Um
sonho ?
Sem
saber como, bem na minha frente um velho de barba branca, olhar doce, em paz,
tal como alguns de nós têm imaginado como será a figura de São Pedro quando lá
chegarmos, se lá chegarmos.
Devia
ser mesmo o guardião das chaves dos vários “hoteis” que nos aguardam: os
paradisíacos e os infernais!
Sem
se interessar em saber o meu nome, nem o que eu havia feito durante a estadia
na Terra – isso ele já o deveria saber; está inscrito na eternidade – quis ouvir
a minha opinião sobre a humanidade, o seu
comportamento e até o que eu pensava do futuro do pequenino planeta onde vivia.
Coisa
estranha! Se era mesmo o São Pedro, nada do que eu lhe contasse poderia
aparecer inesperado!
Assim
mesmo atrevi-me a falar, não deixando dúvidas ao bom e simpático velhinho, o
quanto eu era descrente nos homens.
Sem
se perturbar foi-me ouvindo contar que na Terra os homens matam pelos motivos
mais fúteis!
As
torcidas, no futebol, agridem e matam os que aplaudem os seus adversários, há
lutas ferozes a que se atrevem a chamar desporto, em que os homens, e mulheres
se esmurram até perderem os sentidos, os ditadores, que ainda os há e muitos,
prendem, torturam e dão sumiço a cantores da liberdade, que as indústrias
farmacêuticas inventam e criam epidemias para aumentarem o lucro do seu negócio,
que tratam os miseráveis de países pobres como cobaias descartáveis, que há
países onde os medicamentos custam cinco a dez vezes mais do que em outros, que
se fazem guerras com mentirosas ideologias de religião, e também, mas
principalmente, porque os fabricantes e negociantes de armas embolsam fortunas
inimagináveis, que o infame tráfico de drogas não acabará nunca porque além dos
financeiramente interessados, a população mundial está cada vez mais descrente
no seu futuro e prefere alienar-se com psicotrópicos, que o provento dos
trabalhadores, em todo o lado, tem diferenças abissais entre os que fazem as
leis e os que a ela têm que se sujeitar, enfim,
senhor – lhe disse eu – em algum momento
o Criador deve ter errado ao dar vida ao homem.
Se
o céu, o paraíso, é para os bons e o inferno para os maus, como o cristianismo
nos fez crer, neste último não deverá haver mais lugares disponíveis!
São
Pedro olhava-me e, apesar de contra a luz, pareceu-me ver uma pequenina lágrima
sair de um olho. Para não mo mostrar, deu uma volta enquanto passava a mão nos
olhos, e voltando-se para mim disse:
-
Não. O Criador não fez nada de errado.
Por muito amar tudo, mas tudo, quanto criou, deu liberdade a todos os seres,
tanto animais como vegetais! E isso é fácil de compreender, quando, por
exemplo, se vêm plantas, árvores frondosas, crescerem em lugares que os homens
abandonaram, mostra que foram livres de escolher onde querem viver, os animais
a que os homens chamam de irracionais, que vivem em total liberdade jamais
competindo com os da mesma espécie, e ao homem foi concedido, além de tudo, o
privilégio de pensar, a inteligência para coordenar a vida de toda a natureza
de forma a que ela transforme a vida na Terra no verdadeiro Paraíso.
Mas o Criador, Deus, ou como lhe
queiram chamar, sempre teve que lutar com um muito feroz e invejoso competidor,
a quem costumam chamar de Satã ou Diabo.
Os homens não pensam muito sobre
o Diabo, mas ele consegue ser tão real, desconhecido, incognito e temido quanto
o Criador. O Diabo aparece sob a forma de ouro, jóias, poder, inveja, soberba,
vingança, e todos os outros males que os homens conhecem bem e fingem
desconhecer.
O Criador que existe desde sempre,
não tem pressa. Na eternidade não há pressa. Tudo é instantâneo, e quando os
homens pensam que estão há cem mil anos na Terra, esquecem-se de que esse tempo
não conta.
