quarta-feira, 30 de novembro de 2011


Continuação da carta de um clérigo do Congo para o Rei de Portugal, em 1619


EIRey dom Alvaro segundo, foi bem quisto, e muy melhor obedecido que os que lhe suçederão, ainda que da mesma vida, chamousse magestade por assy lho meterem em cabeça algús Religiosos, e outras pessoas, tomando para isso motivo de entenderem mal hua carta q o sumo pontifiçe lhe escreveo, e por Eu lhe estranhar a magestade, e lha impedir por vertude de huá carta de V. M.de que para isso tive, e por prender e embarcar o padre deão diogo Roiz pestana, que era muy seu valido por V. M.de assy mo ordenar por outra, recebeo contra my grande odeo, e impedio o effeito desta prizão muitas vezes, de maneira que para a poder fazer, uzei de escomunhões, e interdictos, como V. M.de me mandou que o fizesse, E estas çenssuras, se levantavão huás vezes, e se tornavão a por outras, porque por muitas, mostrou elRey que obedecia a ellas, tornando logo a desobedesser, e cõ esta sua preçeguissão, e odeo que durou em quanto elle viveo, receby Eu notavel perda, na quietação, Jurisdição, e fazenda, sem me apartar hum ponto do q V. M.de me mandou, como constara de muitos papeis q tenho em meu poder .
EIRey dom Bernardo que lhe sucedeo, e que durou pouco por ser morto por EIRey dom Alvaro terceiro seu sobrinho como he dito, e que Eu não vy por no seu tempo estar em loanda, no principio, correo bem comigo em cartas, e eu cõ eIle, quis tambem chamarsse magestade, e pediome que fosse a Congo para..lhe lançar o habito de Christo, ou lhe mandasse licença para lá o receber, respondendo lhe Eu, segundo o q V. M.de me tinha mandado, que nenhuá daqlas. cousas, podia, nem devia fazer, representandoselhe, que Eu lhas negava plo molestar,e não por não poder, tambem se indinou muito contra my, e durou nisso em quanto viveo, que foi pouco, e numqua tomou o abito de Christo, nem tambem apertou muito sobre o titulo de magestade .
Tem a gente do Congo, e de Angola muitos ritos gentilicos de que assy uzão, os que o são, como os bautisados, e a Christandade pla mayor parte he só de nome, porque quando os curas vão correr os districtos de suas capellas, he mais para receber as colheitas, que para ensinar, e assy bautisão a todos os q se lhe offerecem, sem diferença de pessoa, e sem os catequisar, e posto que por este modo ficão bautisados, he o bautismo informe, e tantos sacrilegios cometem, quantos bautismos fazem, e dando Eu distintamente a ordem que isto se devia ter, nem isso foi bastante para tirar este abuso (posto que em parte se melhorou) e para sever qual he a christandade daquellas partes, e como ellas se administra bautismo, digo o q me aconteçeo, indo visitar os presidios, a onde numqua foi outro prelado; e he que achando entre os sovas da obediencia de V. M.de no presidio de Cambambe, sete bautisados, e perguntandolhes publicamente pla doutrina, nem essa, nem o sinal da Cruz sabião, nem se tinhão confessado numqua, nem entrado em Igreja, afirmando que nenhuá destas cousas se lhe diçera, quando forão bautisados, e perguntandolhes, se deixarão as mancebas, ou quantas tinhão, o principal respondeo que çento e vinte, outro que çento, outro q sessenta, outro que çincoenta, outro q trinta, outro que vinte, e outro que quinze, e sendo esta a christandade assy querem os governadores que os padres bautisem; entendendo que nisso acertão e poderão alegar que converterão muitas almas, e tambem se não fas este officio cõ a perfeição devida, quando em loanda se bautisão os escravos q se embarcão para fora, porque ha aly, só hum Vigario a que pertence, e que alem de não saber a lingua, trata mais de receber o premio, que de acertar em seu officio .
