Carta Inédita
a Camilo
Castelo Branco
sobre “Amor de
Perdição
Goa, 14 de Maio de 1863
Illmo. e Exmo. Senhor
Camilo Castelo Branco
Porto – Portugal
Ex.mo Senhor
Desde
que aqui em Goa apareceram as suas primeiras obras, como o “Mistério de Lisboa”
e “A Filha do Arcediago”, tenho lido, com muito prazer e admiração, todos os
romances que a sua tão inspirada pena nos tem oferecido.
Chegou
há pouco “O Amor de Perdição” que li quase de um só fôlego, não só por ser um
romance admirável mas por uma circunstância que deverá deixar Vossa Ex.cia
admirado e talvez até chocado.
Custa-me
a dar a notícia mas julgo ser meu dever.
Simão
António Botelho não faleceu a bordo do navio que o transportou para o degredo.
Nem ele nem a sua admirável companheira Mariana.
Tudo
quanto vou contar nesta carta é a absoluta verdade, e foi-me contado pelo
próprio Simão Botelho, porque, como verá adiante, assim que ele chegou a Goa
ficou hospedado na cada de meus pais, e por coincidência éramos os dois da
mesma idade, o que nos proporcionou desenvolver uma profunda e muito íntima
amizade.
Como
Vossa Ex.cia sabe, o seu tio Simão embarcou na nau “São Francisco Xavier” cujo
capitão era o senhor Caetano de Sousa Pereira, pessoa desta terra e muito amiga
que foi de meu pae, ambos já falecidos.
O
capitão Sousa Pereira, assim que o jovem Simão embarcou, e como Vossa Ex.cia
muito bem escreve, rodeou o desgraçado rapaz de todo o conforto que podia
dispensar.
Simão
Botelho estava a entregar-se à morte, bem como a doce Mariana, mas o capitão
não o largou um só instante, levando-o para acompanhar o comando do navio,
convidando-o para fazer as refeições na sua mesa e passeando juntos no convés,
fazendo com que aos poucos Simão recomeçasse a viver, se bem que sempre muito
abatido.
Então,
Simão, fez um irrecusável pedido ao seu já grande amigo, quase um pai para ele,
o capitão Caetano de Sousa Pereira, para que, no regresso a Portugal, contasse
a sua morte o que Vossa Ex.cia tão dramaticamente descreve com a sua habitual
facilidade e profundidade. Simão queria cortar todos os vínculos com Portugal,
esquecer toda a enorme desgraça que sobre ele se tinha abatido, esquecer a
família que sempre o desprezara e, incentivado pelo capitão e sobretudo pelo
amor daquela extraordinária mulher, Mariana da Cruz, recomeçou a cobrar ânimo.
Quando
passaram em Cabo Verde, para aguada e reabastecimento, Simão, apresentado pelo
capitão, mas com outro nome, foi muito bem recebido pelo Governador António
Coutinho de Lencastre que o teve em sua casa três dias cuidando de o ajudar a
recuperar a saúde.
O
mesmo se passou em São Salvador da Bahia, tendo-se hospedado em casa do Juiz do
Civel António Jordão, cuja esposa foi também incansável e, quando ouviu parte da história do pobre Simão,
sempre apresentado com outro nome, pediu ao Arcebispo D. Frei Silvestre de
Maria Santissina que o fosse ver.
Simão
comoveu-se muito, confessou-se e o senhor Arcebispo, com as prerrogativas que a
Igreja lhe dá, absolveu-o do crime cometido por amor, mas percebendo a entrega
tão sofrida e a dedicação da jovem Mariana, o convenceu que a devia receber por
esposa, o que Simão garantiu que faria assim que chegassem ao destino.
Passaram
ainda em Moçambique, onde chegaram com a saúde quase refeita apesar das
tormentas do Oceano, e muita vontade de viver, foram ainda recebidos pelo Governador
Francisco
de Paula de Albuquerque do Amaral Cardoso que lhes ofereceu uma bonita prenda
de casamento.
Assim que o navio
chegou a Goa, dia 25 de Agosto de 1807, o capitão apresentou os dois jovens a
meu pai Manoel
de Noronha Pereira da Costa que ofereceu logo a nossa casa para os receber.
