segunda-feira, 30 de janeiro de 2017



« Amor de Perdição »

Simão Botelho e João da Cruz

Para quem já não recorde, em Maio de 2014 dei a conhecer, neste blog, uma carta enviada a Camilo Castelo Branco sobre o destino de seu tio Simão Botelho, degredado para a Índia. Podem conferir neste link http://fgamorim.blogspot.com.br/search?q=sim%C3%A3o
Como ali se afirma, Simão não morrera a bordo, como Camilo romanceou. É preciso notar que o grande Camilo, o maior romancista de toda a história portuguesa, não gostava de fazer romances muito compridos. Ele mesmo, quando alguém lhe encomendava um romance, respondia logo : ‘‘Duzentas e cincoenta páginas, ‘‘x’’ o preço e metade do pagamento à vista!’’ Quando o número de páginas estava a chegar ao total combinado, Camilo ou matava o personagem ou terminava como no romance ‘‘Onde se encontra a Felicidade’’, duma forma sintética : ‘‘A felicidade encontra-se num baú cheio de moedas!’’
O mesmo se terá passado com dois ilustres personagens de ‘‘Amor de Perdição’’, matando Simão Botelho para não ter que continuar a sua história (e porque lhe teria perdido o rasto), e ainda matando João da Cruz, o ferrador, pai de Mariana. Como era habitual o romancista se baseiar em pessoas da vida real, e depois as romanciasse, parece que existiu um homem, ‘‘alma gémea’’ de João da Cruz, homem grande, forte, trabalhador, briguento, que se chamou João da Silva. Quando se referia a personagens da vida real, para compor os romances, Camilo, pegava nessas ‘‘almas gémeas’’, e trocava-lhes só o sobrenome.
Voltemos a Simão Botelho.
José António Ismael Gracias (1903-1993), que, além de chefe da secretaria do Governo-Geral da Índia Portuguesa, foi diretor da revista O Oriente Português, de Goa, escreveu um artigo baseado em documentos publicados no Livro das Monções nr. 187, também da Índia, onde se afirmava existirem documentos comprovativos da chegada de Simão António Botelho a Goa, e lá estaria, pelo menos em Fevereiro de 1808. É natural. Ia degredado e o comandante, à chegada devia entregá-lo às autoridades.
Nada refere sobre Mariana, o que não é muito de estranhar.
Quanto a João da Cruz, o bom e forte ferrador, pai de Mariana, segundo o romance, foi assassinado pelo filho de Bento Machado, para vingar a morte de seu pai quando, como criado de Baltasar Coutinho teve como missão assassinar Simão Botelho. O ferrador sabendo da embuscada e sua finalidade, atirou no primeiro homem que viu e varou-o com uma clavinada no peito !
O que é estranho é haver um João da Silva tão ‘‘tal e qual’’ o seu xará da Cruz.
Lourenço Mano, de quem extraio estas informações, no seu livro ‘‘Entre Gente Remota’’, publicado em Lourenço Marques em 1963, deixa umas quantas dúvidas sobre a vida do ferrador. Ouçamo-lo :
‘‘Encontrei no Boletim Oficial de Moçambique n° 13, de 2 de Abril de 1870, a seguinte notícia :
‘‘Faz-se público por ordem do Conselho do Governo, que o réu João da Silva, o ferrador, acabou em 6 de Abril do ano próximo findo, de cumprir a pena de quinze anos de degredo em que havia sido condenado, em Armamar em 6 de Dezembro de 1858, por lhe ter sido aplicado o indulto régio de 24 de Agosto de 1863, ficando-lhe a pena reduzida a menos a quarta parte’’
‘‘Amor de Perdição’’ foi escrito em 1862, o que permitiu a Camilo usar a figura de um ferrador chamado João da Silva, que existiu.
Mas tem mais:
‘‘João da Silva ao chegar a Moçambique foi colocado na Fortaleza de São Sebastião na Ilha de Moçambique. Uma noite, à porta da fortaleza teve uma briga sangrenta com um ‘‘macua’’, cosendo-o com facadas! Dado o seu génio foi transferido para a Ilha de Bazaruto, donde se evadiu mais tarde com outros presos nativos para as terras de Sena. Por ali andou a mercadejar em escravos, marfim e pasta de ouro, sempre em luta com os frades domínicos. Naquele tempo os governadores de Moçambique ignoravam quase totalmente o que se passava no interior.
Por ali João da Silva casou com Rita Emília Gomes da Fonseca, condenada a degredo perpétuo pelo crime de propinação* de veneno a seu marido. (O que se chama uma esposa dedicada! E o marido outra jóia!)
No romance, João da Cruz é morto pelo filho do almocreve de Garção. Na vida real ele terá morto este e um comparsa, e daí ter sido condenado ao degredo.
‘‘Há notícias de se haver encontrado há uns anos um manuscrito, pertencente à antiga Câmara Municipal de Vila de Sena, no qual se lia ainda o registo do óbito de João da Silva, o ferrador. Terá sido vítima de cólera morbus, que grassou na região em 1870, e foi-lhe dada sepultura numa das cinco igrejas ao tempo existentes em Sena.
E ainda esta:
‘‘Estava (Lourenço Mano) em São Pedro do Sul em 1933 quando encontrei junto à ponte um velho mendigo, que me revelou a existência dum João Ferrador, natural de Armamar, Viseu, homem rude e de génio bravio, que Camilo certamente conhecera nas suas digressões por toda aquela região, e que estivera degredado em Moçambique por crime de homicídio’’.
Não se sabe que idade tinha João da Silva quando foi degredado.
Fica a dúvida de ele ter morrido em Moçambique, apesar do documento, em tempos encontrado.
E ainda o testemunho do velho mendigo que conhecera um ferrador em Armamar, a terra de João da Silva, que regressara do degredo e para a sua terra tinha voltado.
Camilo ainda terá escrito :
‘‘Quando os sinos corriam o derradeiro dobre ao cair da lousa sobre João da Cruz, Deus terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento a nobreza da tua alma. Dorme o teu sono profundo se nenhum outro tribunal te cita a responder pelas vidas que tiraste, e pelo uso que fizeste da tua. Mas, se há instância de castigo e misericórcia, as lágrimas da tua filha terão sido, na presença do juiz supremo, os teus merecimentos’’.

* Propinar : administrar uma dose de veneno.


25/01/2017

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