quinta-feira, 28 de setembro de 2023

 

“Habilidades” dos  Mininos Amorim

Algumas passagens da vida de todos eles, quando crianças.

Situámos as a histórias, no tempo e no lugar.

Escrito, e esquecido, em 2015, sem alterações

 

Jorge. Nasceu em 1955.

Luanda, talvez 1964. Na praia virada para a baía, na ponta da Ilha. O tio Barlomomeu Aragão tinha uma pequena lancha, sobretudo para fazer sky. O Jorge, que nunca tinha andado naqueles brinquedos estava entusiasmadissimo, e disse ao tio que queria experimentar.

- “Se o teu pai deixar...”

- “Pai, posso andar de sky?”

- “Tu sabes esquiar?”

- “Sei, sim, pai.”

- “Então podes.”

Colocou os skys, eu ajudei-ao a sair e andou às voltas na baía, como se fosse coisa que sempre tivesse feito.

- “Eu não disse que sabia?”

Sempre soube o que quis. E na frente da maioria.



Luis. Nasceu em 1957.

Aí por 1962 ou 63, um primo direito do meu Pai, Jorge Rebelo de Andrade, passou o Natal em Luanda em casa duma sobrinha, a muito querida prima, como irmã, Maria da Graça Vasconcelos, casada com o José (Azeredo e) Vasconcelos, na ocasião inspetor da Companhia Colonial de Navegação em Luanda.

Vésperas de Natal jantou em nossa casa (Rua Cabral Moncada, 120) e levou um presente para o Jorge: uma bicicleta. Como era noite não houve como alguém experimentar o dito veículo, nem na rua nem no jardim (careca, só com uma árvore, frondosa, no meio) na traseira da casa.

No dia seguinte, mal o sol nascera, estava tudo à espera que eu aparecesse para andarem, aliás o Jorge, o dono do brinquedo, andar, porque nunca tivera nenhuma nem andara de bicicleta.

Montou em cima, saiu andando e ficou circulando à volta da árvore completamente à vontade.

O Luis, ao lado, dava uns pulinhos, só dizia que também queria andar.

- “Tu sabes andar?”

- “Sei, sim, pai.”

- “Então vai andar.”

Montou na bicicleta e lá vai ele, impecável! Quando parou perguntei-lhe:

- “Onde aprendeste a andar?”

- “Esta noite. Sonhei que sabia... e sabia!”

Sonha, e acontece. Além do que acontece sem sonhar.


Chico. Nasceu em 1958

1964. Não devia ter ainda seis anos. Num dia em que a mãe teve que sair de casa na parte da tarde, levei-o comigo para a Cuca, a famosa fábrica de cervejas. Ele por lá esteve entretido a fazer desenhos, sua especialidade, e quando chegou o fim do expediente eu ainda tinha assuntos a tratar pedi ao chefe da secretaria de vendas, Magalhães Monteiro, se podia levar o meu filho até casa. Disse logo que sim, e enquanto este arrumava as suas coisas eu disse ao Chico para levar uma carta e entregasse à mãe. (As cartas naquele tempo iam todas para a Caixa Postal da Companhia, e não para os endereços das nossas casas).

Passado uns 10 minutos o Magalhães Monteiro (MM) veme dizer-m que estava pronto para sair e levar o Chico.

- “Não está aqui. Deve estar à sua espera na outra sala, ou na entrada.”

Adeus, até amanhã, etc., e mais uns quantos minutos passados volta o MM e diz que não encontra o Chico. Saimos os dois à procura dele. Nada. Perguntamos a uns quantos colegas da Companhia, ninguém o tinha vista. A Portaria era um pouco afastada da entrada do prédio comercial e o porteiro, idem, nada vira também.

Começamos todos a ficar nervosos e preocupados. Sai o MM e outro colega, que não lembro mais quem terá sido, de carro, estrada fora a ver se viam a criança.

NADA.

Telefono para casa convencido que ele teria apanhado boleia (leia-se carona no Brasil) com alguma outra pessoa, mas não tinha chegado, nem a mãe ainda tinha voltado dos seus afazeres.