Naquelle Bispado não achey constituições, nem cousa por onde me ouvesse de governar, e por isso as fis com muito trabalho, e he magoa grande que sendo a gente tanta, as terras tão fertis, e tão largas, se perca tudo, por falta de ministros Eclesiasticos, o Porto de loanda he excelente, mas o territorio cõ seus arredores, sequo, e infrutuoso, e passão dous, tres e mais annos que não chove, sendo muito ao contrario pla terra dentro, os Reys do Congo trasem todos o habito de Christo cá hua seta de são Sebastião, e o mesmo os duques, de batta, e bamba, e os manilouros, tendolhes V. M.de por veses mandado declarar, q não pode ser, por ser cousa Eclesiastica e de grande escrupulo e só concedida a V. M.de, como mestre da ordem, e não ha podelos tirar deste abuso, por q crem firmemente que o q huá ves se lhe deu, he para dos os q lhe suçederem, sendo assy, que o que elles dão, tirão cada ves que querem, e trasem ao pescoso muitas cadeas de ouro, alquime, e aço, cõ muitos habitos, tendo o por grandesa, e loucainha. São os Rey do Congo, univerçaes erdeiros de todos seus vassaIlos, e tomando para ssy, o que querem do q lhes fiqua, o mais dão livremente a quem querem, e os que oje são duques amenhã os tirão, e ficão servindo a fidalgos ordinários.
Esteve o R.no do Congo despois de sair delle o capitão mor Ano Glz pita, sem capitão, nem ouvidor de V. M,do algus annos, e despois fis Eu có muito trabalho reçeber hum que mandou o governador luis mendes de Vasconcelos, a q se tem muy pouco respeito, porque EIRey se mete em tudo, e trata muy mal os vassallos de V. Mde, levando os consigo a força descarapusados, e o mesmo fazia aos saçerdotes, e ainda os obrigua a que o acompanhe as guerras e a outros caminhos que fas, sem lhes dar o neçessrio para isso, aos paçageiros desbalijão, e empendenlhe os caminhos, levanlhe extraordinarios tributos, e peitas, q acressentão, cada dia, e postas e outras, extorções, ha grandes desgostos, queixas, e perdas. pedem Sol, e chuva aos prelados, e aos sacerdotes, como a pedem aos seus feitiçeiros, e queixãosse de lha não darem, como se isso fora em sua mão.
V.M.de manda que nenhuás fazendas prohibidas plos Reys de Congo, levem os portugueses, a seus R.nos e q se lhos tomem por perdidas, todas as que não registarem, e porque isto se não guarda ha cada dia, grandes inquietações, tem ElRey de Congo prohibido có grandes penas, que não levem os Vassalos de V.M.de a seus R.nos Zimbo do brazil, e de outras partes, porque como essa he moeda que nelles corre, esta cõ a grande cantidade q vay de fora; tão abatido o seu, que perde nelle as duas partes de suas rendas, e o mesmo aconteçe aos Eclesiasticos porque nelle lhe fazem o pagam.to de algús disimos q lâ ha, e por este respeito a petição do mesmo Rey, o prohiby Eu por escomunhão, E nem cõ ella, nem cõ as penas q EIRey tem posto, deixa de entrar, em tanta quantidade, que vay deitando aquele R.no a perder, e se EIRey para o atalhar dá algum castiguo alevantáolhe que presegue os vassalos de V.Mde. E não respeitão que elles são os que o perçeguem a elle, levando lã muitas mercadorias falças, e vendendoas por finas, em muy grande perjuiso de suas consçiençias e desacato de hum Rey christão, que V.M.de ampara, e manda amparar sempre.
Todas as materias de Justiça, se Julgão por audiencias verbaes, e co muy pouca prova confiscão as fazendas, degredão, matão, empenão, e apedrejão, e se logo se não executão suas resoluções verbaes, por qualquer roguo e peita se perdoão dilictos gravissimos, e plo. liviçemos e mal provados, morrem e padeçem os dos favorecidos, e estão tão entregues a este modo de proceder gentilico que não avera força umana que cõ elles introdusa outro christão, deixãosse entrar de qualquer sospeita, e são façelissimos em levantar testemunhos falços, e em se desdiser delles, e sendo arguidos dos vicios em que caem de maravilha os negão, os principais tenho aprontado, e para os q ficão serião neçeçarios livros inteiros .

Ds. guarde a Catholica pessoa de V.Mde. De lisboa a 7 de setembro de 1619.

(Biblioteca Nacional de Lisboa. Secçáo Ultramarina Caixa 4)

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