domingo, 8 de novembro de 2015



Matadouros
de Lisboa


Nas mais antigas religiões e nos escritos e legislação das primitivas civilizações encontram-se vestígios dos primeiros rudimentos da inspeção de carnes, missão de que se incumbiam os sacerdotes de determinadas castas, que tinham como principal mister velar pela vida humana.  
Referem-se lhe os manuscritos da Índia, principalmente o Código das Leis de Gentoux (?) e o das Leis de Manú.
De entre os povos antigos, destacaram-se os hebreus como legisladores em assuntos de higiene alimentar; a Bíblia e o Thalmud encerram quanto em tal época se sabia sobre a qualidade das carnes. No Levítico acha-se inscrita, no Capítulo IX, a relação dos animais que se podiam consumir.
O antigo Império Egípcio legou-nos interessante documentação como, por exemplo, nas admiráveis pinturas do templo de Thebas onde, entre elas, uma há que apresenta os sacerdotes inspecionando cuidadosamente as reses que se ofereciam a Amon. Parece que os deuses tinham, como os homens, acentuada repugnância pela oferenda de animais doentes.         
Na velha Grécia, diz-nos Homero que os seus heróis se alimentavam principalmente de carne. Na Ilíada descrevem-se inúmeros banquetes onde se sucediam os pratos compostos, quase exclusivamente, das mais variadas carnes. Na História Natural de Plínio e na obra Da Natureza dos Alimentos de Galeno, encontra-se exposto quanto interessava cumprir sobre tão importante assunto.
Até esta época não havia matadouros, isto é, locais privativos desti­nados à matança e preparação das reses destinadas ao consumo dos povos. Deve-se aos romanos a mais admirável organização sobre o comércio dos produtos cárneos, legada pela legislação dos tempos antigos, sendo os pri­meiros que construíram matadouros públicos, destinados ao abate dos ani­mais para abastecimento das grandes cidades. No ano 300 antes de J. C., os romanos sacrificavam as reses diante do Fórum, na presença dos deuses; os fulminantes progressos da sua civilização impeliram a prática de tal acto para locais afastados e a ele exclusivamente destinados.
Assim nasceram os primeiros matadouros, conhecidos no Império sob o nome de Macellus (mercado de carne). Entre os Macellus criados, os mais notáveis foram os de Roma, Macellus Liviae ou Livíanum, compostos de vários Livianae ou com­partimentos destinados à matança do gado e que se chamavam Boani, Suam, Pecuarii, em harmonia com a espécie animal neles abatida.
Um dos mais antigos matadouros de Lisboa terá sido, no ano de 1767, no antigo “Campo do Curral”, onde existiu bem perto a “Praça de Touros de Salitre” e o “Matadouro do Campo do Curral”, Mais tarde e, depois do terramoto que abalou Lisboa em 1755, passou a chamar-se “Campo de Santana”.
 

Campo de Sant’Anna em 1812

Sucederam-se os séculos e, através deles, têm-se sucessivamente melho­rado até atingirem o alto grau de aperfeiçoamento que, no século XX, carac­teriza estes estabelecimentos industriais.
Atualmente, um matadouro moderno é um estabelecimento industrial que visa uma tríplice finalidade: transformar em carne, própria para o con­sumo, os animais que lhe são confiados para abater; preparar os produtos derivados, destinados à pública alimentação; aproveitar os subprodutos, entre­gando-os ao comércio sob o seu mais alto valor industrial.
O aligeiradíssimo esboço histórico que, a largas pinceladas, se esboçou mostra como tão importante assunto tem constituído, desde os mais antigos tempos, motivo para preocupação de todos os povos.
Quando em 28 de Maio de 1926 se implantou a Ditadura Militar foram animadas as autarquias locais por um sopro de vitalidade que entusiasmou as populações do Norte a Sul do País. Os Municípios lançaram-se denodadamente na realização das mais justas, merecidas e ambicionadas aspirações materiais traduzidas por melhora­mentos que, até então, só aos grandes centros populacionais era dado usufruir.
A Câmara Municipal de Lisboa ao contágio da ânsia renovadora imediatamente viu a necessidade imperiosa da construção de um novo Matadouro, fora do centro citadino.
Ao deliberar o Município de Lisboa, em sessão de 22 de Dezembro de 1852, mandar proceder aos estudos para a construção do actual Matadouro, inaugurando em l de Janeiro de 1863, os terrenos que o circundavam encontravam-se totalmente libertos de quaisquer construções, visto que a Cruz do Taboado (onde é hoje a Direção Nacional da Polícia Judiciária, junto à Rua Escola de Medicina Veterinária) constituía, ainda, uma bairro relativamente afastado do centro citadino). Este Matadouro era abastecido pelo Mercado Geral de Gados, que, abatido deu lugar à Nova Feira Popular de Lisboa, em Entrecampos.
 