Aqui, no éter, na eternidade, não
há hotéis paradisíacos nem infernais, nem entes bons nem maus, o que não
significa que aqueles cujo comportamento, na sua tão breve passagem na terra,
tenha sido condenável, não devam pagar por isso. O mais natural é que voltem,
noutro corpo material e sofram o que fizeram sofrer aos outros.
Só redimidos serão aceites no Espírito
Único, integrados no Criador, só assim, como dizem os cristãos, poderão ver a
Face de Deus! A Face de Deus que é o sopro que dá a vida do espírito.
Alguns homens têm disto uma noção
mais profunda do que todos os outros. Têm até um nome curioso para aqueles que
estão prontos a estar com o Criador: encontrar o Nirvana.
Para eles não há paraíso ou
inferno; há somente que cumprir com a vontade de Deus, que o fez superior a
todos os outros seres. Não para os destruir ou escravizar mas os conduzir,
todos, à perfeição.
Eu
continuava a pensar que o meu interlocutor seria mesmo o São Pedro, o bom
velhinho pescador, como o imaginamos. Mas estas suas afirmações baralharam mais
a minha cabeça, e decidi aproveitar a ocasião para lhe fazer algumas perguntas:
Mas Senhor, se Deus foi o criador
de tudo e existe desde antes de tudo, porque criou o Diabo? E nessa mesma ordem
de idéias porque, ao criar o homem lhe deu a possibilidade de escolher o mal,
em vez de o ter deixado a viver como todos os outros seres vivos, sem guerra,
nem hierarquias, nem vaidades, nem invejas, etc.?
Se a nossa inteligência, a nossa
alma, o nosso espírito, são fruto do “sophos”, do sopro do Espírito de Deus, ou
Deus fez uma trucagem e nos deu um espírito maligno, o que ninguém entende
porquê, ou, mais grave e pode parecer a mais profunda das heresias, se esse
espírito é o espírito de Deus, alguma coisa está errada. De que adianta a minha
alma, ou o meu espírito ter que reencarnar para voltar a sofrer, se esse
espírito nos foi dado por Deus.
Porque Deus faria isso com os
homens?
Se o espírito, a alma, ou como
lhe queiram chamar, nos foi “dado” por Deus, “à sua imagem e semelhança”, e se
existe desde... sempre, e sempre continuará a existir, e se eu posso encorporar-me
ao espírito eterno, isso significa que de lá saí, e se agora tenho que me purificar
para voltar, é porque terei saido de um espírito impuro!
Se Deus desde o “primeiro”
infinito antes de mim não teve tempo de se purificar, como poderá fazê-lo no
infinito seguinte?
O que não foi feito na eternidade
anterior ao meu momento, não vai poder fazê-lo na eternidade posterior!
Eu,
com toda esta argumentação já estava todo baralhado e o amável São Pedro
parecia estar a fixar as minhas observações para as ir expôr...
Achei
melhor terminar, dizendo-lhe:
Senhor, eu acho melhor não saber
nada, do que me alimentar de afirmações ilusórias e inconciliáveis.
Prefiro ficar com um infinito
incompreensível e sem limites do que me restringir a um Deus cujo
incompreensível é delimitado por todas as partes.
São
Pedro parecia um pouco confuso, mas com seu olhar tranquilo despediu-se com
esta mensagem:
Nada te obriga a falar do teu
Deus, mas se decidires fazê-lo é necessário que as tuas explicações sejam
superiores ao silêncio que elas rompem.
Só mais uma pergunta: o senhor é
o São Pedro?
Não. Aqui não há santos!
E
sumiu entre as nuvens!
E
eu?
Creio
que acordei... e fiquei em silêncio.
Ainda
estou indeciso se terá sido um sonho, mas tem dado muito o que pensar.
8-jan-13
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