Meu
pai, um dos grandes comerciantes desta cidade, descendente de famílias nobres
de Portugal, Noronhas e Pereira da Costa, no dia seguinte levou os novos
hóspedes ao bispo coadjutor D. Frei
Manoel de S. Gualdino onde eles confirmaram que queriam casar logo.
D. Frei Manoel apresentou-os ao Arcebispo de Goa
D. Fr. Manuel de Santa Catarina, um santo homem, Carmelita Descalço, nessa
altura com 81 anos de bondade, que disse logo que os casaria naquele mesmo dia.
Como tiveram que dar os nomes verdadeiros, Simão
optou por ficar somente António Botelho mas pediram aos santos homens que não
permitissem, durante o máximo tempo possível, que ninguém viesse a saber da
existência deles. Se “tinham morrido” para o mundo e família de Portugal,
renasciam agora felizes na terra do destêrro que lhes seria doce e agradável.
Não tardou muito que chegasse o primeiro filho
que recebeu o nome de João da Cruz Botelho, um lindo rapaz “forte como o avô”
como os pais diziam, e veio depois uma menina linda, como a mãe, Mariana da
Cruz Botelho, primos irmãos de Vossa Excelência.
Em poucos anos meu pai sentiu-se doente e ao
transferir a casa comercial para meu nome eu fiz questão de ter como sócio o
meu inseparável e corretissimo amigo Simão, já como António Botelho, que sempre
foi muito estimado e admirado por suas qualidades, seu caracter e educação, por
todos os que tiveram a sorte de o conhecer. E assim fomos sócios até que a
morte o levou em 1856, o que me custou muito a suportar.
Dona Mariana, o exemplo de virtudes e humildade
que tão bem Vossa Excelência deixa perceber no seu romance, continua viva, se bem
que triste por um lado, os filhos e os netos alegram-lhe a velhice.
O filho, João da Cruz Botelho casou com a minha
filha Madalena, e têm dois lindos filhos, e a filha, Mariana, casou com um
capitão do exército, João de Almeida Mesquita que aqui prestou serviço e foi
depois mandado para Macau onde ainda devem estar.
Julgo ter prestado uma informação útil .
Attº Ven.or
e admirador de Vossa Ex.cia
João António Pereira da Costa
Explicação:
Pelo que me foi
contado, o autor da carta não a mandou pelo correio por não ter completado o
endereço do escritor, e assim permaneceu dentro de um envelope só com
“Illmo. e Exmo. Senhor Camilo
Castelo Branco”
O autor da carta
parece ter morrido pouco tempo depois de a ter escrito e a viuva de Simão
Botelho decidiu vender a casa comercial, que passados alguns anos tornou a
passar de mãos.
Só muitos anos mais
tarde, quase 100 anos depois, é encontrada, entre muitos papeis velhos, esse
envelope dirigido a CCB.
Os novos donos
acharam a carta interessante e entregaram-na a um médico local, Francisco de
Noronha, nascido e criado em Goa, para que ele lhe desse o destino que
entendesse. Quando este se aposentou saiu de Goa foi viver para Portugal
Francisco de
Noronha, que eu tratava por tio, muito simpático e sempre bem disposto, foi
casado com uma amiga de infância da minha mãe e era visita assídua de nossa
casa, e por mais de uma vez que ofereceu uma pequena lembrança de Goa.
Não tiveram filhos.
Em Lisboa um dia perdeu a cabeça por uma garota muito jovem e divorciou-se da
mulher, simpática, magrinha e para além de feia!
O novo casamento
não deu certo. Durou, se tanto um ano, que nem deu tempo ao “tio Chico” de apreciar
e relembrar juventudes, porque a menina não encontrou no velho médico a fortuna
que procurava e divorciaram-se. Francisco de Noronha voltou a casar com a velha
e primeira mulher, mas não durou muito mais.
Um dia a viuva, ao
mexer em papeis do marido encontrou a carta para CCB e sabendo que o meu bisavô
tinha sido amigo deste entregou-me a carta, que eu guardei como uma
preciosidade.
Mas o andar com a
casa às costas para África, volta, vai, revolução, Brasil, etc., só há dias,
para meu imenso espanto a fui descobrir “muito bem guardada” dentro de um dos
volumes da História de Portugal de Alexandre Herculano!
Razão porque só agora se dá a conhecer.
Razão porque só agora se dá a conhecer.
Pena que Camilo
nunca a tivesse recebido.
29/04/2014
UMA PRECIOSIDADE!
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