quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Encontro de Escritores

- 3 ?-

Continuava animada a conversa naquele inusitado encontro em Alcobaça.
Rodeavam agora Dom Dinis todos aqueles que haviam passado pela sua Universidade lembrando que fora este grande rei que, em 1290 instituira o Estudo Geral Português, com a assinatura do documento “Scientiae thesaurus mirabilis”. Parecia, e era (e continua a ser!) a maior figura da história de Portugal.
Propunham até, os antigos alunos, ali fazerem uma serenata ao grande Rei, e o lembraram, meio em segredo, para não melindrarem a memória de Dom Afonso o quarto, de seu filho Pedro Afonso que tanta obra deixou. Ainda ensaiaram uma pequena trova de D. Dinis, mas em voz baixa já que os outros convivas estavam, também em animada conversa: "Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! ai Deus, e u é?
João Rodrigues, depois Amato Lusitano, lamentava ter ido estudar em Salamanca por ser considerado na altura de sangue sujo. Brilhou pela Europa, assim como Abraão Zacuto Lusitanum de quem Dom João III se serviu, mas não impediu que fosse igualmente expulso de Portugal. António Vieira conversava com eles que sabiam que ele também havia sofrido semelhante perseguição, bem como outro brilhante conviva Garcia de Orta.
- Até o grande mestre Damião de Gois, de família nobre, por melhor e mais profundamente pensar foi perseguido pelo mesquinho clero e acabou, ao que dizem, assassinado! E espero que ninguém se esqueça do que sofreu o também grande Diogo do Couto.
Lamentavam todos os presentes que os sefarditas tivessem sido expulsos dum país que eles tanto amavam e continuaram a respeitar mesmo longe. E, pior, expulsos por quem deles se serviu, D. João III, esmagado sob o peso da beatice dominicana. Herculano, ouviu falar neste rei e não se conteve, seu ar austero: 
- Era um homem medíocre, inábil, fanático, inábil para governar por si próprio". 
António Vieira, mais cordato:
- Aproveitemos este encontro, este convívio e procuremos esquecer as nossas desventuras. Vamos beber um bom vinho das terras de Garcia de Orta, não direi à nossa saúde porque... mas ao nosso encontro.
Muito mais grupos se formavam sem que alguém fosse impedido de circular.
Já Dom João, o primeiro, beijara a mão de seu bisavô, e presenciado o respeito de que ficou sempre merecedor, num instante se viu rodeado pelos amigos, entre eles Dom João de Ornelas cujo semblante não negava o prazer de estar no “seu” antigo mosteiro!
E pelos cronistas! Fernão Lopes, que elogiava o trabalho de Duarte Nunes ao refundir as crônicas dos reis da primeira dinastia, e a dos três primeiros reis da dinastia de Avis, na Segunda Parte das mesmas crônicas, o que foi apoiado por Gomes Enes, de Zurara, e Herculano que ainda acrescentou:
­- Na opinião do 1° Marquês de Alegrete, foi Duarte Nunes de Leão quem abriu caminho à crítica da História em Portugal, escrevendo com juízo e madureza, certamente enquanto apreciava o seu tão famoso e elogiado vinho!
O que ele também fez. Herculano estava eufórico. Ele, sempre aquela cara fechada, enigmático, exultava com os personagens que tão bem conhecera no Tombo.
E chegados estavam agora os filhos Dom Duarte e Dom Pedro.
- Bonito esse vosso livro meu filho, o Leal Conselheiro. Exemplo de um homem honrado que bebeu, sobretudo de sua mãe, a delicadeza e o comportamento exemplar. Pena que meu neto Afonso tenha sido tão ingrato com seu tio Pedro, que foi o melhor conselheiro que poderia ter encontrado.
Dom Pedro, que foi Duque de Coimbra, duque de Treviso, Cavaleiro da Ordem da Jarreteira, ar triste, no íntimo o filho preferido de seu pai, que sempre amou seu irmão e seu sobrinho, perdoava, mas não podia esquecer o que lhe fizeram.
-  São águas passadas. Penso em meu irmão Henrique e o quanto ele teria gostado de ler a carta de Pero Vaz, de Caminha. Aproxima-te Pero Vaz, para te abraçar em nome de meu irmão Henrique.
-  E tu também Pero de Magalhães, o homem que veio de Gand para nos dar a primeira descrição, em história, das Terras de Vera-Cruz! E pensar que tudo isto devemos ao grande rei, nosso antepassado, com a sua grande visão.
Poucas eram as figuras femininas, entradas no Mosteiro sem o conhecimento do Dom Abade, mas ali estava Florbela Espanca, por especial deferência de São Pedro, que advogara em sua defesa a escrita libertina, os vários casamentos que não deram certo e as tentativas de suicídio, porque sabia o quanto ela havia sofrido.
- Florbela?Aqui ?Acabo de sair de um outro encontro, feminino, porque não gostei do que disse a Soror Mariana, a fazer-se de vítima arrependida, quando já se sabe que não foi ele que escreveu as cartas ao francês ! Mas eu...
Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