Mercado Geral de Gados, depois Feira Popular. Entrada pela Avenida da Répública

A cidade foi-se expandindo; como que por encanto rasgaram-se amplas avenidas; os seus progressos delinearam-se precisamente para os lados onde se tinha construído o Matadouro e, hoje (1937), este encontra-se situado numa das mais belas avenidas de Lisboa.
Foi o reconhecimento da sua deslocada situação que, entre outros moti­vos, determinou a resolução, reconhecida como imprescindível, de libertar a cidade de um estabelecimento que, apesar dos cuidados consagrados à manu­tenção da sua higiene, é insalubre por lei e incómodo de facto.
Não foram as acanhadas dimensões do Matadouro, construído para uma cidade que então contava uns escassos trezentos mil habitantes, nem a sua deslocada situação atual os únicos motivos que imperaram no espírito da Câmara para determinar a resolução da sua transferência. Prementes razões de ordem económica impõem a criação dum novo estabelecimento, com as condições precisas para interferir eficazmente na regularização do abastecimento de carnes, caracterizado este pela lamentável alternância de fases de superabundância de gado e de acentuada escassez. A sua construção serve, ainda, para estimular a produção do armentio bovino e ovino, pela garantia dada à lavoura metropolitana de se lhe conceder os meios necessários para colocar as suas reses na época em que as tem cevadas, subtraindo-se à dependência em que atualmente se encontra de só poder desfazer-se dos animais destinados ao mercado de Lisboa em pequenas partidas condicionadas pelas necessidades do consumo diário.
Esta contingência determina demoradas esperas que se traduzem pelo desperdício de milhares de quilos de carne, perdidos durante o período que decorre desde a oferta do gado até ao momento em que é abatido.
A escolha do terreno constituiu a primeira dificuldade a vencer.
Posta de parte a primitiva ideia de construir o matadouro numa pro­priedade municipal em tempos adquirida, mas que não reunia as condições precisas, tanto pela pequenez da área, como pelo acidentado da topografia, caiu a preferência numa propriedade que foi pertença da Manutenção Militar e que obedecia a premissas pré-estabelecidas e que são consideradas indispen­sáveis. Primeira, a área suficiente para nela se instalar: um grande frigorífico, o matadouro e respectivas oficinas de preparação de produtos, os edifícios da administração, o depósito de gados e, ainda, todas as numerosas dependências consideradas imprescindíveis; segunda, proximidade das vias férrea e fluvial; terceira, localização próximo da cidade.
Adquirida a propriedade e completada a área precisa pela expropriação de terrenos que lhe ficam ao Sul, delineou-se o plano geral do futuro matadouro obedecendo a um programa concebido por uma comissão constituída por um engenheiro e dois médicos-veterinários, por forma à satisfazer as exigências de uma cidade como Lisboa, aglomerado atual de 600.000 habitantes e que, como tudo faz prever, verá o seu índice demográfico sensivelmente aumentado dentro de um número de anos relativamente curto. O esquema de conjunto traçado para as instalações do Novo Matadouro abrange não só o espaço bas­tante para todas as secções, como prevê as necessárias ampliações para o futuro, quando o natural aumento da população citadina as exigir.
Reconhecida a vantagem de se fazer a marcha dos serviços, no terreno adquirido, a partir da margem do Tejo, estabeleceram-se as secções em alas paralelas a esta margem, por forma que os animais chegados pelas vias terres­tre, férrea e fluvial se concentrem todos no mesmo departamento, ou seja, no Depósito Geral de Gados (onde mais tarde se fez a Expo 98).
O Matadouro do Largo da Cruz do Taboado encerrou as suas atividades em 30 de Abril de 1954 e o de Cabo Frio inaugurado em 24 de Outubro de 1954... morreu para dar lugar à Expo 98!

E a propósito de carnes: ainda se come “aquele bife” no Nicola? Até o Bocage gostava!

05/11/2015



Um comentário:

  1. Gostei de saber um pouco mais das origens mais longínquas do matadouro de Lisboa. Sabe, tio Chico, quando comecei a trabalhar em 1975, foi precisamente na remodelação e modernização dos matadouros do país, que, com o fim do estado corporativo passaram das Câmaras Municipais para a Junta Nacional dos Produtos Pecuários. O conceito que antigamente vigorava de haver matadouros junto dos centros de consumo foi substituído pelo de aproximá-los às zonas de produção.

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