domingo, 22 de novembro de 2015




Lisboetas – IV

As ossadas e o Mosteiro dos Jerónimos

Quem não conhece o Mosteiro dos Jerónimos? Talvez o mais importante, e o mais visitado monumento de Portugal. Uma obra única e bem portuguesa.
Foi mandado construir por Dom Manuel I, no lugar onde o Infante Dom Henrique tinha construído, para os mareantes, uma pequena ermida da Ordem de Cristo à entrada de Lisboa, junto às margens do Tejo. Em 1499 Dom Manuel fez doação do mosteiro aos monges de S. Jerónimo.
Foi o célebre arquiteto francês Jacques Boytac, Diogo Boitaca em português, o grande mestre do manuelino, o encarregado de dirigir tão importantes trabalhos que começaram em 1502, ano em que começou também a traçar o que seria a maravilhosa Torre de Belém.
À frente destas obras se conservou até 1516. No ano seguinte foi João de Castilho o responsável, junto com uma série de grandes artistas portugueses, franceses, espanhóis e outros.
Começa por aqui o mistério do Mosteiro dos Jerónimos.
Num quadro de 1657, que temos que aceitar como uma “foto” autêntica, o estilo manuelino por ali... ainda estaria para ser pensado! Vê-se o pórtico que parece igual ao de hoje e pouco mais.
  


Em uma outra pintura, um pouco mais recente, começa a ver-se um “manuelinho” nascente, mas nada que se possa comparar ao que é hoje.


Em 1833 o Mosteiro era uma ruina e foi entregue à Casa Pia para acolher jovens, mendigos e desfavorecidos. Começa somente a ser reconstruído em 1860, obra, imensa, que foi até ao fim do século.


Isto nos leva a crer que os Jerónimos são uma bela obra do século ... XIX!
Lá estarão sepultados, entre outros, o rei D. Manuel e sua segunda mulher D. Maria de Aragão e Castela, D. João III e sua mulher D. Catarina da Áustria, e... , e dizem também que lá está o triste, inexperiente e eternamente aguardado D. Sebastião que nunca voltou do Magrebe, nem morto, mas interessantes também são os túmulos de Vasco da Gama e de Luis de Camões. Sem dúvida duas belas peças escultóricas, em estilo “manuelininho” ambas do século XIX.

Mas parece que alguns destes túmulos são uma farsa.

Comecemos por Dom Sebastião. Em Julho deste ano escrevi um pouco sobre os Falsos Sebastiões, mas repito aqui uma pequena passagem, relembrando que o povo português ansiava pelo retorno do seu jovem rei, o que prejudicava a aceitação do espanhol Filipe II/I:

“O primeiro fingido a manifestar-se foi El-Rei D. Filipe I de Portugal no ano de 1582, mandando vir de Ceuta um corpo que lá esta­va depositado, dizendo ser o d’El-Rei D. Sebastião e o enterrou no Real Convento de Belém, na capela que está no Cruzeiro, da banda da Epístola e achando-se o dito Rei D. Filipe pessoalmente a todas estas cerimónias.”

Mentira. Mandaram um corpo qualquer e o espanhol enganou uns quantos portugueses. Poucos.

Continuemos pelo túmulo de Vasco da Gama, a quem o rei D. Manuel, em 1519 deu o título de Conde da Vidigueira, o primeiro português a ser nobilitado sem ser de sangue real. Morreu na Índia, em Calicut em 1524 e foi sepultado naquela cidade na Igreja de São Francisco. Em 1539 os seus restos mortais são trasladados para Portugal, mais concretamente para a Convento de Nossa Senhora das Relíquias do Carmo da Vidigueira, onde repousou, tranquilo até... dizem, 1880. Talvez antes, porque com a abolição das ordens religiosas em 1834, talvez, talvez, alguém tenha querido salvar os despojos do grande Almirante e os escondido nalgum outro lugar. Mas oficialmente diz-se que em 1880 foi para os Jerónimos, colocado ao lado de Camões. Terá ido, terá... porque parece que os vidigueirenses na ocasião se opuseram à saída do seu mais ilustre personagem. Aliás em 1884, sem saber qual a data certa e o nome, “um jornal lisboeta afirmou saber onde se encontravam os verdadeiros restos de Vasco da Gama” e que não estariam nos Jerónimos. Mistério!