Os colegas que percorreram os caminhos à procura do Chico vinham de cara abatida dizer-me que não o tinham visto em lado algum.

Eu sentado, suava de nervosismo, sem saber o que fazer, e sem querer alertar em casa que o “tinhamos perdido”, volta e meia telefonava de novo, e pedia que telefonassem assim que ele chegasse a casa.

NADA.

Passaram-se talvez uns três quartos de hora. Talvez mais. Pareceu uma eternidade.

Chegou finalmente o telefonema:

- “O Chico chegou e tem na mão uma carta para dar à mãe.”

Corri para casa. Como era possível que ninguém o tivesse visto na estrada da Cuca, no caminho que sempre faziamos de carro?

- “Pai, eu vim direto. Por dentro do musseque.”

- “!?!”

Só largou a carta quando a mãe chegou a casa e lha entregou!

Ainda hoje o Chico tem um notável senso de desorientação. Como ele fez aquilo, sózinho, minúsculo, não seguindo pelas ruas, mas cortando caminho e sem largar a carta da mão, ainda é hoje motivo de espanto e de muito rirmos.

Distância percorrida: cerca de 5 quilómetros!

É para fazer, faz-se.

 


 Helena. Nasceu em 1960.

No Colégio São José de Cluny, Luanda, de que ela tem péssimas recordações! Devia ter uns 9 ou 10 anos.

Uma das professoras, talvez uma das madres, um dia fez uma “brilhante” predileção sobre higiene, o uso da água, lavar os dentes e as mãos, estas antes, aqueles depois das refeições, a cara de manhã e antes de dormir, etc. Uma imensa apologia da água, que era muito boa para saúde, que deviam beber água filtrada, enfim um arrazoado... mais ou menos inútil.

No fim mandou que as alunas fizessem uma redação sobre o assunto.

A Helena esmerou-se. Escreveu que tinha que se lavar sempre muito bem, mãos, cara, dentes, etc., que a água era muito boa para a saúde, mas teve um remate digno de Voltaire ou Gil Vicente:

- “A água é muito boa, mas o meu pai só bebe vinho.”

Já ninguém sabe, que nota terá tido, nem qual a opinião da douta professora sobre o “alcoólico” pai daquela aluna!

E a verdade é que o pai continua a beber vinho que lhe faz muito bem à saúde.

Alegria e boa disposição. Mas que ninguém lhe ponha a mão em cima...

João. Nasceu em 1961

Duas histórias.

Luanda. Teria meia dúzia de anos, e andava numa escola do outro lado do Parque Alvalade, que ficava atrás da nossa casa da Cabral Moncada. Na ida e na volta da escola, tinham que atravessar aquela área verde, arborizada. Voltava sempre da escola com alguns dos irmãos que entravam em casa, para o almoço, sem a companhia do dito João. Esperávamos um pouco, porque ele nunca foi de corridas e... nada.

Lá ia alguém percorrer o caminho em sentido inverso e, invariavelmente, encontravam-no sentado num banco do jardim a mexer com os “Fuca-fuca”! Aqueles bichinhos, tatuzinhos de jardim, Armadillidium vulgare, que se enrolam todos quando se lhes toca.

Pois o João tocava-lhes e ficava sentado o olhar para ver quando eles se desenrolavam e iam embora. E ficava... todos os dias a mexer com os “Fuca-fuca” como eram (ainda serão?) chamados em Luanda e sempre a chegar atrasado para o almoço!

Outra: um dia os tios Melícias foram lá a casa, à tarde. O João estava estendido no chão da varanda, barriga para baixo, mãos nos queixos, tão ocupado no que estava a fazer que nem se levantou para falar aos tios.

Pergunta-lhe o tio António Nuno:

- “João, o que está a fazer aí deitado?”

- “Estou a ver uma corrida com estes dois carracóis. Ó tio, este aqui (um deles) anda com uma mecha!” (“mecha” sugnifica velocidade!)

Andava mesmo. O João estaria ali há meia hora. Um dos caracóis tinha andado uns quinze centímetros, e o “que andava na mecha”... uns vinte!

Parece que ainda hoje os caracóis na cortaram a meta!



