TROPAS
NEGRAS
Este texto foi retirado do livro com o título acima, escrito em 1926
pelo major Francisco de Aragão, nascido em Pangim, Índia, de famílias
açoreanas, que combateu no Sul de Angola, em Naulila em 1914, onde foi
aprisionado, e no norte de Moçambique em 1917/18, sempre enfrentando os bem
treinados, comandados e municiados alemães.
Neste livro mostra um profundo conhecimento e sentido de organização
das tropas “coloniais”, a que o govêrno nunca deu seguimento, e onde sobressai
a proposta de não existirem dois exércitos – metropolitano e colonial – mas um
único, com soldados de ambos os lados, todos usufruindo das mesmas condições e
obrigações.
O livro que enaltece os soldados africanos, começa por citar alguns que
foram louvados e condecorados.
Vamos ao livro:
Ali, 1º cabo da 24.ª companhia
expedicionária, louvado
“pela
coragem, sangue frio e valentia que revelou
durante o combate de 22-11-1916, na defesa da água da ribeira de Nevala. - Tendo sido nomeado para ir à posição ocupada pela
companhia buscar munições, mostrou extraordinária coragem transportando um
cunhete através de terreno batido por uma metralhadora que procurava
atingi-lo, transmitindo ao seu comandante de pelotão, em voz baixa, para que
as demais praças o não pudessem ouvir, a informação, que recebera do
Comandante da companhia, de que não havia mais munições”».
Promovido por distinção, medalha de valor militar, Cruz
de Guerra.
Almério, 1°
cabo indígena da 4.ªda Beira, louvado
«pela muita coragem e sangue frio que demonstrou no
combate de Negomano no dia 35-11-017 e ainda porque, debaixo de fogo intenso
das metralhadoras inimigas, ajudou a transportar para a rectaguarda o major Teixeira
Pinto, quando este caiu ferido, voltando em seguida a ocupar o seu logar na
linha de fogo».
Cruz de Guerra
Tear, 1.° cabo indígena do Corpo de Polícia do Niassa, louvado
«pela extraordinária valentia e arrojo com que, na manha
de 8-12-1917 na Serra Mkula, à frente de 6 praças indígenas, se lançou ao
ataque do inimigo que ocupava a água com infantaria e metralhadoras, só
retirando para se remuniciar e transportar um ferido, voltando novamente ao
ataque, sem para isso ter recebido qualquer ordem, mantendo-se na frente até
ao assalto do inimigo”
Promovido por distinção — Cruz de Guerra.
Tabu, soldado indígena da 39.ª Companhia
Expedicionária, louvado
“porque no combate de Nhamacurra, desprezando o perigo,
esteve sempre na posição de combate a peito descoberto, fazendo fogo ininterruptamente
sobre os alemães que via através o cisal, indicando aos
seus camaradas os pontos que deviam visar, mostrando assim muita coragem,
sangue frio e perfeita compreensão dos seus deveres».
Promovido por distinçao – Cruz de Guerra.
E segue o
livro...
Quando no último
período da guerra, em Moçambique, acabámos por nos convencer da impossibilidade
de continuar a luta com tropas europeias, improvisámos, à pressa, numerosas companhias
indígenas que a urgência de manter na frente, cada vez mais extensa, efectivos
numerosos, nos obrigou a instruir em condições precárias e deficientes.
Só
forçados por uma realidade que não perdoa nos resignáramos a fazê-lo.
Mas, nem a
preparação que lhes demos foi cuidada, porque não tínhamos previsto com
antecedência a necessidade do seu emprego, nem os chefes e graduados puseram
grande confiança nas suas qualidades: uns supunham-nas incapazes de se
defrontarem com os askaris inimigos (os soldados africanos do Tanganika),
aguerridos por três anos de luta e de êxitos; receavam aumentar sensivelmente
os efectivos dessas tropas — não fosse voltar-se contra nós o instrumento de força
que criávamos.
Todos cometeram uma grave injustiça atribuindo às tropas
de cor culpas que nunca lhes pertenceram: durante quatro anos de luta a nossa
infantaria indígena sempre se bateu com valorosa decisão, quando bem enquadrada
e comandada, e das suas fileiras não saiu um exemplo de deslealdade ou de
traição. Companhias de landins e de macuas, de angonis ou de mchopes — todas
suportaram a sua dura sorte com aquela estóica resignação que tantos lhes
admiraram. Lançadas na frente à pressa e mal preparadas, em luta com um
adversário cuja fama cada vez mais exaltávamos e criador dum sistema de guerra
que nós, os europeus, nunca fomos capazes de aprender e realizar, batidas em
dezenas de recontros sem que se modificassem as circunstâncias que a isso nos
conduziam e sem que se procurasse melhorar as suas condições morais e materiais
—| nunca por elas passou o espírito da revolta e, até final da campanha,
serviram, — já quási aniquiladas — com lealdade e dedicação, a bandeira a cuja
defesa as chamáramos.
