Histórias da África
por onde os portugueses andaram
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Nos exemplos de Tratados a seguir
apresentados há uma ideia bastante fiel e realista do modus vivendi ou modus
operandi dos portugueses em África.
Negociava-se principalmente em escravos,
comércio que os africanos praticavam desde sempre, o que não constituiu nenhuma
invenção dos europeus. Escravos, marfim, cera e pouco ou nada mais.
Um dos aspetos importante a notar é a
definição dos “impostos” que sempre os portugueses tinham que pagar às
autoridades nativas para se instalarem ou negociarem em terras de reinos
africanos, o que é reconhecido e destacadamente afirmado nos Tratados assinados
entre os reis e príncipes africanos e as autoridades portuguesas em nome do
Governo de Angola e sobretudo do rei de Portugal.
Os Tratados, de que se reproduz uma parte,
foram assinados pelo então Major Henrique Augusto Dias de Carvalho, e estão
descritos em livros por ele publicados.
Tratado de Comercio
Celebrado entre Portugal e Mona Samba
(Capenda)
23 January1885
Carvalho, Henrique A D de – “A Lunda” pp. 39-43
23 January1885
Carvalho, Henrique A D de – “A Lunda” pp. 39-43
Havendo a Expedição
portugueza que em missão especial do Governo de Sua Magestade se dirige ao
Muatiânvua, com o consentimento de Mona Mahango (Mona Samba), seus filhos e
mais pessoas de familia, feito construir proximo á sua ambanza, uma casa de
paredes barradas, ... consentimento que importou em 50 peças de fazenda,
fica sendo esta casa propriedade do Estado Portuguez, conhecida pelo nome de
Estação Civilizadora Portugueza Costa e Silva, podendo n’ela estabelecer-se a
todo o tempo, sem outros encargos, a missão que o governo de Sua Magestade
Fidelissima haja por bem para esse fim nomear.
Para todos os
effeitos o chefe d’esta missão será considerado por Mona Samba, por Mona Buizo
(Mona Cafunfo), por seus filhos, mais pessoas de familia e povos, delegado do governo
geral de Angola, n’esta região, e será elle que de acordo com os dois
potentados Mona Samba ou Mona Buizo, resolverá todas as pendencias que possam
suscitar-se entre Portuguezes e os povos sob seus dominios, e quem fará cumprir
áquelles o que fica estipulado n’este tratado.
O delegado do governo
geral de Angola, quando julgue necessario para mais desenvolvimento da missão
ou para o estabelecimento de novas, n’esta ou em outra localidade nos dominios
de Mona Mahango (Samba) ou de Mona Cafunfo (Buizo) fará construir casas,
templos religiosos, armazens, officinas e quaesquer outras dependencias sem que
para isso tenha a pagar mais do que o valor de uma jarda de fazenda por cada
dez metros quadrados de terreno occupado pelas referidas edificações, sendo as
medições feitas pelo chefe da povoação mais proxima com a assistencia do
delegado do governo geral de Angola, e um impunga (representante) de Mona
Mahango ou de Mona Cafunfo.
Os subditos de Mona
Mahango e de Mona Cafunfo, quando estiverem em terras portuguezes, serão
considerados subditos de Sua Magestade Fidelissima, e gozam dos mesmos direitos
e regalias que os seus desfructam.
O delegado do governo
geral de Angola, terá á sua disposição a força necessaria para manter a sua
auctoridade, garantir a segurança de pessoas e de bens da colonia e estações
portuguezas, prestar a Mona Mahango, Mona Cafunfo, chefes de povoações e aos
seus povos, todo o auxilio indispensavel no cumprimento das clausulas que neste
se consignam, e ainda contra os malfeitores, quando esses socorros sejam
pedidos por qualquer daquelles dois potentados e quando taes socorros não
arrastem consigo compromissos á colonia e estações portuguezes.
O subdito portuguez
que só queira transitar pelas terras de Mona Mahango ou Mona Cafunfo, fazendo-se
acompanhar de cargas de commercio, terá de pagar quatro peças de fazenda a
quem pertençam essas terras: mas se o seu fim, fór negociar pelo transito,
então obterá uma licença especial para commercio, pela qual paga duas peças
e em qualquer dos casos, nas povoações em que tenha de acampar pagará uma peça
ao chefe d’essa povoação.
Se o subdito
portuguez pretender estabelecer-se temporariamente (até 2 meses) em qualquer
localidade, em logar duma terra terá a pagar ao chefe da localidade, duas
peças, por seis mezes ou por anno, e para esse fim obter uma licença de Mona
Samba ou Mona Buizo, a qual no primeiro caso, importará em quatro peças de
fazenda e no segundo caso, em seis peças, além das duas que já tem de pagar ao
chefe da povoação.
Quando o residente
construir casa barrada para si e sua feitória, qualquer que seja a grandeza,
não o poderá fazer sem licença de Mona Mahango ou de Mona Cafunfo, e esta
importará em doze peças de fazenda, para qualquer destes potentados e tres para
o chefe da povoação mais próxima.
As terras para lavrar
serão concedidas gratuitamente, mas as ocupadas por quaesquer edificações
nellas comprehendidas, ficam sujeitas ao que já fica classificado.