Joana. Nasceu em 1964

Lourenço Marques (Maputo). 1973. O BCCI – Banco de Crédito Comercial e Industrial – patrocinou a construção e a venda em condições especiais de uns vinte magníficos barcos, os Optimist. Uma beleza de barquinhos para a iniciação à vela. Contratou um sujeito que era ótimo construtor de barcos de recreio e depois vendeu-os, financiados, praticamente sem juros.

Eu fui dos felizardos que conseguiu um para os filhos.

No Club Marítimo organizou-se a festa de lançamento à água dos barcos com uma “imponente regata”! Os velejadores tinham todos entre 9 e 11 anos. E lá vai a Joana, com aqueles dois rabichos no cabelo, sem a mínima noção de como governar o barco. Bem pequenina só se lhe via a cabeça a aparecer por cima da borda, mas sempre a rir. Os dignos velejadores – quase todos – cumpriram as voltas necessárias, voltaram ao club, e a Joana, lá continuava, andando de um lado para o outro, a rir e sem saber como voltar para terra. Foram lá buscá-la. Foi muito aplaudida!

Entre 15 competidores classificou-se em 14º.

Determinada. Guerreira.

Tiago. Nasceu em 1967

Lourenço Marques, 1972. O Tiago, sempre super agitado, estava com a garganta inflamada e o médico disse que era melhor operar as amígdalas. Lá fomos para uma Casa de Saúde, um quarto para o doente.

Pouco antes da operação vem uma enfermeira para lhe dar uma injeção que o fosse acalmando, porque a intervenção se faz, ou fazia, com anestesia local. E vá de tacar uma injeção no paciente.

Uns minutos depois o”anestésico” começa a fazer efeito – extamente oposto – e o Tiago sai disparado do quarto e começa a correr por toda a Casa de Saúde. Enfermeiros a correrem atrás, entrava em quartos particurares, nas alas reservadas, em tudo que era canto, mas quem o segurava? Foi uma tourada! Finalmente apanhado, levado para a a sala de operações, de lá voltou anestesiado e operado. Deitaram-no na cama e volta e meia, sempre desacordado, deitado dava saltos como se fosse chutado de baixo para cima por uma mula.

Eu tive que o agarrar com força e ficar falando baixinho no seu ouvido “que estava tudo bem, que era o pai que lhe falava”,  para o acalmar. Finalmente começou a acordar, sossegou e voltou para casa.

*

Rua Cabral Moncada. 1974. Na casa ao lado tinha estado o comando do Grupo de Voluntários, e após o 25 de Abril este Comando foi desfeito a ali instalado o Comando do FNLA!

O Tiago, comunicativo como continua a ser, estava íntimo dos soldados da guarda, quase todos do Congo, que mal falavam português. Entrava e saía à vontade daquele “quartel” e conversava com os soldados que lhe achavam graça pela desenvoltura.

No meio de uma conversa, um dos soldados, simpático, dá-lhe umas palmadinhas de simpatia na mão. Uns afagos, porque estava a gostar do papo. E logo o Tiago:

- “Preto não põe a mão no branco!”

O que foste dizer! Meu Deus. O Fenela – como chamavam aos soldados daquele grupo – ficou bravo, chamou-lhe racista e decidiu bater à porta de nossa casa, arma na mão, a pedir satisfações, chamar-nos racistas, que ensinavamos isso aos nossos filhos, enfim, quase uma declaração de guerra!

Foi um sarilho para o acalmar e lhe fazer ver que a criaça nem 7 anos ainda tinha e que se todos os dias ia lá conversar com eles era demonstração evidente de que não éramos racistas.

Ainda perguntei: “Quantos garotos brancos vão conversar com vocês?” Calaram-se.

Mas deu trabalho!

Sempre um passo no futuro, no companheirismo e alegria.


Lourenço. Nasceu em 1970.

O Lourenço leva a palma de ter sido o que andou mais cedo. Tinha cerca de 6 meses e meio e vinham os amigos dos irmãos mais velhos ver “o bebé que anda”!

