quinta-feira, 14 de setembro de 2023

 

Mais um dos primeiros textos que escrevi, em 1986, falando de África, evidente, que acabou substituído por um outro para a entrada das páginas dedicadas a caçadas, no livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”. Por isso “alguns tiros certeiros” que aqui não vão aparecer.

Este tem mais descrição do país, e por isso achei que alguns leitores iriam gostar.

Revisto de algumas gralhas e imprecisões, aqui vai ele.

ALGUNS TIROS CERTEIROS

 

Há uns tantos imprecisos anos ainda toda a África negra era um paraíso, com uma variada e exuberante fauna, desde o pequeno antílope ao elefante, carnívoros, pássaros, etc. Os maiores animais terrestres ali se encontram, como o grande elefante africano, o rinoceronte, e até nas aves nenhuma alcança o porte da avestruz,

A todos estes animais passou a designar-se genericamente por “caça”, e ainda hoje guardam esse nome os “parques de caça”, mesmo que não se possa abater animal algum.

Essa imensa e maravilhosa fauna chegou quase intacta até aos nossos dias (até meados do século XX) porque em todo o continente não havia caça predatória, as populações se mantinham em reduzido número e sempre houve com que se alimentarem.

A maioria das pastagens hoje utilizadas em todo o mundo para criação de gado tem as suas origens nos “capins” nativos africanos.

É imensa a variedade de antílopes e de predadores carnívoros. A natureza é de uma prodigalidade que encanta. Extensões imensas com manadas de animais que por vezes atingem largos milhares.

Quem alguma vez esteve em África jamais pode esquecer o que viu. E quem não viu não consegue imaginar.

Há por todo esse mundo lugares lindíssimos como o Rio de Janeiro, Acapulco, os Alpes, Havaí, as ilhas do Caribe e do Pacífico, a inigualável Amazónia, etc. Obras feitas pelos homens nos deixam igualmente extasiados, como as Pirâmides do Egito, as ruinas astecas, Machu Pichu, monumentos na Grécia na Itália e na China, mas não creio que nada tenha a beleza e a grandiosidade de uma manada de cinco ou seis mil búfalos em plena liberdade, ou uma centena de elefantes com os seus enormes chefes e pequenas crias, tomando banho num rio ou num charco, ou assistir a uma caçada feita por uma família de leões!

Ainda hoje há possibilidade de ver algo, se não desta grandeza, pelo menos com beleza semelhante, porque felizmente diversos países mantém um razoável número de “parques de caça” onde o visitante somente pode caçar com a sua máquina fotográfica ou de filmar.

As boas e precisas armas de caça só há poucos anos (talvez uns oitenta!) invadiram aquele continente.

No século passado (XIX) e nos primeiro deste a caça que o homem branco ali fazia era desportiva e para fins alimentares e não predatória.

Procurava o melhor e maior troféu o que pressupunha caçar o velho macho solitário, já isolado pela sua manada que, sem mais servir como reprodutor, aguarda a morte natural, quase sempre violenta, por predadores mais fortes. Por isto todo o solitário é um animal desconfiado, e como todo o solitário, mal disposto, pronto a defender aquele resto de vida.

Os nativos, que não faziam caça desportiva, matar por matar, nem possuíam as inconvenientes armas de fogo, mantiveram todo um equilíbrio natural até à entrado do século XX. Talvez até mês a meados deste século. Caçavam o suficiente para se alimentarem. Só os elefantes é que sempre sofrerão perseguição porque o marfim era, e ainda é, considerado moeda valiosa, muito procurado desde a antiguidade. Mas a precariedade das suas armas, lanças e setas, manteve o abate destes animais em número reduzido.

Mais tarde, a expansão do homem em geral, ocupando cada vez mais território com seu gado e agricultura, necessitando por isso das pastagens que até há pouco eram privativas dos animais selvagens, e a desenfreada caça com armas até automáticas, puseram em eminente perigo a extinção desta vida selvagem.

Hoje, mais ainda com a independência dos territórios africanos e sua necessidade de desenvolvimento agrícola para alimentaras populações com índices de crescimento elevados, a divulgação das armas de fogo e e o descontrole que reina em alguns desses países, com guerrilhas permanentes, esse paraíso natural está ameaçado de desaparecer rapidamente, e dentre em breve podem sobrar somente uns escassos parques de caça, e os zoológicos, onde os nossos filhos e mais descendentes mal conseguirão apreciar os animais.