As licenças são
obtidas como fica dito, por intervenção do delegado do governo geral de Angola,
e os que no prazo de quinze dias as não tenham pago, procedente aviso do mesmo
delegado, serão multados no triplo do valor das licenças, ficando 1/3 na
delegacia para as despezas que ha a fazer e 2/3 entregues a Mona Mahango ou a Mona
Cafunfo, a quem pertençam.
Estação civilizadora
Costa e Silva, 18 fevereiro de 1885.
Extrahido do livro do
expediente da Expedição portugueza ao Muatiânvua n.º 2, que foi presente á
votação de Mona Samba, Senhor de Mahango e todos os do seu conselho na sua
ambanza em 23 de fevereiro de 1885 á qual assistiram os Portuguezes residentes
no auto que se fez levantar.
Auto de eleição do embaixador a enviar a Luanda a solicitar a
protecção de Portugal na Lunda
CARVALHO, Henrique A. D de – “A Lunda”, pp 197-202
Aos doze dias do mez de Junho do anno do
nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e oitenta e seis no
Acampamento do Muatiânvua eleito, Ianvo vulgo Xa Madiamba, situado dois
kilometros a leste da povoação do Chibango na margem esquerda do rio Chiumbue,
no logar das audiências gerais estando reunidos os Muatas de lucano: Bungulo
Anzovo, Chibango Cacuruba senhor da terra, Muzooli Mucanza sobrinho e herdeiro
do assassinado Mucanza governador de Mataba, Tambu de Cabongo chefe dos Turubas
entre os rios Chiumbue, Cassai e Luembe; e também os representantes de Muene
Dinhinga, de Xa Cambuji, dos Muatas Cumbana, Caungula, de Muitia, de Muene
Panda e outros e muito povo; o Muatiânvua eleito, sentado na cadeira de
espaldar dourada debaixo do docel e devidamente fardado annunciou que chamara
os quilolos áquella reunião para se despachar a embaixada que ia seguir para
Loanda segundo as deliberações tomadas na ultima audiência por elles quilolos,
mas era preciso antes que todos ouvissem o que se escreveu na mucanda (auto) e
firmassem com o seu signal para se provar a Muene Puto que eram desejos de
todos o que se pedia na mucanda.
Mostraram todos a sua adhesão ao que dissera
Muatiânvua batendo palmadas e proferindo as palavras do uso.
O Chefe da Expedição disse: que tendo sido
procurado pelo Muatiânvua e os principais quilolos para fazer constar a SUA
MAGESTADE FEDELISSIMA o desejo que todos teem que o Governo do mesmo Augusto
Senhor faça encorporar nos domínios da sua coroa as terras do Estado do Muatiânvua;
escreveu no sentido em que lhe fora feito o pedido e ordenou que eu interprete
António Bezerra de Lisboa lhe fizesse comprehender na sua língua o que estava
escrito.
Depois de algumas explicações e demoradas
considerações do Muitia e do Muata Bungulo, deliberou-se que fosse representado
o Muatiânvua por seu sobrinho Muteba porém por causa de força maior o Cacuata
Capenda é substituído pelo Cacuata Noeji e como particular de Muteba irá o
Caxalapoli de confiança do Muatiânvua Tanda Ianvo e determina-se a Caungula que
dê um representante seu e peça a Muata Cumbana para apresentar um delle os
quaes se encorporarão aos que daqui partem.
O Muatiânvua e todos os grandes do Estado da
Lunda representados pelos que firmam este auto reconhecem a Soberania de Portugal
e pedem ao seu Governo que torne effectiva a ocupação da Lunda como terras
portuguezas conservando entre os indiginas o que tem sido de seu uso e não
importe embaraços á administração portugueza, e mantenha a integridade dos
territórios como propriedade do antigo ESTADO DO MUATIÂNVUA.
É abolida a pena da morte logo que a autoridade
portugueza junto do Muatiânvua resgate a vida dos sentenciados e faça seguir
estes debaixo de prisão para as terras de Angola.
Fica proibida para fora das terras a venda ou
troca de gente por artigos de commercio e nas terras não se pode tal transação
fazer sem ser ouvida a auctoridade portugueza que tem preferência porque lhes
dá a carta de alforria, e como seus tutellados os educa no trabalho.
Em quanto as autoridades portuguezas não possam
dispor de recursos indispensáveis para serem devidamente educados os menores
com direito á SUCESSÂO ao poder no Estado do Muatiânvua e nos estados em que
elle se subdivide, as mesmas auctoridades proporcionam os meios de os fazer educar
nas terras portuguezas em que não faltam recursos para esse fim.
O Muatiânvua depois de tomar posse da governação
do Estado, comprometteu-se a validar todos os Tratados e nomeações feitas pelo
Chefe da Expedição portugueza o Sr. Henrique Dias de Carvalho em terras da
Lunda sem distinção de tribus; e desde já os quilolos que formam o seu séquito
se obrigam a sujeitar-se á arbitragem do mesmo Chefe nas pendências a resolver
com MONA QUISSENGUE chefe principal dos quiocos entre os rios de Chicapa e
Luembe de modo que nesta região fique bem firmada a paz entre as tribus sob o
domínio do Muatiânvua e as sob o domínio d’aquelle.
