Cheiro a Mar - 2
Não
esqueças, nunca,
Que
é ficar para trás não ir avante.
Ramon
de Campoamor- Poeta espanhol, 1817-1910
2.
Por África e não
só
Como
seria África? Igual ao que víamos nos filmes do Tarzan? O tempo iria
desvendar-nos muito desse continente magnífico, que tanto nos marcou pela vida
fora.
Por
estas terras, muitas foram as andanças por cima das águas. Logo de entrada,
quando em Angola só havia dois pedaços de estradas asfaltadas, 60 km entre
Luanda e Catete, que parecia uma montanha russa, tantos os altos e baixos, e
mais 30 entre Benguela e Lobito, tudo mais naquela extensa terra era mesmo de
terra, e pontes... nem me lembro já se havia, ou quantas, de modo que o cruzar
os rios era feito em toscas, mas fortes jangadas de madeira. Um cabo de aço
preso nas duas margens, homens fortes, troncos nus, a ximbicarem, e na travessia do Quanza, na estrada para a Quibala,
cantavam:
“Vai, não vai / vira, não vira /
mata-bicho... cem angolares”
para
“comoverem” os motoristas a não esquecerem de lhes dar o musendu, ou o matabisu,
uma gorjeta suplementar! Sempre recebiam.
E
havia jangadas em muitas estradas. Na estrada para a reserva da Quissama, no
Cubango, e muito mais.
A caminho da Quissama, já com
jangada a motor.
Ali está o Fusca do meu grande
amigo Armando Avillez
Em
alguns ribeiros se as chuvas não tivessem sido muito fortes, passava-se com o
carro por dentro da água. No tempo em que perguntar pelo estado da estrada a
resposta era simples: se não tivesse chovido, “passa” se tivesse caído uma boa
chuvarada, “não passa”! E quando não passava, à espera de baixarem as águas, às
vezes mais de um dia, dormia-se dentro do carro! Tudo era aventura!
Pelas "auto-estradas de Angola
Por
mares, muitas viagens de navios: de volta a Lisboa, saído do Lobito, primeiro
no velho “Quanza”, que parou em
Luanda, Pointe Noire, ex-Congo Belga, onde entrou um casal que se tornou um dos
mais fortes amigos que tive: a Arlete e o Zé Neto! A seguir um dia na Madeira
para descarregar 1.500 toneladas de milho que Angola mandava para aquela terra
(hoje não manda nada!) e nos proporcionou visitar aquela maravilhosa ilha.
Regresso a Angola, de avião e mais uma vez no “Niassa”, do Lobito para Lisboa. Sempre sozinho nestes percursos.
Finalmente, desta vez levando junto a família, ainda só com dois filhos, de
volta a Angola no “Pátria”. Muito mar
cruzado!
Vivendo
em Luanda e tendo que me deslocar com frequência, e com receio de enjoar nos
aviões, os brilhantes DC3, algumas idas a São Tomé no “Moçambique” e no “Vera Cruz”, e alguns passeios especiais neste
último, convidados pelo comandante, saudoso primo, fazendo, em dois dias
Luanda-Lobito-Luanda. Tudo isto misturado com muito voo para a Europa e dentro
de Angola, nos aviões de carreira e em teco-tecos
alugados em serviço da Cuca.
No
meio de estudos e estágios em fábricas, na Europa, um dia, depois de tantas
vezes ter visto um risco vermelho num mapa da Europa que guardava havia muitos
anos, entendi que aquele risco indicava uma ligação marítima entre Harwich na
Inglaterra e Esbjerg na Dinamarca. Uma vez em Londres, 1961, fui informar-me.
