quarta-feira, 14 de maio de 2014




Histórias da África
por onde os portugueses andaram
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Nos exemplos de Tratados a seguir apresentados há uma ideia bastante fiel e realista do modus vivendi ou modus operandi dos portugueses em África.
Negociava-se principalmente em escravos, comércio que os africanos praticavam desde sempre, o que não constituiu nenhuma invenção dos europeus. Escravos, marfim, cera e pouco ou nada mais.
Um dos aspetos importante a notar é a definição dos “impostos” que sempre os portugueses tinham que pagar às autoridades nativas para se instalarem ou negociarem em terras de reinos africanos, o que é reconhecido e destacadamente afirmado nos Tratados assinados entre os reis e príncipes africanos e as autoridades portuguesas em nome do Governo de Angola e sobretudo do rei de Portugal.
Os Tratados, de que se reproduz uma parte, foram assinados pelo então Major Henrique Augusto Dias de Carvalho, e estão descritos em livros por ele publicados.

Tratado de Comercio
Celebrado entre Portugal e Mona Samba (Capenda)
23 January1885

Carvalho, Henrique A D de – “A Lunda” pp. 39-43
Havendo a Expedição portugueza que em missão especial do Governo de Sua Magestade se dirige ao Muatiânvua, com o consentimento de Mona Mahango (Mona Samba), seus filhos e mais pessoas de familia, feito construir proximo á sua ambanza, uma casa de paredes barradas, ... consentimento que importou em 50 peças de fazenda, fica sendo esta casa propriedade do Estado Portuguez, conhecida pelo nome de Estação Civilizadora Portugueza Costa e Silva, podendo n’ela estabelecer-se a todo o tempo, sem outros encargos, a missão que o governo de Sua Magestade Fidelissima haja por bem para esse fim nomear.
Para todos os effeitos o chefe d’esta missão será considerado por Mona Samba, por Mona Buizo (Mona Cafunfo), por seus filhos, mais pessoas de familia e povos, delegado do governo geral de Angola, n’esta região, e será elle que de acordo com os dois potentados Mona Samba ou Mona Buizo, resolverá todas as pendencias que possam suscitar-se entre Portuguezes e os povos sob seus dominios, e quem fará cumprir áquelles o que fica estipulado n’este tratado.
O delegado do governo geral de Angola, quando julgue necessario para mais desenvolvimento da missão ou para o estabelecimento de novas, n’esta ou em outra localidade nos dominios de Mona Mahango (Samba) ou de Mona Cafunfo (Buizo) fará construir casas, templos religiosos, armazens, officinas e quaesquer outras dependencias sem que para isso tenha a pagar mais do que o valor de uma jarda de fazenda por cada dez metros quadrados de terreno occupado pelas referidas edificações, sendo as medições feitas pelo chefe da povoação mais proxima com a assistencia do delegado do governo geral de Angola, e um impunga (representante) de Mona Mahango ou de Mona Cafunfo.
Os subditos de Mona Mahango e de Mona Cafunfo, quando estiverem em terras portuguezes, serão considerados subditos de Sua Magestade Fidelissima, e gozam dos mesmos direitos e regalias que os seus desfructam.
O delegado do governo geral de Angola, terá á sua disposição a força necessaria para manter a sua auctoridade, garantir a segurança de pessoas e de bens da colonia e estações portuguezas, prestar a Mona Mahango, Mona Cafunfo, chefes de povoações e aos seus povos, todo o auxilio indispensavel no cumprimento das clausulas que neste se consignam, e ainda contra os malfeitores, quando esses socorros sejam pedidos por qualquer daquelles dois potentados e quando taes socorros não arrastem consigo compromissos á colonia e estações portuguezes.
O subdito portuguez que só queira transitar pelas terras de Mona Mahango ou Mona Cafunfo, fazendo-se acompanhar de cargas de commercio, terá de pagar quatro peças de fazenda a quem pertençam essas terras: mas se o seu fim, fór negociar pelo transito, então obterá uma licença especial para commercio, pela qual paga duas peças e em qualquer dos casos, nas povoações em que tenha de acampar pagará uma peça ao chefe d’essa povoação.
Se o subdito portuguez pretender estabelecer-se temporariamente (até 2 meses) em qualquer localidade, em logar duma terra terá a pagar ao chefe da localidade, duas peças, por seis mezes ou por anno, e para esse fim obter uma licença de Mona Samba ou Mona Buizo, a qual no primeiro caso, importará em quatro peças de fazenda e no segundo caso, em seis peças, além das duas que já tem de pagar ao chefe da povoação.
Quando o residente construir casa barrada para si e sua feitória, qualquer que seja a grandeza, não o poderá fazer sem licença de Mona Mahango ou de Mona Cafunfo, e esta importará em doze peças de fazenda, para qualquer destes potentados e tres para o chefe da povoação mais próxima.
As terras para lavrar serão concedidas gratuitamente, mas as ocupadas por quaesquer edificações nellas comprehendidas, ficam sujeitas ao que já fica classificado.
As licenças são obtidas como fica dito, por intervenção do delegado do governo geral de Angola, e os que no prazo de quinze dias as não tenham pago, procedente aviso do mesmo delegado, serão multados no triplo do valor das licenças, ficando 1/3 na delegacia para as despezas que ha a fazer e 2/3 entregues a Mona Mahango ou a Mona Cafunfo, a quem pertençam.
Estação civilizadora Costa e Silva, 18 fevereiro de 1885.
Extrahido do livro do expediente da Expedição portugueza ao Muatiânvua n.º 2, que foi presente á votação de Mona Samba, Senhor de Mahango e todos os do seu conselho na sua ambanza em 23 de fevereiro de 1885 á qual assistiram os Portuguezes residentes no auto que se fez levantar.