E muito menos ao lado dos ossos de Camões, porque com o maior vate das letras lusas o caso é mais complicado e.... vigarizado.

Viveu Luis de Camões seus anos finais num quarto de uma casa próxima da Igreja de Sant’Ana, num estado, segundo narra a tradição, da mais indigna pobreza. Seria um exagero romântico, pois ainda podia manter o escravo Jau, que trouxera do oriente, e documentos oficiais atestam que dispunha de alguns meios de vida. Parece que, tendo adoecido com a peste foi levado para o hospital, onde faleceu a 10 de junho de 1579, sendo enterrado numa campa rasa na Igreja de Sant’Ana, ou no cemitério dos pobres do mesmo hospital.

Depois do terramoto de 1755, que destruiu a maior parte de Lisboa, foram feitas tentativas para se reencontrarem os despojos de Camões, todas frustradas. Mas....

Em 1858 uma comissão foi constituída e encarregada por Rodrigo da Fonseca, então ministro do Reino, de encontrar as ossadas do lírico e lhe dar sepultura digna, para coincidir com o tricentenário da sua morte, outro erro, porque terá falecido em 1579. Só nesse ano morreram em Lisboa mais de 40.000 pessoas, e as freiras do convento mais não faziam do que as “encaixar” de qualquer modo, em qualquer canto da igreja ou fora dela, ninguém cuidando de assinalar o que era de quem, e certamente as freirinhas nunca teriam ouvido falar em Camões, Lusíadas nem, quem sabe, na Ilha dos Amores, por quem certamente, muitas suspiravam!

No entanto “até a própria comissão teve dúvidas da autenticidade do que trasladou”.

No relatório da comissão pode ler-se, referindo os trabalhos de escavação empreendidos em 1858, que “a uma certa altura viram-se ossos em forma que se lhe não tinha mexido. Alguns d’estes eram pois sem dúvida os de Luiz de Camões; mas quais, se nem era possível distinguir a sepultura”! 

A solução encontrada foi carregar uma boa braçada de ossos, quaisquer, e dizer que seriam do vate.

Nada disso impediu a farsa.

“Levaram-se os ossos em procissão, com a máxima solenidade, desde o velho convento de Sant’Ana até ao Arsenal, e dali, numa esquadrilha de vapores, ao cais de Belém, e meteram-se no venerando templo dos Jerónimos, dentro de um caixão, ossos, com que se podiam compor vários esqueletos – até de mulheres – e dizia-se em voz alta que eram os restos do imortal autor dos Lusíadas. Pela boca pequena, afirmavam todos, serem despojos de sapateiros e freiras! Deixaram ir o rei e a rainha pôr flores no caixão das madres de Sant’Ana e dos confrades de S. Crispim, bem como no de Vasco da Gama, igualmente apócrifo; e ninguém na imprensa ergueu a voz para impedir isto! Ainda mais: negou-se lugar a quem quis impedi-lo.