Havia! Comprei a passagem para o casal e mais o nosso belo carro na altura, um
Simca Aronde. Saímos de Harwich ao meio dia, um inabitual calor de verão nas
terras de suas majestades, o Hide Park cheio de londoners estendidos ao sol, à noite já navegando no Mar do Norte
um mau tempo incrível fez o barco balançar como louco. Parte da viagem incluía
jantar, típico de dinamarquês – smorrebrod
com arenque fumado, que achámos mais ou menos intragável – a minha mulher cheia
de medo do temporal não comeu nem dormiu e eu quase cai várias vezes do beliche
com os balanços, para chegarmos à Dinamarca no dia seguinte às sete da manhã e
zero graus de temperatura! Foi barato. Ainda hoje esse trajeto para dois
adultos e um carro médio custa £ 150,0.
Mas
o mar lá estava sempre, sempre, a banhar Angola, convidando a que o gozássemos,
tentador, lindo, e começa a doença da vela roendo-me as ideias desde a mais
tenra idade, a vela, que me fez cair apaixonado pelo Argus, que acabei por
comprar, além dum pequeno Moth Europa para um dos filhos se ir iniciando.
Com
muita animação e vontade, organizou-se o 1° curso de Patrão de Costa (no
Brasil, Mestre Amador) e mais tarde, sozinho, em Moçambique, com o auxílio de
um jovem oficial da Marinha, a difícil Carta de Patrão de Alto Mar (Capitão
Amador no Brasil), no tempo em que não havia GPS, e tudo era feito na base do
sextante, cálculos matemáticos, consulta de “cartas de altura”, perto da costa
a orientação pela rádio, uma boa canseira de que o próprio jovem oficial já nem
se lembrava!
Mas
tinha o MEU barco! Agora sim, podia gozar a independência, o horizonte
infinito, a calma e o chuá-chuá da
água a roçar pelo casco, os fins de semana a navegar em mar aberto ou no Mussulo,
sem ter que ficar espalmado na praia a apanhar sol como um largarto e ficar a
semana toda incomodado com a queimadura!...
Não
falhava um fim de semana! Marinheiros “auxiliares” os filhos: um, dois ou todos
conforme a disposição deles!
Um dos “auxiliares”: Tiago com
pouco mais de um ano
O
Sonho de um dia fazer uma navegação a sério, correndo o mundo, levava-me a
sonhar...
Transferido
para Moçambique, não podia levar o Argus. Calhou, no meio das viagens pela
Europa ir a Londres onde aproveitei para comprar os planos dum catamaran
polinésio de 40’, sem cabine central, simplesmente um estrado unindo os dois
cascos, que considerava ideal para passear pelas costas africanas e arribar às
praias sem dificuldade. Procura em Lourenço Marques um bom construtor naval,
discutimos o projeto, ele diz que tem que encomendar as madeiras de qualidade
que teriam de esperar pelo menos um ano para não empenarem depois de cortadas.
Se tem que ser assim, é. Quando um dia, uns dois anos depois, ele me avisa que
poderia começar a obra, tudo pronto, madeiras em condições,... o “glorioso” vintecincobarraquatro com cravos
vermelhos antecipadamente encomendados pelo partido dos comunas, que estava a
par de tudo, acabou de vez com o meu barato
e o de milhares de outros.
Até
uma prancha de surf à vela que tinha encomendado em França nunca recebi!
Entretanto
só tivemos ocasião de comprar um Optimist para os filhos menores e um Vaurien
para os outros, que ainda conseguiram chegar conosco de volta a Luanda.
Mas
já era tarde para gozar o mar!
Pouco
depois... acabou-se África. Refúgio no Brasil, com a mulher e sete filhos no
lombo. E aqui não houve mais dinheiro para fantasias desportivas!
Ficaram
os sonhos dos mares, as saudades, dos rios, das savanas e muito das gentes das
terras africanas!
Só
a assinaturas de algumas revistas de vela onde, feito criança, ia “estudando” e
definindo o barco que melhor se adaptaria para um dia... um dia... o sonhado cruzeiro
à volta do mundo, feito Joshua Slocum, por milagre, se tornar realidade!
(continua)