Cheiro a Mar - 1
Um mergulho nas profundezas da memória
E nunca que
ouvimos a nossa vida em nós,
Só ouvimos é
quando chega o seu silêncio...
José Luandino
Vieira, in “Águas do Mar, o Guerrilheiro”
1.
De Portugal até
Angola
Um mergulho nas
profundezas da memória, sem óculos nem “snorkel”,
o coração cheio de vontade de reviver alguns momentos que as águas
proporcionaram.
A
água é, como sabemos, o mais precioso dom que a natureza, com toda a sapiência
do Criador, nos legou. E está a tornar-se um dos mais raros, poluído pelos
resíduos industriais dos grandes potentados financeiros, em fase de destruição total
do planeta. Rios e mares.
Creio
que todos começamos a nossa vida por beber, além do maravilhoso leite materno,
água.
Em
pequeno, o quanto era chic aquelas
roupinhas “à marujo”, que se usavam em dias de festas! Um chamado às águas, há
tantos anos, que esqueci quando foi, mas ficou para sempre! Quem lembra destas
elegâncias???
As
brincadeiras nas praias, no tempo em que as ondas eram perigosas, um ou outro
mergulho meio a medo, porque as ondas grandes ninguém as enfrentava e hoje são
brincadeira de surfistas. Nas marés baixas, o mar afastava-se de mansinho, afloravam
rochas pequenas, cobertas de rasas algas, onde brincávamos com minúsculos
caranguejos e anémonas, e nas grandes marés apanhávamos mexilhões, lapas e
percebes (que delícia!). Comendo-os, muitas vezes ali mesmo, come-se e bebe-se
mar, tal como disse Tomaz de Figueiredo: Aquele
gosto e o cheiro a mar nunca mais saíram das papilas sensoriais, do coração, do
pensamento, da vontade de o ter sempre por perto.
E
tê-lo sempre por perto nem que seja para sentar em qualquer lugar e ficar
olhando, olhando, sonhando.
Andar
pelas margens do Tejo, ver aquelas lindas asas brancas como cisnes, dos
pequeninos “Lusitos” de instrução a futuros mareantes, passeando em cima das
águas...
Talvez
1940 e tal. Criança, foi para mim um espetáculo “quase grandioso” atravessar o
rio Tejo, em Vila Franca de Xira, numa jangada. Ainda nem projetada estava a
ponte que continua a chamar-se “Marechal Carmona” e que, por ter em cada lado,
nas entradas, uma esfinge do então simpático Presidente da República, ficou
conhecida como a "Ponte Bi-Carmonato de Pontássio”. Genial.
Inaugurada
em 1951, já pelo Presidente Craveiro Lopes e Salazar que chegaram a Vila
Franca, imponentes, numa viatura espetacular: um “Landau de Cinco Vidros”,
carro lindíssimo que se encontra hoje no Museu de
Carros de Cavalos na Quinta da Bouça perto de Viana do Castelo.
A
travessia, com os carros a balouçarem a jangada quando entravam, era
emocionante!
Outras
travessias, por vezes com o Tejo mal humorado, muitas de Lisboa para o
Barreiro, onde apanhava o comboio da linha “Sul e Sueste” para Évora. Na Casa
Branca, quilómetros antes de ali parar, à nossa espera já nos invadia o fumo e
o cheirinho maravilhoso, uummm... das bifanas incomparáveis que estavam a
fritar no cais, e o copo dum tinto mais que alentejano que se bebia no bar da
estação tirado diretamente do pipo, um candeeiro de petróleo dando a todo o
ambiente um misto de paz e verdade, o comboio separava-se: parte seguia para o
Algarve e outra para Évora e audiante. Os
que íamos para a famosa e saudosa Escola de Regentes Agrícolas, a Herdade da
Mitra, saíamos no apeadeiro do Tojal, hoje desativado, onde nos aguardava uma
carroça da Mitra para nos levar as malas! Os seis ou oito quilómetros que nos
separavam da Escola eram galgados a pé. E à noite.
Deixemos
o sequêro e voltemos às águas.
Saudade
da calma e linda baía de Cascais, algumas velejadas no Sharpie 9 do meu querido
irmão, compadre e padrinho Luis Quintella, e ser projetado para fora pelas suas
“traiçoeiras” brincadeiras ao cambar quando eu estava distraído e a retranca me
obrigava a banho forçado!
