domingo, 4 de maio de 2014


Carta Inédita
a Camilo Castelo Branco
sobre “Amor de Perdição


Goa, 14 de Maio de 1863

Illmo. e Exmo. Senhor
Camilo Castelo Branco
Porto – Portugal

Ex.mo Senhor

Desde que aqui em Goa apareceram as suas primeiras obras, como o “Mistério de Lisboa” e “A Filha do Arcediago”, tenho lido, com muito prazer e admiração, todos os romances que a sua tão inspirada pena nos tem oferecido.
Chegou há pouco “O Amor de Perdição” que li quase de um só fôlego, não só por ser um romance admirável mas por uma circunstância que deverá deixar Vossa Ex.cia admirado e talvez até chocado.
Custa-me a dar a notícia mas julgo ser meu dever.
Simão António Botelho não faleceu a bordo do navio que o transportou para o degredo. Nem ele nem a sua admirável companheira Mariana.
Tudo quanto vou contar nesta carta é a absoluta verdade, e foi-me contado pelo próprio Simão Botelho, porque, como verá adiante, assim que ele chegou a Goa ficou hospedado na cada de meus pais, e por coincidência éramos os dois da mesma idade, o que nos proporcionou desenvolver uma profunda e muito íntima amizade.
Como Vossa Ex.cia sabe, o seu tio Simão embarcou na nau “São Francisco Xavier” cujo capitão era o senhor Caetano de Sousa Pereira, pessoa desta terra e muito amiga que foi de meu pae, ambos já falecidos.
O capitão Sousa Pereira, assim que o jovem Simão embarcou, e como Vossa Ex.cia muito bem escreve, rodeou o desgraçado rapaz de todo o conforto que podia dispensar.
Simão Botelho estava a entregar-se à morte, bem como a doce Mariana, mas o capitão não o largou um só instante, levando-o para acompanhar o comando do navio, convidando-o para fazer as refeições na sua mesa e passeando juntos no convés, fazendo com que aos poucos Simão recomeçasse a viver, se bem que sempre muito abatido.
Então, Simão, fez um irrecusável pedido ao seu já grande amigo, quase um pai para ele, o capitão Caetano de Sousa Pereira, para que, no regresso a Portugal, contasse a sua morte o que Vossa Ex.cia tão dramaticamente descreve com a sua habitual facilidade e profundidade. Simão queria cortar todos os vínculos com Portugal, esquecer toda a enorme desgraça que sobre ele se tinha abatido, esquecer a família que sempre o desprezara e, incentivado pelo capitão e sobretudo pelo amor daquela extraordinária mulher, Mariana da Cruz, recomeçou a cobrar ânimo.
Quando passaram em Cabo Verde, para aguada e reabastecimento, Simão, apresentado pelo capitão, mas com outro nome, foi muito bem recebido pelo Governador António Coutinho de Lencastre que o teve em sua casa três dias cuidando de o ajudar a recuperar a saúde.
O mesmo se passou em São Salvador da Bahia, tendo-se hospedado em casa do Juiz do Civel António Jordão, cuja esposa foi também incansável e, quando  ouviu parte da história do pobre Simão, sempre apresentado com outro nome, pediu ao Arcebispo D. Frei Silvestre de Maria Santissina que o fosse ver.
Simão comoveu-se muito, confessou-se e o senhor Arcebispo, com as prerrogativas que a Igreja lhe dá, absolveu-o do crime cometido por amor, mas percebendo a entrega tão sofrida e a dedicação da jovem Mariana, o convenceu que a devia receber por esposa, o que Simão garantiu que faria assim que chegassem ao destino.
Passaram ainda em Moçambique, onde chegaram com a saúde quase refeita apesar das tormentas do Oceano, e muita vontade de viver, foram ainda recebidos pelo Governador Francisco de Paula de Albuquerque do Amaral Cardoso que lhes ofereceu uma bonita prenda de casamento.
Assim que o navio chegou a Goa, dia 25 de Agosto de 1807, o capitão apresentou os dois jovens a meu pai Manoel de Noronha Pereira da Costa que ofereceu logo a nossa casa para os receber.
Meu pai, um dos grandes comerciantes desta cidade, descendente de famílias nobres de Portugal, Noronhas e Pereira da Costa, no dia seguinte levou os novos hóspedes ao bispo coadjutor D. Frei Manoel de S. Gualdino onde eles confirmaram que queriam casar logo.
D. Frei Manoel apresentou-os ao Arcebispo de Goa D. Fr. Manuel de Santa Catarina, um santo homem, Carmelita Descalço, nessa altura com 81 anos de bondade, que disse logo que os casaria naquele mesmo dia.
Como tiveram que dar os nomes verdadeiros, Simão optou por ficar somente António Botelho mas pediram aos santos homens que não permitissem, durante o máximo tempo possível, que ninguém viesse a saber da existência deles. Se “tinham morrido” para o mundo e família de Portugal, renasciam agora felizes na terra do destêrro que lhes seria doce e agradável.
Não tardou muito que chegasse o primeiro filho que recebeu o nome de João da Cruz Botelho, um lindo rapaz “forte como o avô” como os pais diziam, e veio depois uma menina linda, como a mãe, Mariana da Cruz Botelho, primos irmãos de Vossa Excelência.
Em poucos anos meu pai sentiu-se doente e ao transferir a casa comercial para meu nome eu fiz questão de ter como sócio o meu inseparável e corretissimo amigo Simão, já como António Botelho, que sempre foi muito estimado e admirado por suas qualidades, seu caracter e educação, por todos os que tiveram a sorte de o conhecer. E assim fomos sócios até que a morte o levou em 1856, o que me custou muito a suportar.
Dona Mariana, o exemplo de virtudes e humildade que tão bem Vossa Excelência deixa perceber no seu romance, continua viva, se bem que triste por um lado, os filhos e os netos alegram-lhe a velhice.
O filho, João da Cruz Botelho casou com a minha filha Madalena, e têm dois lindos filhos, e a filha, Mariana, casou com um capitão do exército, João de Almeida Mesquita que aqui prestou serviço e foi depois mandado para Macau onde ainda devem estar.
Julgo ter prestado uma informação útil .
Attº Ven.or
e admirador de Vossa Ex.cia

