Um encontro de Escritores
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Corria por Lisboa um amante da história e das letras, à
procura dum restaurante suficientemente grande que, por uma noite, pudesse
fechar as portas para receber um elevado e muito especial número de convivas.
Fechar as portas em sentido literal.
Isto porque os convivas, sobretudo os mais antigos e
de elevada estirpe, não gostariam de ser vistos pelo público, muito menos
entrando em lugares normalmente reservados a “plebeus”.
Nada encontrou em Lisboa, nem Porto, nem, correndo o
país, em qualquer restaurante mesmo nos melhores hotéis, que lhe servisse para
os fins em vista. Lembrou-se que um convento seria a melhor solução ;
lugares tranquilos, longe do mundo externo, e acabou por se fixar no Mosteiro
de Alcobaça.
Levou tempo a convencer o Dom Abade que precisaria de
uma sala, grande, fechada, onde ninguém pudesse entrar, nem por qualquer buraco
espreitar. O refeitório do convento, espaçoso, seria o ideal. Argumentou como
pôde: só o utilizariam a partir das 20 horas, pagaria o que fosse necessário,
mas impunha uma condição: ninguém poderia ver quem lá iria estar dentro.
-
Dom Abade: não tem que se preocupar, são todos pessoas da maior
respeitabilidade. Depois lhe venho contar quem aqui esteve.
As instruções foram precisas: nada de cozinhados.
Nada. Eles, os convivas, talvez quarenta ou cinquenta, não vêm comer. Só
encontrar-se e conversar. Mas quem sabe se lhes apetecerá beber qualquer coisa,
de modo que se porá à sua disposição, somente algo para quebrarem um pouco a
« sede » e para alegrar o convívio, sobretudo vinhos. Os melhores.
Continuando, foi dizendo que tudo isso correria por
sua conta, o Mosteiro não gastaria um cêntimo, e com a conveniente antecedência
traria as bebidas, variadas, vinhos branco e tinto, vinho do Porto, outros
vinhos generosos, vinho verde, aguardente e água. Todas as garrafas estarão
abertas. Não precisaremos nem de saca-rolhas. Copos, sim, de todos os feitios,
e à descrição. Muitos copos. Se o mosteiro não tiver, também posso trazer umas
dúzias de copos. Não precisa ficar preocupado porque ninguém se vai embriagar e
criar problemas. Não são necessárias cadeiras, só pequenas mesas espalhadas
“aqui e além” onde os convivas possam depositar os copos vazios.
Como certamente vai sobrar muita bebida, desde já ela
fica oferecida ao Mosteiro, esperando que os monges dela possam fazer bom uso,
assim como dos copos.
Pessoal para servir, nem um. Não há necessidade. E que
ninguém, rigorosamente ninguém, ali entre ou vá espreitar. Será eventualmente
necessário fechar alguma janela porque não se deverá poder ver quem lá estiver.
O tranquilo Dom Abade julgava estar perante um louco.
Para que se juntarem num restaurante se não iam comer? Só beber? Nunca tinha
visto tal. O organizador do encontro limitou-se a responder perguntando quanto
queria que lhe deixasse como pagamento ou contribuição para o acontecimento, o
que o religioso deixou ao critério dele e, ainda cético, se ofereceu para
colocar lá na sala alguns sumos das boas frutas da região, o que foi aceite com
muito agrado. Foi-lhe então entregue então um envelope com generosa quantia.
-
Aqui tem o seu dinheiro, Dom Abade. No dia seguinte eu venho acertar eventuais
contas do que for necessário. Amanhã, a partir das oito da noite só poderão
aqui entrar, além de mim estes poucos senhores cujos nomes estão nesta lista;
eles sabem que ficarão numa sala separada, porta aberta para o salão onde não
poderão entrar. Serão os testemunhos da reunião. E que ninguém mais saiba disto.
E o senhor, Dom Abade terá que manter todo este assunto em segredo de
confissão.
Face ao entusiasmo do visitante e do dinheiro, vivo,
em notas, o Dom Abade, apesar de desconfiado, acedeu.
-
Mais uma coisa só: onde tem aqui um altar dedicado a São Pedro?
Dom Abade levou-o a meio da nave central da bela
igreja, e deixou-o ajoelhado, parecendo rezar com fervor.
Pouco demorou a tirar do bolso uma lista. Ajoelhado,
humilde (pleonasmo: ajoelhar é já um ato de humildade!) frente à imagem do
Santo e sem muito mais rezas diz-lhe:
-
São Pedro, preciso de um grande favor. Tenho aqui uma lista de pessoas que
gostaria que deixasse, amanhã, virem à terra. Por pouco tempo. Só algumas
horas.
-
Meu filho aqui não há ontem nem amanhã, e muito menos horas. Aqui só há o momento
presente. O que não importa, porque tudo pode ser controlado. Mas o que vão
eles fazer aí na Terra, quando aqui estão gozando a suprema felicidade?