Lembro
bem as primeiras águas que cruzei. Doces.
Por
cima das águas, não esqueço duas visitas importantes: uma ao Navio Escola do
Brasil, “Almirante Saldanha”, em 1946
(?) na primeira viagem que este belíssimo navio fez à Europa, instruindo os
Guarda Marinha, os “Espadinhas”,
entre os quais um primo que nos deu um prazer imenso ter conhecido.
Em
1950 a primeira “Grande Viagem Oceânica”! Ano Santo, excursão a Roma de rapazes
da Acção Católica, no “Mouzinho”,
navio comprado em 1929 e que morreu em 1954. Enjoo de começo e muita alegria a
seguir, com amigos que muitos já se foram e outros ainda por cá estão e
preenchem o nosso coração. Os que tinham dinheiro viajavam nas cabines. O
maralhal, nos porões transformados em caserna de combate. Uma maravilha! Vimos
Roma, alugámos uma Vespa e fomos recebidos pelo Papa Pio XII em Castel Gandolfo.
Ficaria
mal se não dissesse que ficámos hospedados num colégio de freiras – era verão e
não havia aulas – e as boas das freirinhas não tinham mãos a medir à voracidade
com que aquela rapaziada devorava as espantosamente boas “paste cotta con salsa di pomodoro e formaggio”. Vão 65 anos e
ainda hoje me abrem o apetite!
Mais
tarde, já nos anos 50 e qualquer coisa, a visita a Portugal do porta-aviões
americano “Coral Sea”, um imenso
gigantão dos mares. Impressionou, sobretudo por dentro, o tamanho do elevador
para os aviões que lhe estacionavam no porão (130!); parecia que todo o cais
lhe caberia dentro. 295 metros de comprimento e 230.000 HP de força dos motores,
33 nós de velocidade! Um monstro dos mares.
“Coral Sea”
fotografado em 1986 já com novos aviões a bordo.
Depois
começaram as águas a “sério”.
1954.
Primeiro de Agosto. Casado há pouco mais de duas semanas, embarcava no “Moçambique”, sozinho, a caminho de
Angola. Deixava no Cais da Rocha, em Lisboa, mãe, irmãos, tias, sogros e a
noiva que só iria ter comigo dois meses e meio mais tarde. O navio a
afastar-se, do cais uns lenços brancos em acenos tristes e eu, coração
apertado, apertadíssimo, levantava tristemente a mão para que me vissem entre
as serpentinas que atiravam os emigrantes para fingirem que era uma festa. A
maioria com os olhos lacrimejando!
Meio
enjoado nos primeiros dias, a escala na Madeira, com toda a sua beleza natural
e um casual encontro com um amigo de infância, o querido Zé Perestrello,
retemperou-me as forças e um pouco do espírito. Depois, uma semana mais de mar,
com peixes voadores e golfinhos alegrando a monotonia, a disposição já refeita,
boa comida – na mesa do comissário – sem que as saudades abrandassem, uma
manhã, bem cedo, surge no horizonte um “chapéu mexicano com algodão envolvendo
a parte média do cone”. São Tomé.
Ainda
cedo o navio lança âncora na bela baía Ana Chaves, pouco afastado do cais.
As
minhas tias sabiam que ali vivia um afastado parente, Humberto Gomes de Amorim,
administrador das roças do Banco Ultramarino; mandaram-lhe um telegrama
avisando da passagem do “parente-emigrante”.
Homem
influente na ilha, lá estava em terra, brilhante careca à mostra. Entrou na
primeira lancha que se dirigiu ao navio e foi a bordo buscar-me. Simpático,
levou-me para tomar o “mata bicho” cheio de frutas tropicais e um belo café na
varanda da sua casa – quase um palácio – e depois dar uma volta por aquela ilha
das maravilhas. Tivemos dificuldade em saber qual era o nosso antepassado comum,
mas ao fim de muito procurarmos lá estava: o bisavô dele, Francisco Gomes de
Amorim, tio e padrinho do meu também bisavô e homónimo! Bingo.
Mais
um dia e meio de mar entrámos finalmente na baía de Luanda, à noite. Dez dias
de mar, e toda uma nova vida pela frente.
05/04/2015
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