19 de Março
Desde que nasci, o dia dos Pais. Dia de São
José
Um hino
maravilhoso, ao Pai.
Do GRANDE,
GRANDE e humilde, por ser GRANDE,
José Craveirinha
AO MEU BELO PAI EX-EMIGRANTE
Pai:
As maternas palavras de signos
Vivem e revivem no meu sangue
E pacientes esperam ainda a época da colheita
Enquanto soltas já são as tuas sentimentais
Sementes de emigrante português
Espezinhadas no passo de marcha
Das patrulhas de sovacos suando
As coronhas de pesadelo.
E na minha rude e grata
Sinceridade filial não esqueço
Meu antigo português puro
Que me geraste no ventre de uma tombasana
Eu mais um novo moçambicano
Semiclaro para não ser igual a um branco
qualquer
E seminegro para jamais renegar
Um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.
E agora
Para além do meu antigo amigo Jimmy Durante a
cantar
E a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
Subconsciência dos porquês de Buster Keaton
sorumbático
Achando que não valia a pena fazer cara alegre
E um Algarve de amendoeiras florindo na outra
costa
Ante os meus sócios Bucha e Estica no 'écran'
todo branco
E para sempre no zinco um tap-tap de cacimba no
chão
A minha Mãe agonizando na esteira em
Michafutene
Enquanto tua voz serena profecia paternal: -
«Zé:
Quando eu fechar os olhos não terás mais
ninguém.»
Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
Do luso-arábico Aljezur da tua infância
Mas amar por amor só amo
E somente posso e devo amar
Esta minha bela e única nação do Mundo
Onde minha Mãe nasceu e me gerou
E contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
Se africanizaram para a eternidade nas minhas
veias
E teu sangue se moçambicanizou nos torrões
Da sepultura de velho emigrante numa cama de
hospital
Colono tão pobre como desembarcaste em África
Meu belo Pai ex-português.
Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
Não sei como ou antes por tua culpa
O «Trinta-diabos» de joelhos esfolados nos
mergulhos
À Zamora nas balizas dos estádios descampados
Avançado-centro de «bicicleta» à Leónidas no
capim
Mortífera pontaria de fisga na guerra aos
galagalas
Embasbacado com as proezas dos leões do Circo
Pagel
Nódoas de caju na camisa e nos calções de caqui
Campeão de corridas no xitututo Harley Davidson
Os fundilhos dos calções avermelhados nos
montes
Do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
Para salvar a rapariga Maureen O'Sulivan das
mandíbulas
Afiadas dos jacarés do filme de Tarzan
Weissemuller
Os bolsos cheios de tingolé da praia
As viagens clandestinas nas traseiras
gã-galhã-galhã
Do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
Sou eu, Pai, o «Cascabulho» para ti
O Santinho para minha Mãe
Todo maluco de medo das visões alucinantes
De Lon Chaney com muitas caras.
Pai:
Ainda me lembro do teu olhar
E mais humano o tenho agora na lucidez da
saudade
Ou teus versos de improviso em loas à vida
escuto
E também lágrimas na demência dos silêncios
Em tuas pálpebras revejo nitidamente
Eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
Dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
Na dimensão desmedida do meu amor por ti
Meu belo algarvio bem moçambicano!
E choro-te
Chorando-me mais agora que te conheço
A ti, meu Pai, vinte e sete anos e três meses
depois
Dos carros na lenta procissão do nosso funeral
Mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
Nos limites da vida
E na íris do meu olhar o teu lívido rosto
Ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do
Adeus
E na minha cabeça de mulatinho os últimos
Afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
Naquele dia de visitas na enfermaria do
hospital central.
E revejo os teus longos desejos no
dirlim-dirlim da guitarra
Ou o arco da bondade deslizando no violino da
tua aguda tristeza
E nas abafadas noites dos nossos índicos verões
Tua voz greve recitando Guerra Junqueiro ou
Antero
E eu ainda Ricardito, Douglas Fairbanks e Tom
Mix
Todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan
analfabeto
E de tanga na casa de madeira-e-zinco
Da estrada do Zichacha onde eu nasci.
Pai:
Afinal tu e minha Mãe não morreram ainda bem
Mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos
índios
O Tarzan agente inglês disfarçado em África
E a Shirley Temple de sofismas nas covinhas da
face
E eu também é que mudámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
Bandos de sécuas ávidas sangrando grãos de sol
No tropical silo de raivas eu deixo nesta
canção
Para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
Agitados nas manhãs de bronze
Chorando gotas de uma cacimba de solidão nas
próprias
Almas esguias hastes espetadas nas margens das
húmidas
Ancas sinuosas dos rios.
E nestes versos te escrevo, meu Pai
Por enquanto escondidos teus póstumos projectos
Mais belos no silêncio e mais fortes na espera
Porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
Ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza afro-algarvia
Quase revelada nesta carta elegia para ti
Meu resgatado primeiro ex-português
Número UM Craveirinha moçambicano.
JOSÉ CRAVEIRINHA
GLOSSÁRIO XI-RONGA-PORTUGUÊS
GÃ-GALHÃ-GALHÃ - Som onomatopaico dos rodados
do carro-eléctrico nos carris.
SÉCUA - Pato; ganso.
TINGOLÉ - Pequeno fruto vermelho, saboroso e
farináceo.
TOMBASANA - Rapariga solteira.
ZAMBEZE - Grande rio moçambicano que desagua
no Índico.
XITUTUTO - Motocicleta. Onomatopeia do
trabalhar da moto.
ZICHACHA - Zilhalha, régulo dos tempos da
"pacificação" militar, considerado pels autoridades coloniais como
rebelde.
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