Auto de eleição do embaixador a enviar a Luanda a solicitar a protecção de Portugal na Lunda

CARVALHO, Henrique A. D de – “A Lunda”, pp 197-202
Aos doze dias do mez de Junho do anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e oitenta e seis no Acampamento do Muatiânvua eleito, Ianvo vulgo Xa Madiamba, situado dois kilometros a leste da povoação do Chibango na margem esquerda do rio Chiumbue, no logar das audiências gerais estando reunidos os Muatas de lucano: Bungulo Anzovo, Chibango Cacuruba senhor da terra, Muzooli Mucanza sobrinho e herdeiro do assassinado Mucanza governador de Mataba, Tambu de Cabongo chefe dos Turubas entre os rios Chiumbue, Cassai e Luembe; e também os representantes de Muene Dinhinga, de Xa Cambuji, dos Muatas Cumbana, Caungula, de Muitia, de Muene Panda e outros e muito povo; o Muatiânvua eleito, sentado na cadeira de espaldar dourada debaixo do docel e devidamente fardado annunciou que chamara os quilolos áquella reunião para se despachar a embaixada que ia seguir para Loanda segundo as deliberações tomadas na ultima audiência por elles quilolos, mas era preciso antes que todos ouvissem o que se escreveu na mucanda (auto) e firmassem com o seu signal para se provar a Muene Puto que eram desejos de todos o que se pedia na mucanda.
Mostraram todos a sua adhesão ao que dissera Muatiânvua batendo palmadas e proferindo as palavras do uso.
O Chefe da Expedição disse: que tendo sido procurado pelo Muatiânvua e os principais quilolos para fazer constar a SUA MAGESTADE FEDELISSIMA o desejo que todos teem que o Governo do mesmo Augusto Senhor faça encorporar nos domínios da sua coroa as terras do Estado do Muatiânvua; escreveu no sentido em que lhe fora feito o pedido e ordenou que eu interprete António Bezerra de Lisboa lhe fizesse comprehender na sua língua o que estava escrito.
Depois de algumas explicações e demoradas considerações do Muitia e do Muata Bungulo, deliberou-se que fosse representado o Muatiânvua por seu sobrinho Muteba porém por causa de força maior o Cacuata Capenda é substituído pelo Cacuata Noeji e como particular de Muteba irá o Caxalapoli de confiança do Muatiânvua Tanda Ianvo e determina-se a Caungula que dê um representante seu e peça a Muata Cumbana para apresentar um delle os quaes se encorporarão aos que daqui partem.
O Muatiânvua e todos os grandes do Estado da Lunda representados pelos que firmam este auto reconhecem a Soberania de Portugal e pedem ao seu Governo que torne effectiva a ocupação da Lunda como terras portuguezas conservando entre os indiginas o que tem sido de seu uso e não importe embaraços á administração portugueza, e mantenha a integridade dos territórios como propriedade do antigo ESTADO DO MUATIÂNVUA.
É abolida a pena da morte logo que a autoridade portugueza junto do Muatiânvua resgate a vida dos sentenciados e faça seguir estes debaixo de prisão para as terras de Angola.
Fica proibida para fora das terras a venda ou troca de gente por artigos de commercio e nas terras não se pode tal transação fazer sem ser ouvida a auctoridade portugueza que tem preferência porque lhes dá a carta de alforria, e como seus tutellados os educa no trabalho.
Em quanto as autoridades portuguezas não possam dispor de recursos indispensáveis para serem devidamente educados os menores com direito á SUCESSÂO ao poder no Estado do Muatiânvua e nos estados em que elle se subdivide, as mesmas auctoridades proporcionam os meios de os fazer educar nas terras portuguezas em que não faltam recursos para esse fim.
O Muatiânvua depois de tomar posse da governação do Estado, comprometteu-se a validar todos os Tratados e nomeações feitas pelo Chefe da Expedição portugueza o Sr. Henrique Dias de Carvalho em terras da Lunda sem distinção de tribus; e desde já os quilolos que formam o seu séquito se obrigam a sujeitar-se á arbitragem do mesmo Chefe nas pendências a resolver com MONA QUISSENGUE chefe principal dos quiocos entre os rios de Chicapa e Luembe de modo que nesta região fique bem firmada a paz entre as tribus sob o domínio do Muatiânvua e as sob o domínio d’aquelle.
Pedem o Muatiânvua e os representantes da corte ao Governo de SUA MAGESTADE FIDELISSIMA, auctoridades portuguezas, força de soldados brancos para distribuir pelos paizes do Estado (LUNDA), mestres de officios, padres, médicos, lavradores, industriaes e negociantes.
E como todos os potentados e mais indivíduos presentes nada mais tinham a acrescentar ao que fica exposto, passou-se ás cerimónias da nomeação do embaixador que consistiram no seguinte:
Chamado MUTEBA veiu agachado collocar-se á frente do estrado sobre que estava collocada a cadeira e ahi ficou agachado. O Muatiânvua estendendo o braço direito sobre a cabeça delle disse umas palavras do rito que se resumem: em annunciar que o vae representar na longa jornada e tomará o seu nome e honras e nessa qualidade falará com o representante do grande Muene Puto em Loanda e por ter confiança nelle o escolhera e tudo que lhe disser é dito pelo próprio MUATIÂNVUA e tome muita conta no que ouvir para de tudo dar conhecimento ao Estado, lembrando-se que vai preparar um melhor futuro para este.
Depois recebendo de um prato que lhe apresentou muene Casse, mestre de cerimonias, um envolucro com pó vermelho dum lado, e branco do outro; ora tomando pitadas dum ora do outro fez-lhe cruzes na testa, hombros, peito, costa e braços pela parte interior, falando sempre: - que esperava não encontrasse, difficuldades no caminho, marchasse muito bem, que os maus espíritos andassem sempre longe delle etc.
Em seguida cuspiu-lhe na palma da mão esquerda, o que o agraciado sorveu dum trago e depois passando os dedos da mão direita pela palma da mão direita do Muatiânvua dava um estalido com os dedos e repedindo isto três vezes terminou por bater três palmadas com as suas mãos, o que repetiram todos os circumstantes gritando ChiNoeji, Muatiânvua, na lá ni eza, echu aosso imanei, Zambi umutalei. ( Pelo grande dos grandes, estas feito Muatiânvua, vae e volta, nós todos te esperamos. Deus te vigie).
E como nada mais houvesse a tratar com respeito ao assumpto, determinou o Chefe da Expedição que se encerrasse este auto que vae ser assignado pelos principais, fazendo uma cruz ao lado dos seus nomes, os que não sabem escrever e a todos eu secretario que escrevi reconheço pelas cathegorias que representam. – Acampamento do Muatiânvua na margem esquerda do Chiumbue, 12 de Junho de 1886.
(ass.) Henrique Augusto Dias de Carvalho, major do Exercito, Chefe de Expedição Portugueza ao Muatiânvua.


