quarta-feira, 16 de janeiro de 2013


Deixemos as meditações para "cair na real!


O roubo das jóias

1975.  Luanda.



Reina a anarquia, o medo. A economia pára, as gentes estão a abandonar o país que em breve alcança a independência (dependência dos dois blocos que dividiam o mundo), o exército português estraçalhado, entregue à escumalha vermelha, o alto comando na mãos de um traidor, e como é da natureza dos traidores, enriquecendo com a desgraça de todos, africanos, brancos, colonos ou não, a incerteza do futuro e uma imensa sensação de insegurança dominava.
No trabalho todos procuravam fingir que se trabalhava, mas a economia congelara. Entreolhavam-se, interrogavam-se, num dia já faltava um que voltara à terra, no dia seguinte mais outro, por fim restavam meia dúzia que teimavam que queriam ficar.
Para não atrapalhar os estudos, os filhos teriam que procurar terminar aquele ano lectivo, o que os obrigava a não sair de Angola antes de meados do ano.
Na casa ao lado da nossa foi instalar-se o comando de um dos grupos militares, a FNLA, que havia de ser, também, traído, pelos comandos portugueses. Esta gente, em boa maioria do Congo, mal falava português.
Balas assobiavam por cima da nossa casa e, não longe ouviam-se explosões de granadas! A luta não se passava mais entre o colonialismo e os colonisados, mas entre as diversas organizações que lutavam pela hegemonia do futuro país.
Empregados em casa, que procuravam fazer o mínimo possível, um. Chegava de manhã e à tarde ia embora para casa.
A minha mulher, já com parte das roupas e imbambas preparadas para uma saída de emergência, guardava no fundo de uma gaveta da cômoda, lá bem atrás, misturada com camisas, meias e cuecas, uma pequena embalagem com as suas jóias. Nada que se parecesse com o Koh-i-noor ou com a coroa dos Romanov, mas algumas pequenas pulseiras, um ou outro anel, um ou dois fios de pescoço e outras miudezas dos filhos. Era a nossa “fortuna” em jóias.
Uma bela noite mamãe mete a mão lá dentro para confirmar a sua presença não encontra mais do o vazio! Mexe, remexe, desmonta a gaveta, e o saquinho com as jóias evaporara.
Desesperada, lágrimas a cairem-lhe pela cara: “Roubaram-me as jóias! Roubaram tudo. Só pode ter sido o Zé. Ele é o único que entra aqui em casa!” (O Zé era o suposto nome do tal empregado.)
- Deixa que ele volta de manhã e eu vou interrogá-lo.
- Ele não volta mais. As únicas jóias que nós tínhamos! Algumas da minha mãe.
- Espera até de manhã. Agora nada pode ser feito.
Noite passada em claro, nervosismo e lágrimas, até os filhos que, como nós, nada podiam fazer.
Bem cedo, todo o mundo a pé, mãe e filhos no andar de cima, logo no topo da escada, bem juntos, aguardavam a hipótese do regresso do ladrão. Eu, calmamente na sala, sentado, silêncio total, as portas da frente e da cozinha trancadas, chaves no bolso.
Finalmente à hora habitual vem o descarado. Abri-lhe a porta de serviço que logo voltei a fechar à chave para que ele não fugisse, chamei-o à sala:
- Zé! Você roubou as jóias da senhora!
- Eu, patrão? Não roubou, não siô.
- Roubou sim. Só você é que entra nesta casa e apesar de não ter nada que fazer no andar de cima você foi lá e roubou tudo.
- Não roubaste nada, patrão. Eu jura mesmo.
- Roubou sim. E eu vou chamar à polícia.
- Eu nunca roubaste nada.
A cena repetia-se sem evoluir: você roubou, não roubou, roubou, não roubou... e eu já sem saber o que fazer, espreitava do fundo da escada para a minha mulher, encolhia os ombros como a dizer-lhe “o sujeito diz que não roubou, e o que é que eu posso fazer?”
Lá do alto, a cabeça da mãe rodeada duma porção de filhos, testas franzidas, dedo levantado faziam-me sinal de que só poderia ter sido o tal Zé. Ela tinha a certeza!
Voltava eu à carga. Roubou, sim. Não roubou, não...
Nova conferência mímica através da escada. E a certeza do andar de cima não punha qualquer dúvida que aquele era o ladrão.
Cofiei a barba à procura duma solução.
Tinha ali pendurado na parede um javite - um pequeno macho africano de caçador, com uma cabeça que serve de moca, que ainda hoje orna uma das nossas paredes, uma peça que hoje tem mais de cem anos.



Agarrei nele, vou direto ao Zé com ar desvairado (mas com vontade de rir), agarro-o por um braço e a voz alterada:
- Foi você quem roubou as jóias e eu vou abrir-lhe a cabeça! (Isto aos gritos!)
- Fui eu sim patrão! Fui eu! Mas não me mata, patrão, não mata.
- Senta aí e fica quietinho. Vou telefonar para a polícia.
Do alto da escada a “torcida” vibrava com a vitória, e eu tive que me esconder atrás da parede para não mostrar o quanto “irado” estava, porque me ria!
Veio a polícia. Polícia ainda portuguesa, que me foi avisando que, além e ser perigoso estavam proibidos de entrar nos muceques, mas que iriam procurar saber alguma coisa, e levaram o Zé.
No dia seguinte, de uns dez ou doze objetos, somente haviam conseguido recuperar uma pulseira de ouro fininha de valor irrisório, que o miserável ladrão vendera pelo preço de um refrigerante! O resto...
Quanto ao Zé, deve ter sido logo posto em liberdade, mas não o voltámos a ver.
Não tardou muito éramos forçados a dizer adeus a Angola.
Sem jóias.

15/01/2013

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