os seus fiéis askaris tinham sido pagos do soldo que lhes era devido e haviam regressado são e salvos às suas terras de origem (um exemplo que envergonha muita gente).
    Foi recebido na Alemanha derrotada como um herói que era, talvez o maior "cabo de guerra" na guerrilha.
    Junker prussiano, nunca foi à bola com Hitler. Isso custou-lhe ter sido privado da sua reforma e humilhado durante o regime nazi. Foi cozinheiro, para sobreviver.
    Morreu em 1962, reabilitado.
    Um Homem a não esquecer.
    Abraço
    APM

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