quinta-feira, 7 de setembro de 2023

 

INTROITO... não introduzido

 Há já algum tempo - em 1989, de que são passados 34 anos - comecei a escrever umas “coisas” que acabaram formando o livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”, e este gerou uma boa quantidade de agradáveis comentários, muitos deles guardados até hoje.

Essas “coisas” começaram por cenas de caça vividas em Angola, que mandei ao meu GRANDE amigo João Salgado, amigo de infância e parceiro de algumas caçadas, para que me desse a sua opinião sobre os escritos.

Respondeu-me logo. Tinha gostado imenso, fez alguns comentários e relembrou várias outras cenas. Enfim incitou-me a que continuasse a escrever.

Continuei.

Para isso, na altura lembrei-me de escrever um Introito, que pareceu fundamental para iniciar um possível livro, introdução essa acabou não sendo usada, e agora descoberta um papel amarelado e fragilizado pela idade, no meio de uma infinidade de outros papeis a que estou a ver se sou capaz de ordenar.

Achei o Introito “abortado” na ocasião, pois não o encontro em nenhum dos livros que escrevi.

Achei interessante (não me estou a gabar) e decidi que o daria a conhecer aos que leram o livro e aos que não leram!

Podem comentar à vontade, dizer bem ou mal, o que desde já agradeço!

N.- O que vai entre parêntesis e em itálico não é do original.

 

INTROITO

Todos os, como eu, cresceram e foram educados no tempo do Estado Novo (em Portugal), talvez também uns quantos mais antigos e, quem sabe?, se igualmente muitos das gerações mais novas, ficámos imbuídos de um complexo histórico que nos marcou estranhamente, com uma espécie de aversão aos espanhóis que sempre procuraram dominar toda a península, mas a quem os nossos ancestres tão bem enxotaram do terreno luso.

Haja em vista a Batalha de Aljubarrota, o movimento para a Independência em 1640, sem falar no nosso rei Afonso IV que, não fosse ele, ainda hoje Granada ...

Depois a nossa ajuda durante a triste guerra civil (quando os comunistas que se preparavam para ganhar a guerra afirmavam que a seguir iriam sovietizar Portugal!). E até há poucos anos quando o escudo valia duas e meia pesetas, o que nos dava uma sensação de superioridade que confirmava a psicose recebida na escola.

Com o correr dos anos fui aprendendo que, em cada vinte jogos de futebol Portugal-Espanha nós conseguíamos a tremendo custo ganhar um, empatar outro e perder os outros dezoito! Isto, segundo se badalava, jogando melhor que os adversários, como é de imaginar. Mas sempre havia azar, árbitros do contra, etc..

A seguir assistimos a um estupendo surto de desenvolvimento harmónico dos nossos vizinhos, a um inteligente jogo político entre os diversos partidos, e... a uma constante desvalorização do nosso dinheiro que hoje vale dois terço de uma peseta!

Felizmente que já há muito tinha conseguido constatar que aquela noção de comparação Portugal-Espanha estava totalmente errada. Graças a Deus, quando não o choque teria sido muito grande.

Com respeito aos mouros, uma vez que haviam sido escorraçados do nosso território há muitos séculos, ficou-nos o tal complexo por termos sido “colonizados” durante quinhentos a seiscentos anos por “gente de condição tão inferior” à nossa. Como tal havia sido possível? Só por questão de números: nós éramos poucos e os “infiéis” aos milhões! Só assim.

Na escola creio que se esqueceram de nos ensinar algumas coisas que me parecem de importância relevante na nossa vida quotidiana, mesmo hoje, final do século XX,

Por exemplo só o facto de nos terem deixado o “almoço”! Imaginem se tivéssemos ficado sem ele. E o fado? Sim, o fado? Já pensaram o que seria dos portugueses, sobretudo lisboetas e estudantes de Coimbra, sem o fado? E não me venham dizer que isso não é herança dos árabes. E os alcatruzes das noras? E as moiras encantadas, de olhos azuis, que davam toda a beleza aos contos com que adormeciam os nossos avós? Que mais nos deixaram? Tantos e tantos ensinamentos de ciências matemáticas, médicas, agrícolas, etc. Talvez a maior herança desse povo tenha sido ainda a nossa capacidade de miscigenação, que criou os novos mundos onde não se chocam nem raças nem credos.

Deixou-nos também um provérbio, cuja origem se perde no tempo, de uma saberia imensa: “Um homem só se realiza neste mundo se tiver um filho, plantado uma árvore e escrito um livro.”

Parece um ditado machista, mas tanto pensei nele, por achá-lo curioso, que não foi difícil encontrar-lhe o profundo significado: em primeiro lugar, se o homem não fizer filhos a humanidade acaba por se extinguir.

Crescei e multiplicai-vos. Há que perpetuar a espécie. Mais do que evidente.

Depois tem que plantar uma árvore para deixar aos vindouros a natureza equilibrada, tal ou melhor de como a recebeu. Usou madeira, lenha, e sabe que se não replantar, um dia os seus descendentes não vão ter mais florestas, perigando a sua sobrevivência. E hoje em dia que tanto se fala em equilíbrio ecológico, há quantos anos os árabes nos deixaram essa mensagem?

Finalmente escrever um livro. Para quê? Para que possamos passar aos filhos os ensinamentos que conseguimos ir colhendo ao longo dos anos.

Provérbio sensacional. Foi ele que me inspirou a escrever.

Filhos tive número suficiente para me terem mantido ocupado e preocupado durante muitos anos, e ainda hoje. Netos já começaram também a chegar (em 2023 estamos nos bisnetos) que continuam a povoar este mundo.

Árvores plantei muitas, de muitas espécies e em muitos lugares. Talvez milhares. E continuo plantando, não só por considerar isso importante para o equilíbrio da natureza, mas por puro egoísmo também: as árvores são seres lindos, e dá um enorme prazer vê-las crescer. Eu sei que algumas levam dezenas e dezenas de anos a se tornarem “adultas”, e a grande maioria eu já não vou ter possibilidade de apreciar. Mas o mundo não acaba quando eu fechar os olhos.

O livro. Não que eu tenha pretensões em deixar aos vindouros algum ensinamento especial. A minha ignorância não o permitiria. Mas todos nós temos passagens nas nossas vidas que pensamos merecem ser contadas.

Tudo aquilo que escrevi não é ficção. Foram episódios da minha vida ou da vida de alguns amigos que compartilhei. Podem não estar cronologicamente corretas, mas isso não impede que se tenham passado como os conto. Infelizmente do mesmo modo não soube contá-los com a graça e a vida que alguns tiveram, nem descrever a cor local.

São um apontamento e assim devem ser lidos

 

São Paulo, Abril de 1989

 

3 comentários:

  1. Francisco,
    Como eu gostaria de saber escrever assim - e ter o quê para o fazer.
    Ainda não me disse de que é feita a tal bolsa que espirrou azul
    Abraço
    APM

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  2. Gostei, e muito, do introito não revelado na altura própria. Sou sempre suspeito na apreciação dos teus escritos porque sou um verdadeiro macaco de auditório sobre eles. Gostei

    Grande abraço

    Manel

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