Apenas uma sociedade científica, por instâncias que eu fiz a um dos seus membros, encetou a questão, mostrando a necessidade de se examinarem os ossos, antes da pro­cissão; e neste sentido oficiou a outra corporação sábia. Esta jul­gou prudente atabafar o negócio, dizendo «que deixassem ir tudo na fé dos padrinhos»!                                   
Deixou-se ir. Prosseguiu o ruído entusiástico, as músicas, os foguetes e salvas, as iluminações esplêndidas, os discursos elo­quentes, os versos, que eu também fiz, sem ter nenhuma admiração postiça, mas simplesmente com a que sempre tivera e tenho ainda hoje. Passada a onda de papelão pintado, pareceu conveniente nomear-se uma comissão para ir procurar os ossos de Camões no convento de Sant’Anna! E nomeou-se! E ela, cônscia da imensa responsabilidade que lhe cabia, depois dos estupendos factos que acabo de narrar, procurou, trabalhou com zelo, consciência e pro­bidade, com todas as qualidades e virtudes de que se vêem já tão raros exemplos n'esta terra. Findos os seus estudos fez deles extenso e perfeito relatório, provando, à luz da mais sensata e ri­gorosa crítica, que os restos do imortal cantor das nossas glórias tinham sido tirados desde muitos anos, talvez que até com intuitos criminosos, do lugar onde fora a sua verdadeira sepultura; e que estavam perdidos para sempre. Entretanto, pode ir ver quem quiser – se não os foram tirar já de lá, à capucha, os caixões depositados no mosteiro de Belém, dos quais se afirmou oficialmente que contém os restos de Camões e os de Vasco da Gama.”
Em 2007, dois arqueólogos, Rosa e Mário Varela Gomes escavaram o sítio do antigo convento, e dizem que os ossuários eram fossas escavadas no solo! Trezentos anos depois encontrar naqueles escombros e fossas os ossos de Camões, sempre pareceu uma brincadeira de muito mau gosto.
Mas lá está um lindo túmulo, falso, no Jerónimos.
Até o túmulo de Alexandre Herculano foi alterado. Tiraram-lhe o baldaquino.

Notas:
1.-  O que vai escrito em itálico é tirado do livro “Memórias Biográficas de Garrett” de Francisco Gomes de Amorim, 1827-1891.
2.- No site “oficial” do Governo de Portugal – Secretaria de Estado da Cultura”, http://www.mosteirojeronimos.pt/pt/index.php?s=white&pid=221  tem estes dizeres:
Em 1888, é colocado o túmulo de Alexandre Herculano (que foi modificado no século XX).
Para celebrar o IV Centenário da chegada de Vasco da Gama à Índia (1898), decide-se em 1894 concluir as obras de restauro. Os túmulos de Vasco da Gama e Luís de Camões, da autoria do escultor Costa Mota, são colocados na capela lateral sul (Foi em 1880). No ano seguinte o Mosteiro recebe os restos mortais do poeta João de Deus. Posteriormente, instalam-se também os túmulos de algumas figuras da literatura e política: Almeida Garret (1902), Sidónio Pais (1918), Guerra Junqueiro (1923) e Teófilo Braga (1924).
Nenhum destes últimos está nos Jerónimos. A Secretaria da Cultura (Cultura?) não poderia corrigir estes dados... falsos?

20/11/2015



2 comentários:

  1. O Panteão Nacional, criado por Decreto de 26 de setembro de 1836, encontra-se instalado em Lisboa, na Igreja de Santa Engrácia.
    É ainda reconhecido o estatuto de Panteão Nacional, sem prejuízo da prática do culto religioso, ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, e à Igreja de Santa Cruz, em Coimbra.
    As personalidades sepultadas são:

    Almeida Garrett (1799-1854), escritor e político;
    Amália Rodrigues (1920-1999), fadista;
    Aquilino Ribeiro (1885-1963), escritor[6][7][8];
    Eusébio da Silva Ferreira (1942-2014), futebolista;
    Guerra Junqueiro (1850-1923), escritor;
    Humberto Delgado (1906-1965), opositor ao Estado Novo;
    João de Deus (1830-1896), escritor;
    Manuel de Arriaga (1840-1917), presidente da República;
    Óscar Carmona (1869-1951), presidente da República;
    Sidónio Pais (1872-1918), presidente da República;
    Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), escritora;
    Teófilo Braga (1843-1924), presidente da República

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    1. Falta lá o de salazar pq nunca ouve um governante que se preocupasse mais com o pais, como ele.

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