São Paulo. 1983. Já não era exatamente um bebé. Feriados de Páscoa ou Carnaval, foi ficar dois dias em casa de um amigo. Aliás os filhos todos tinham ido cada um para seu lado, e só os pais ficaram em casa. O pai, no jardim lavava o carro quando sente um carro parar em frente do portão. Estranho, porque a rua estava deserta e logo parar em frente do portão?!

Abri-o e sai um rapaz de dentro dum carro a perguntar pela Dona Gabriela.

- “Quem é você? Eu sou o marido da Dona Gabriela.”

- “Bom... um filho seu... teve um acidente... está no hospital...”

Minha reação imediata:

- “Morreu?”

- “Não, senhor!!! Nada disso. Chocou com um carro e feriu-se, mas está livre de perigo, e pediram para avisar os pais porque ele terá que ficar pelo menos um a dois dias no hospital.”

Disseram onde era o hospital e lá fomos nós, coração na mão, à espera de...

Estava ainda na sala de atendimento.

Tinha ido passear de bicicleta com um amiguinho, a fazer corridas por ruas quase desertas, mas no fim de uma destas entrou na contra-mão de uma cheia de trânsito, e foi apanhado bem de frente. Entrou pelo párabrisas, o motorista ficou horrorizado, foi embora, mas logo acorreu gente. Alguém o socorreu e levou para o hospital. Estiveram várias horas e tirarem-lhe pedacinhos de vidro da cabeça, costas, braços, etc. e levou sessenta pontos por todo o corpo!

Um pouco mais tarde aparece o motorista com quem ele chocou. Ainda apavorado, tanto mais que levava no carro um filho pequeno que começou logo a gritar “o papai matou aquele menino!”

Veio desculpar-se! E de fato não teve culpa.

Durante muitos anos continuavam a sair pedacinhos de vidro de dentro da pele, e até hoje ainda lá tem alguns!

À procura de ser músico, mas...



******************

 

Ano seguinte, mais outra num dos feriados prolongados, quando da mesma forma todos tinham ido passar esses dias com amigos, e só os ditos progenitores em casa.

Dez horas da manhã toca o telefone. Era o Banga, o querido sobrinho, filho da Isabel e do Zé Perestrelo, com quem o João tinha ido acampar numa praia ao sul de Santos, Mongaguá.

- “Tio! Não se assuste, mas... houve um acidente...”

Eu logo, para encurtar:

- “Quem morreu?”

- “Não, tio, não morreu ninguém. A barraca onde o João estava a dormir pegou fogo e ele queimou-se muito. Está na Santa Casa de Misericórdia de Santos. Eu estou aqui também.”

- “Vou já p’raí.”

- “Bela! O João queimou-se e está num hospital em Santos. Arranja-te depressa.”

Lá fomos, nervosos, para Santos. A tal Santa Casa nessa altura já estava quase falida de modo que numa ala inteira, numa grande enfermaria só lá estava o João. O médico disse-nos que tinha poucas queimaduras de 3º grau e que ali não tinham condições de o tratar, mas não o deixaria sair naqule dia. Que o fossemos buscar no dia seguinte, que era domingo.

Regresso a São Paulo, direto ao Hospital dos Defeitos da Face – hoje Hospital da Cruz Vermelha Brasileira – onde o Tiago tinha estado uns oito anos antes (depois conto essa!) reservar uma cama para ele.

Domingo, depois de muito bem lavada, a Kombi transformada em “ambulância” particular, tirados os bancos traseiros e com dois colchões no chão, lá fomos buscar o “churrasquinho” a Santos. Fez um ótima viagem, sempre com soro, ficou entregue ao Hospital onde passou mais uns dias.

 

Quando voltámos a casa eu fui fazendo planos: “para o ano quebro logo uma perna a um deles antes dos feriados. Assim não teremos sobressaltos.”

Não quebrei.

 Jan / 2015

 

2 comentários:

  1. Chico: missão dada, missão cumprida. Até hoje! Ameeeei! Deu um "perdido" mas entregou a carta! 😍❤😂

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  2. Essa do João estava com o meu irmão Banga numa barraca ao lado e não percebemos nada. Só viemos a saber do incêndio e qual hospital o João tava na manhã seguinte.

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