João António Pereira da Costa


Explicação:
Pelo que me foi contado, o autor da carta não a mandou pelo correio por não ter completado o endereço do escritor, e assim permaneceu dentro de um envelope só com
“Illmo. e Exmo. Senhor Camilo Castelo Branco”
O autor da carta parece ter morrido pouco tempo depois de a ter escrito e a viuva de Simão Botelho decidiu vender a casa comercial, que passados alguns anos tornou a passar de mãos.
Só muitos anos mais tarde, quase 100 anos depois, é encontrada, entre muitos papeis velhos, esse envelope dirigido a CCB.
Os novos donos acharam a carta interessante e entregaram-na a um médico local, Francisco de Noronha, nascido e criado em Goa, para que ele lhe desse o destino que entendesse. Quando este se aposentou saiu de Goa foi viver para Portugal
Francisco de Noronha, que eu tratava por tio, muito simpático e sempre bem disposto, foi casado com uma amiga de infância da minha mãe e era visita assídua de nossa casa, e por mais de uma vez que ofereceu uma pequena lembrança de Goa.
Não tiveram filhos. Em Lisboa um dia perdeu a cabeça por uma garota muito jovem e divorciou-se da mulher, simpática, magrinha e para além de feia!
O novo casamento não deu certo. Durou, se tanto um ano, que nem deu tempo ao “tio Chico” de apreciar e relembrar juventudes, porque a menina não encontrou no velho médico a fortuna que procurava e divorciaram-se. Francisco de Noronha voltou a casar com a velha e primeira mulher, mas não durou muito mais.
Um dia a viuva, ao mexer em papeis do marido encontrou a carta para CCB e sabendo que o meu bisavô tinha sido amigo deste entregou-me a carta, que eu guardei como uma preciosidade.
Mas o andar com a casa às costas para África, volta, vai, revolução, Brasil, etc., só há dias, para meu imenso espanto a fui descobrir “muito bem guardada” dentro de um dos volumes da História de Portugal de Alexandre Herculano!
Razão porque só agora se dá a conhecer.
Pena que Camilo nunca a tivesse recebido.


29/04/2014

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