- Alegra-te Florbela. És muito estimada e admirada entre todos – disse-lhe Guiomar Torrezão que “representava” a luta pela emancipação das mulheres.
Ao ver Guiomar, Camilo fez questão de abraçá-la, e agradecer-lhe a carta que ela lhe escreveu “Há muito que penso em escrever um artigo substancial sobre Camilo...” e Guiomar retribuiu lembrando a carta dele: “Beijo as mãos de V. Exª pela fineza dos seus cuidados com a minha esquisita existência.”
Carolina Michaelis de Vasconcellos, nascida em Berlim, mas portuguesa por casamento e coração, notabilizou-se na história e poesia dos antigos do seu novo país, divulgando-os por toda a Europa. Já havia recebido os cumprimentos de Sá de Miranda que tão bem havia estudado e ajudado a difundir, as homenagens de Herculano e Antero de Quental (cuja vida suplantou em virtude o desastre da sua morte) lembrando as suas trocas de correspondência, sempre com um belo caráter de respeito próprio de uma grande dama e de grandes homens. Por fim e seu imenso espanto é com o próprio Camões quem lhe vai agradecer os Estudos Camoneanos que mais ainda o engrandecera, sobretudo junto ao povo germânico.
Um pouco afastados conversam já Camilo e Herculano que, maliciosamente, lhe pergunta pelo cão que aquele lhe dera e após a sua nomeação para a Academia de Ciências de Lisboa lho pedira de volta! Camilo, mordaz, esboçou uma desculpa, o que, coisa rara, fez aparecer um largo sorriso na cara de Herculano.
Bernardo Correa de Melo, o Conde de Arnoso, ao lado da Ramalhal figura, ria-se com aquela conversa, e Eça, que havia escutado Garrett falar na sua terra, a bela Póvoa de Varzim, pergunta a Antero se, lá no etéreo, em que pouco nos vemos, também lhe chamam, como ao grande apóstolo Simão, São Pedro, o Santo Antero!
- Aproveitemos e vamos brindar a este encontro, mas com vinho especial de Tormes que, no meio de tantas delicias etílicas, encontrei! É o vinho do Porto no seu melhor! E esquecer a triste e cómica Questão Coimbrã!
- Imodéstia tua Eça, com o vinho! Mas sabes bem que quem moveu esses ridículos combates coimbrões foi a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices! O espírito de rotina violentamente incomodado! Melhor mantermos o nosso Bom Senso e Bom Gosto para saborearmos o teu bom vinho e a magnífica companhia dos que aqui se encontram!
Esqueçamos as cartas que José Feliciano de Castilho, dizendo tanto disparate, publicou no Brasil, onde os homens de Bom Senso deram, não atenção mas até risada de desprezo.
- É verdade, atalhou Machado de Assis. Vivia-se uma época em que era permitido publicarem-se calúnias, mas os homens sensatos, se as liam, logo rasgavam esses escritos. Um dos que sofreu com isso foi o grande mestre Gilberto Freyre, usado como argumento político duma ditadura poderosa e logo a seguir insultado pelos revoltosos!
- Não há melhor meio para conhecer o homem português do que ler as obras de Gilberto Freyre, um homem simples mas com uma obra extraordinária. Foi às origens e mostrou como se adaptou aos trópicas e criou o homem brasileiro.
Palavras de Ariano Suassuna, sempre alegre e comunicativo, rendia assim homenagem a quem deu partida para que aparecessem depois os grandes romances sobre o homem brasileiro.
- Foi isso Ariano, assim criei Grande Sertão:Veredas, Sagarana, e outros cantando baianos e mineiros, e você com o extraordinário Auto da Compadecida e tantas outras obras magníficas mostrando o Nordeste do Brasil.
- Rosa, não esqueça João Cabral de Melo Neto. Camões cantou a epopeia dos portugueses. João Cabral o sofrimento dos nordestinos, como naquele incomparável poema Morte e Vida Severina.
Luis Augusto Palmeirim, até então calado, deliciado a ouvir tantos colegas de letras, ele que teve o condão de “descobrir” novos talentos, estava entusiasmado com a conversa que entretanto derivara para o Brasil.
- Que maravilha! Já chegámos ao Brasil. Os nossos irmãos de Além o Grande Rio Atlântico. Mas não podemos passar incólumes pelos Açores. Aqui ao lado, calado, o que não é seu natural, está o homem do Mau Tempo no Canal!
Vitorino Nemésio, habitualmente bem disposto, alegre, brincalhão, rendia-se aos que o rodeavam,
- Desse Mau Tempo, Luis Augusto, tantos e tantos saíram para irem povoar novos mundos. Desde a América do Norte ao Brasil, para onde levaram o culto do Espírito Santo que a nossa grande Rainha Santa Isabel nos confiou.
- E o que me dizes dos que foram e criaram raízes por África, Ásia, Japão?
- Muito. Mas, como descobri no meio de tantas garrafas uma de vinho do Pico, vou afinar a garganta com uma delícia da minha terra, e do Antero, e já volto.
Nós também voltaremos, com a continuação deste Encontro de Escritores, daqui a uns dias.


15/01/2017





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