-
Será uma pequena reunião de escritores da língua portuguesa, incluindo até um
que viveu antes de haver esta língua. Um encontro a que poucos, muito poucos
vão ter oportunidade de assistir, e onde imagino se vão trocar curiosas ideias
do tempo de cada um. Já todos aí estão a descansar, mas nós que os estimamos
muito e estudamos, queremos ter o inestimável prazer de os poder ver.
Mas,
querido São Pedro, tem que os deixar vir vestidos como andaram quando vivos, no
seu tempo, pela Terra, independente de uns terem sido ricos e outros até
pobres. Será uma ajuda para os podermos distinguir. Só os poucos vivos que
assistirão ao encontro vão reparar nesses desprezíveis detalhes. Ah! Um outro
detalhe: alguns eram judeus ou cristãos novos.
-
Aqui não há judeus, nem há religiões. Há só Paz eterna para quem a mereceu
quando peregrinou por essas bandas.
-
Que bom, Santo Pedro.
-
Mas estranho pedido esse, meu filho. Jamais alguém me apresentou semelhante
ideia! Dizem que eu tenho as chaves do céu, mas aqui eu não mando nada. Somos
todos iguais. Não sei como satisfazer este pedido que, devo dizer, até me
parece interessante. Espera um instante que vou falar ao Pai.
Como no céu também não há instantes, de seguida São
Pedro continuou.
-
Vão poder ir sim. Não preciso da lista que trazes contigo, porque consigo ler o
que te vai na alma. À hora combinada aparecerão, um de cada vez, sem ordem das
hierarquias desse mundo. Vai em paz.
Já mais animado o nosso promotor da festa guardou a
lista para depois conferir se viriam todos. Não que desconfiasse da palavra do
Santo, mas para que ele próprio se não perdesse, e até porque talvez algum não
tivesse ganho ainda... os céus!
Os convidados, terráqueos, autorizados a assistir,
foram os seguintes de que só se indicam umas letras para não serem depois
assediados por jornalistas e outros curiosos: CC, HS, AP, LS, e MC.
Refeitório arrumado, mesas encostadas às paredes,
abertas as garrafas com as bebidas, os copos ao lado, arrumados, aproximam-se
as vinte horas, o nosso “inventor” do encontro, nervoso, olha para o relógio a
intervalos de poucos segundos. O que se iria passar?
De repente surge o primeiro, logo o mais fácil de
identificar, zarolho (sem aquela ridícula coroa de louros na
cabeça), calça a meio da coxa e uma capa pelas costas, só podia ser o
Luis Vaz, de Camões! Olhou em volta, parece não ter visto o anfitrião, nem
podia porque o anfitrião era um ser vivo e os convidados figuras etéreas (mas
que iam beber vinho !) e com dois passos estava em frente das garrafas. Olhou
para todas as garrafas, escolheu como bom conhecedor, encheu um copo de vinho
verde e derramou-o num só trago! Ahhh ! Que saudades !
Entretanto chega Brás de Albuquerque só reconhecido
porque Camões ao vê-lo exclamou, alegre:
-
Brás, aliás Afonso, vamos falar um pouco das nossas aventuras, ou desventuras,
na Índia! Tu não estiveste por lá mas sabes de muita coisa. Vem beber à saúde
daqueles tempos. Vinho verde da
minha região ou da tua quinta ?
Num instante aparecem mais três, quatro, cinco, e o anfitrião
começa a ficar baralhado sem saber quem era quem. Reconhece Alexandre Herculano,
impossível de não ser reconhecido, vê-o dirigir-se a um personagem, de roupa
vistosa, longa barba branca, ar altivo apesar de se ver já de idade avançada, e
muito respeitosamente se dirige a ele :
- D. Alfonsi a Domino, quod est honor
Afonso X respondeu-lhe em castelhano, língua que ele
havia introduzido oficialmente em Castilla y Leon em substituição do latim. Entretanto,
garganta seca, pediu que lhe servissem um copo de vinho generoso.
-
Dom Afonso, este é um vinho das encostas do rio Douro. Duero para usted. É ouro
líquido para se beber!
Logo ao lado deles estava outra figura ímpar, que fez
questão de beijar a mão de seu avô. Herculano logo o reconheceu também e não
conseguiu calar o que sentia:
-
Senhor Dom Dinis, o maior rei que Portugal teve!
Dom Dinis, em grande respeito por seu avô :
- Tanto e tão
bem fizeste, meu Senhor e Rei, que eu seguindo vosso exemplo aboli também o
latim em Portugal. Institui não o castelhano mas o que mais se fala no meu
reino: o galaico-português!
E vinham-se juntando mais, encantados pela presença de
tão destacadas figuras. Um deles, magrinho, nariz proeminente, bigode bem
aparado, óculos pince nez, ajoelha-se em frente de Dom Dinis, olha-o bem
nos olhos e diz-lhe:
-
Meu querido e maior rei, o plantador de naus a haver! e
deixa correr, de emoção duas lágrimas.