Muitas citações premiaram essa dedicação e a natural
bravura e valentia que as caracterizam. Mas o concurso mais importante que
deram à causa por que nos batíamos permanece ignorado para a maioria dos
portugueses.
Naqueles
climas hostis, que prontamente invalidam o europeu, resiste a todas as agruras
o soldado indígena. Alegremente e sem fadiga, bronzeado — a rir-se ao sol que o
não queima —, olhando seguramente a selva emaranhada e confusa, ele lá vai, o
ousado e tradicional caminhante que tudo sabe, tudo vê, tudo conhece e tudo
improvisa, palmilhando os intermináveis quilómetros das marchas africanas, sem
um desânimo e sem um desalento.
Com
sagacidade e solícita delicadeza inicia o branco confiante e ingénuo,
desconhecedor da vida do mato, nos segredos complicados e nos mistérios
tenebrosos da floresta.
E ele
constrói a carinhosa palhota que o abriga nas noites de friagem, e cozinha, num
fogo que faz brotar repentinamente da terra, a mísera refeição que o conforta.
Homem da
planície, a sua mão, em viseira, limita e descobre os horizontes longínquos e
esfumados. E o rasto das feras e do inimigo que procuramos ou nos persegue —
logo o lê, com a clareza e segurança de velho letrado, na areia igual, apenas
poeirenta, como na rocha que se defende, agressiva, do traço e da impressão do
viandante,
E quando,
à noite, nos acampamentos escondidos por entre a densa ramagem das árvores
seculares, se acendem as fogueiras — a sua conversa, algaraviada, evoca, sem
desânimo, antes com uma esperança, os dias distantes do sossego e da
abundância, a velha terra amiga que o dever obrigou a abandonar...
O
prestígio do branco e a lembrança das duras lutas que sustentou, altivamente,
contra ele, fazem-no aceitar agora, já submetido, a sua protecção e autoridade
indiscutíveis. E reconhece na sua firmeza intransigente, logo que justa, a
melhor afirmação do seu direito.
De resto,
o branco para ele, na ideia e na palavra – chinderi
ou m’zungo – é o português
Há 400
anos que nas suas aldeias passa de boca em boca, de vida em vida, a história
dos seus cometimentos aventurosos— algumas vezes dolorosa e sangrentamente
assinalados — e se fala da sua grave aparência, que uma ingénita generosidade
para com os indígenas adoça e suaviza.
Verdadeiro
amparo do europeu, infatigável auxiliar do capitão-mor tradicional e do
«senhor comandante», toda a África altiva e agreste se deixa vencer por nós — ao
seu conselho sábio e à sua experiência vigilante.
Leal e
submisso, venera com o respeito que só tributa aos deuses a memória dos grandes
homens que em larga e porfiada luta o venceram e dominaram. E o nome de
Mousinho — o Grande Feiticeiro — pronunciam-no ainda muito baixo, quase que no
gesto de quem olha a terra para se prostrar.
Teimam que
não morreu!
Pode lá
ter caído, varado pelo destino em plena glória, o homem lendário que derrubou
com um gesto o Gungunhana e, ao cabo duma cavalgada de dias, através dos segredos misteriosos das florestas de Gaza, descobriu e
abateu para sempre essa heróica figura de chefe negro que foi o terrível
Maguiguana.
Pode lá
ter desaparecido o homem da justiça implacável e segura, aquele de quem, depois
do fuzilamento do Manhume e do Queto, diziam os negros dentro do Kraal de
Manjacaze — «branco sabe tudo, até sabe quem há-de mandar matar!»
Quê?
Morrer, o homem grande, que, em horas, corre ao Maputo, e à frente de 60
cavaleiros esmaga a revolta de tantos milhares de negros sublevados? Para eles
não parece possível que o «feitiço» invencível que possuía o tivesse assim abandonado.
E, ainda há poucos meses, um velho soldado landim que
acompanhou Mousinho nas campanhas de Moçambique, já encarquilhado e encolhido
na sua pele da velhice, entrava nervosamente no Quartel da Guarda, em Lourenço
Marques, procurava com insistência o oficial de dia e lhe dava parte de que
dois condenados indígenas, fugidos da cidade, tentavam albergar-se na sua
aldeia, escondendo-se da justiça portuguesa que os procurava.