Pedem o Muatiânvua e os representantes da corte
ao Governo de SUA MAGESTADE FIDELISSIMA, auctoridades portuguezas, força de
soldados brancos para distribuir pelos paizes do Estado (LUNDA), mestres de
officios, padres, médicos, lavradores, industriaes e negociantes.
E como todos os potentados e mais indivíduos
presentes nada mais tinham a acrescentar ao que fica exposto, passou-se ás cerimónias
da nomeação do embaixador que consistiram no seguinte:
Chamado MUTEBA veiu agachado collocar-se á
frente do estrado sobre que estava collocada a cadeira e ahi ficou agachado. O
Muatiânvua estendendo o braço direito sobre a cabeça delle disse umas palavras
do rito que se resumem: em annunciar que o vae representar na longa jornada e
tomará o seu nome e honras e nessa qualidade falará com o representante do
grande Muene Puto em Loanda e por ter confiança nelle o escolhera e tudo que
lhe disser é dito pelo próprio MUATIÂNVUA e tome muita conta no que ouvir para
de tudo dar conhecimento ao Estado, lembrando-se que vai preparar um melhor
futuro para este.
Depois recebendo de um prato que lhe apresentou
muene Casse, mestre de cerimonias, um envolucro com pó vermelho dum lado, e
branco do outro; ora tomando pitadas dum ora do outro fez-lhe cruzes na testa,
hombros, peito, costa e braços pela parte interior, falando sempre: - que
esperava não encontrasse, difficuldades no caminho, marchasse muito bem, que os
maus espíritos andassem sempre longe delle etc.
Em seguida cuspiu-lhe na palma da mão esquerda,
o que o agraciado sorveu dum trago e depois passando os dedos da mão direita
pela palma da mão direita do Muatiânvua dava um estalido com os dedos e
repedindo isto três vezes terminou por bater três palmadas com as suas mãos, o
que repetiram todos os circumstantes gritando ChiNoeji, Muatiânvua, na lá ni
eza, echu aosso imanei, Zambi umutalei. ( Pelo grande dos grandes, estas feito
Muatiânvua, vae e volta, nós todos te esperamos. Deus te vigie).
E como nada mais houvesse a tratar com respeito
ao assumpto, determinou o Chefe da Expedição que se encerrasse este auto que
vae ser assignado pelos principais, fazendo uma cruz ao lado dos seus nomes, os
que não sabem escrever e a todos eu secretario que escrevi reconheço pelas
cathegorias que representam. – Acampamento do Muatiânvua na margem esquerda do
Chiumbue, 12 de Junho de 1886.
(ass.) Henrique Augusto Dias de Carvalho, major
do Exercito, Chefe de Expedição Portugueza ao Muatiânvua.
Há mais Tratados
semelhantes, todos eles mostrando inequivocamente o reconhecimento de Portugal
sobre a propriedade das terras. Bastaria ver as taxas ou impostos que os
portugueses tinham que pagar, para se reconhecer de quem era a soberania.
Infelizmente não durou
muito esta situação. Os povos que se quiseram proteger do avanço de outros
europeus, colocando-se sob a soberania de Portugal, nada ganharam com isso.
Portugal não tinha força para lutar contra toda a Europa, e até internamente
atravessava uma crise de total desgoverno. Americanos e alemães, não sendo
potências colonizadoras, reconheceram de imediato, contra Portugal, os
“direitos” da “Association Internacionale
du Congo”, forma sofismada de chamar ao Congo propriedade particular
do rei dos belgas.
E a famigerada
Conferência de Berlim impôs aos novos colonizadores obrigações que colidiam com
a nossa maneira de estar, sobretudo pela cláusula que obrigava à ocupação militar
e administrativa dos territórios, contrariando frontalmente todo o entendimento
existente até então.
Pouco depois, os nossos
mais antigos e “amigos aliados”, roubam-nos, com ameaça de exército e até de
invasão do torrãozinho lusitano, a área central de África conhecida como o
“Mapa Cor de Rosa”.
De pagadores de impostos
aos chefes africanos fomos obrigados a inverter a situação e impor às
populações a cobrança de novos impostos, que jamais foi por eles aceite.
Rompeu-se assim um
entendimento que tinha todos os méritos.
Um dia Portugal fez pior
do que Pilatos: lavou as mãos em águas sujas de sangue, entregou as colônias,
sem respeitar nada nem ninguém, aos comunistas, rasgou os Tratados que tinha
assinado solenemente com os povos, enfim abandonou a sua história.
Virou-lhes as costas.
Hoje, Portugal continua
de costas viradas para si mesmo, sem coragem de pedir desculpa pela covardia,
pelos desastre que provocou.
Angola tem diamante e
petróleo.
Portugal, de cara
desavergonhada, estende-lhe a mão à espera de esmola.
Discutir os direitos dos
povos...
Os Lunda Tchokwe, Cabindas, e vários outros foram ignorados. Esquecidos.
09/05/2014
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