Já corre para se juntar ao poeta, roupa simples,
humilde, o sapateiro de Trancoso, que Pessoa apresenta ao Rei:
- Senhor, aqui
está o homem que previu o grande futuro de Portugal no Mundo, tudo iniciado
pela gestão do vosso reinado!
António Vieira esticava a cabeça para ouvir o que
diziam do Futuro. Dom Dinis que o viu mandou-o aproximar-se mais para o
abraçar. Sabia da sua História, e no seu íntimo agradecia-lhe a expansão do
nome de Portugal. Neste pequeno grupo Agostinho da Silva tinha que estar; encantava-se
na presença do grande soberano, mas sobretudo bendizia a herança da Santa Rainha,
ausente, mas muito estimada, e queria apresentar ao rei a também sua visão
Império do Menino, a que se juntou, para aplaudir, Ariano Suassuna.
Ao grupo inicial, ia-se juntando um sem número dos muitos
poetas coevos porque ali se encontrava o Mestre. Bernardim Ribeiro, a quem
Camões perguntou pela “Menina e Moça e seu roussinol”, um canto triste de quem
cantou a dor da Menina; Sá de Miranda com sua longa barba, que depois de
abraçar efusivamente o seu amigo Bernardim, brincou com Camões dizendo-lhe
- Sabes bem,
grande mestre, que se te salvaste do naufrágio, não te salvas que se tenha
espalhado por toda a parte o teu imenso engenho e arte! Aprendeste que o Amor é fogo que arde sem se ver, mas Amor é cego
minino e a Fortuna é cega mulher!
João de Barros aguardava a troca das amabilidades
poéticas para se voltar para a Índia! Camões, Afonso de Albuquerque, Diogo
do Couto, Garcia de Orta e até Duarte Nunes de Leão, que reclamava por não
encontrar à disposição entre as preciosidades etílicas nem que fosse uma só
garrafa da sua terra, o clássico Pera Manca, um vinho da minha terra que se cultiva há milhares de anos e que os
romanos vinham aqui buscar para se deliciarem em Roma! André de Resende
coadjuvou :
-
Tens razão Duarte Nunes.
Todos riram e Afonso de Albuquerque correu para lhe
oferecer um copo do que de melhor a Quinta da Bacalhoa produzia! Duarte Nunes:
- Obrigado. É
bom, mas não se aproxima do Pera Manca, amigo Brás.
-
E eu que o diga, confirmou Bernardim, orgulhoso do seu Torrão!
Não seria tão bom, mas Brás foi notando que só à conta
dele uma garrafa inteira já se tinha evaporado!
Bocage, magro, de olhos azuis,
carão moreno, bem servido de pés, meão na altura, triste de facha, o mesmo de
figura, nariz alto no meio e não pequeno,
irreverente, atento à troca de ideiais não se conteve. Sadino, sai
em defesa dos moscateis de Setubal que costumava beber em níveas mãos, por taça escura, e com seu geito descontraido fez com todos provassem o
cantado nectar, aprovado por unanimidade.
Os que andaram pelas Índias,
cutucaram Camões :
- Mestre Luiz, nunca revelaste onde era a Ilha dos Amores, mas eu que por
lá andei recordo bem uma das que mais prenderam o meu coração : a Ilha de
Mussa Ben-Bique ! Não andavam as belas deusas pela floresta, que não havia, mas
vi-as tocar o alaúde e a qunan, a que nós chamamos harpa, e o nosso desejo se
acendia mesmo que as carnes não fossem tão alvas!
- Tens
razão Garcia, eu que por lá passei e vi muitas daquelas deusas de ébano, não as
esqueci nunca. Como poderia? Depois de meses de mar...
Gaspar Correia, com um suspiro
acrescentou:
- Ah! A ilha
dos sonhos e dos amores era essa mesma, Diogo do Couto. Passei a minha vida,
quase toda na Índia e lembro do grande Vice-Rei Afonso de Albuquerque que volta
e meia me falava das “deusas daquela ilha”!
Seguia a conversa sobre a Índia, mas
havia que escutar outros grupos.
Camões vê entre os de outras gerações
alguém que queria muito cumprimentar. Ali estava outro poeta, elegantíssimo, casada verde bronze com botões de amarelo
dourado, colete branco de grande bandas, calça cor de flor de alecrim, gravata
de cores lubricas e luvas cor de palha!
- João Batista! Que ideia ter escrita aquele belo
poema Camões! Muito me sensibilizou e fez até nascer almas poéticas em jovens
simples!
- Luiz
Vaz, deverias ter visto a magnífica peço de teatro que fez em meu nome! Foi um
imenso sucesso!
E
conseguiu um efeito especial do Castelo da Almada a arder dentro do teatro!
Exclamou Manuel de Sousa Coutinho.
- Sabem
onde me inspirei? Numa barraca de marionetes na Póvoa de Varzim! E que bela
obra também a tua Frei Luis de Sousa, sobre o grande arcebispo Dom Frei
Bertalomeu!
A reunião estava animada, a noite
virava e ainda duraria muitas horas.
A continuar...
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