Que a
lealdade dos nossos bravos soldados de cor, ainda hoje, acompanha fielmente a
memória do Grande Chefe branco — quando já há tanto a morte, que procurou entre
os seus, o guarda ciosamente sob o mármore, ingrato e frio, que lhe cobre o
corpo inanimado...
* * *
Muito
curioso é que no fim do livro, que comprei há não sei já quantos anos, tem cinco
folhas, escritas à mão (parece que em 1935), acrescentadas pelo seu antigo
proprietário, que faz uns muito interessantes considerandos sobre “tropas
negras” pelo mundo: França, Turquia e, o que vem agora muito a propósito, nos
Estados Unidos. É este pedaço que o senhor trampa
deveria ler, reler e engolir:
“Durante a Guerra de Secessão, as tropas
negras utilizadas pelos federais do Norte dos E.U.A. em número de 300.000
comandados por oficiais brancos, fizeram-se notar pela disciplina, boa
apresentação e fidelidade e tiveram um papel decisivo na sorte da guerra.
Desde sempre houve negros no exército do E.U. e ali mostraram as mais
sólidas qualidades militares em Cuba e Filipinas na guerra contra os espanhoes.
O regimento negro, os famosos
Buffalo Soldiers do 25° Regimento de Infantaria, 1890, que tomou de assalto a
colina de S. João, em Cuba, é célebre no exército americano e foi chamado a
Nova York para desfilar numa pompa triunfal.”
Buffalo Soldiers do 25° Regimento de Infantaria
Mark Matthews, o último Buffalo Soldier, com a patente
de 1° sargento, morreu em 2005 com 111 anos e está sepultado no Arlington
National Cemetery.
08/02/2017
Francisco,
ResponderExcluirOs Buffalo Soldiers deram pano para muitos filmes, alguns bem bons. Não sei se viu.
Sobre Moçambique e, mais exactamente sobre a 1ª GG em África, sobretudo na África Oriental, porque no Sudoeste Africano durou pouco, há um livro excelente.
Já ouviu falar de von Lettow-Vorbeck (vLV)?
Era capitão quando acompanhou o General von Trotta nas expedições militares contra os Herrero, San e outros povos da Namíbia, nada interessados em terem alemães como vizinhos. Com disciplina germânica, von Trotta foi empurrando os revoltosos para o deserto onde tinha envenenado os poços. Foi o primeiro genocídio na era moderna: entre 250,000 e 400,000 pessoas terão morrido.
A presença de Mucubais, Herreros e San no Sul de Angola deve-se a von Trotta.
A 1ª GG encontrou vLV na Tanzânia, então colónia alemão. Enquanto um cruzador alemão navegou pelo Índico, os ingleses nunca conseguiram fazer desembarcar tropas (sobretudo, do Raj) que aguentassem terreno. Mas o cruzador acabou por ser encurralado no delta de um rio e foi destruído pela rudimentar aviação britânica. Isso não impediu que vLV tivesse arregimentado os marinheiros sobreviventes, desmontasse as peças de artilharia, as metralhadoras e outras armas a bordo, recuperasse todas as munições e iniciásse uma guerra, primeiro, semi-convencional, mais tarde, de guerrilha pura e dura.
Combatido e perseguido pelas tropas britânicas, idas do Quénia e do Índico, e pelas tropas belgas, idas do Congo, vLV fez-lhes a vida negra (literalmente) durante os quatro anos que a campanha durou.
Em dado momento, vLV dirigiu-se para Sul, na esperança de conquistar um porto de mar (Nacala? Beira? não se sabe), não para escapar, mas para poder ser reabastecido e remuniciado (vivia, sobretudo, do que encontrava e do material que ia capturando aos que o perseguiam e às tropas portuguesas que tentavam travar-lhe o passo para Sul).
Sabe-se que se aproximou da Beira, para grande desespero do Estado-Maior britânico, aproveitando bem o facto de a Companhia do Niassa ser de capitais alemães. Mas não se sabe a razão que o levou a inverter a marcha e a dirigir-se para Norte, de novo para o território da Tanzânia.
Com o Armistício, vLR, então já general, foi o único oficial alemão que nunca se rendeu. E só embainhou a sua espada depois de ter assegurado que todos os seus fiéis askaris tinham sido pagos do soldo que lhes era devido e haviam regressado são e salvos às suas terras de origem (um exemplo que envergonha muita gente).
Foi recebido na Alemanha derrotada como um herói que era, talvez o maior "cabo de guerra" na guerrilha.
Junker prussiano, nunca foi à bola com Hitler. Isso custou-lhe ter sido privado da sua reforma e humilhado durante o regime nazi. Foi cozinheiro, para sobreviver.
Morreu em 1962, reabilitado.
Um Homem a não esquecer.
Abraço
APM