Há mais Tratados semelhantes, todos eles mostrando inequivocamente o reconhecimento de Portugal sobre a propriedade das terras. Bastaria ver as taxas ou impostos que os portugueses tinham que pagar, para se reconhecer de quem era a soberania.
Infelizmente não durou muito esta situação. Os povos que se quiseram proteger do avanço de outros europeus, colocando-se sob a soberania de Portugal, nada ganharam com isso. Portugal não tinha força para lutar contra toda a Europa, e até internamente atravessava uma crise de total desgoverno. Americanos e alemães, não sendo potências colonizadoras, reconheceram de imediato, contra Portugal, os “direitos” da “Association Internacionale du Congo”, forma sofismada de chamar ao Congo propriedade particular do rei dos belgas.
E a famigerada Conferência de Berlim impôs aos novos colonizadores obrigações que colidiam com a nossa maneira de estar, sobretudo pela cláusula que obrigava à ocupação militar e administrativa dos territórios, contrariando frontalmente todo o entendimento existente até então.
Pouco depois, os nossos mais antigos e “amigos aliados”, roubam-nos, com ameaça de exército e até de invasão do torrãozinho lusitano, a área central de África conhecida como o “Mapa Cor de Rosa”.
De pagadores de impostos aos chefes africanos fomos obrigados a inverter a situação e impor às populações a cobrança de novos impostos, que jamais foi por eles aceite.  
Rompeu-se assim um entendimento que tinha todos os méritos.
Um dia Portugal fez pior do que Pilatos: lavou as mãos em águas sujas de sangue, entregou as colônias, sem respeitar nada nem ninguém, aos comunistas, rasgou os Tratados que tinha assinado solenemente com os povos, enfim abandonou a sua história.
Virou-lhes as costas.
Hoje, Portugal continua de costas viradas para si mesmo, sem coragem de pedir desculpa pela covardia, pelos desastre que provocou.
Angola tem diamante e petróleo.
Portugal, de cara desavergonhada, estende-lhe a mão à espera de esmola.
Discutir os direitos dos povos...
Os Lunda Tchokwe, Cabindas, e vários outros foram ignorados. Esquecidos.

09/05/2014

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