Faltar-lhes-á o seu habitat natural, a sua vida em total liberdade, a maravilha do equilíbrio da natureza que o homem tanto se esforça por exterminar.

Não há muitos anos, ainda perto das povoações e bem perto significa alguns centos de metros, se podiam encontrar diversas espécies de antílopes pastando, por vezes descaradamente a comer dentro das hortas que os agricultores faziam à volta das suas casas, ou mesmo dentro de quintais. Até os leões entravam nos curraispara pegar um ou mais bois, geralmente os mais frágeis ou os mais gordos, para suas festanças. Depois de os matarem saltavam muros com mais de 2 metros de altura carregando nas costas o “petisco” que podia pesar duas ou três vezes mais do que eles.

Os antílopes pastavam, os carnívoros os pegavam e assim se mantinha todo um equilíbrio que era um espetáculo belo e gratuito.

Poucas as armas de fogo, os nativos caçavam só para se alimentarem, quase sempre com as habituais lanças, flechas e armadilhas.

 

Cruzar Angola pelo Caminho de Ferro de Benguela, que saía do Lobito, um porto de marno Atlântico, para o Katanga (hoje parte da República “Democrática” do Congo), no centro de África, era um permanente espetáculo inesquecível. Começava por atravessar uma pequena área de areia ou mata rala, com uma altitude de 50 a 100 metros acima a do nível do mar, para logo em seguida subir para o planalto interior com uma altitude média de 1.300 a 1.700 metros. Aqui as savanas se sucediam, imensas, a perder de vista, com os seus capins verdes ou amarelos conforme a estação do ano. Quantas vezes o trem era obrigado a parar porque uma manada de zebras, ou gungas (elandes), ou búfalos e até elefantes estava atravessando a linha ou pastando ao seu lado. Por vezes não conseguindo parar ou abrandar, atropelava um ou outro animal que era colhido de surpresa à saída de uma curva. Se fosse um animal grande o trem para se vistoriar se a locomotiva havia sofrido algum estrago (?), os passageiros todos também saiam para ver o que tinha acontecido e aproveitava-se a oportunidade para esfolar o bicho, e levarem para casa uma saborosíssima carne fresca!

Aquelas planícies sem fim cheias de animais de tantas espécies, mesmo que se vivam cem anos não se podem esquecer. Era obrigatório, mesmo para ateus, louvar a Deus, pela beleza e grandiosidade que nos encantava.

Pelos anos 40 os transportes rareavam, não só porque o seu desenvolvimento ainda era pode dizer-se precário, como o mundo inteiro estava a sofrer com toda a perturbação da II Guerra Mundial. O acesso ao interior de Angola, exceto no trem, era feito Deus sabe com que dificuldades e canseiras. Estradas pavimentadas não havia mais do que umas escassas dezenas de quilômetros (parte no Norte e parte no Sul). Tudo o resto eram caminhos cujo estado em que se encontravam era designado só por duas referências: “passa” ou “não passa”! Na época das chuvas, sobretudo no Norte, o estado das estradas-caminhos, de terra,  era o segundo: “Não passa”! E os carros, caminhões, ficavam aguardando, muitas vezes enterrados na lama, que um ou dois dias de sol, ou a ajuda de terceiros fossem tirá-los ali.

Entretanto mosquitos e mais toda a sorte de outros de outros miseráveis insetos, à mistura com um calor imenso e abafado, eram a única ocupação dos camionistas ou viajantes naquelas terras.

Os caminhões por falta de combustível (escasso por causa da guerra), nesse tempo quase exclusivamente gasolina, usavam tudo que pudesse queimar para não ficarem sem trabalho, e cada um inventava a mistura que parecia dar melhor resultado, e procurava óleo de dendem, azeite, resquícios de gasolina, etc., e lá seguiam sertão adentro, levar e trazer mercadorias. Não era milagre, era a força interior e o desejo de vencer, de dominar o meio e os elementos numa terra bravia, inexplorada, que cada uma queria considerar como sua, também.

Angola ficou a dever uma dos maiores quinhões da sua ocupação e desenvolvimento do interior ao esforço e coragem desses homens que tudo faziam para não pararem, para quem parecia que não havia obstáculos que não fossem transponíveis. Brancos, negros e mulatos, empenhados na mesma luta e objetivos, lado a lado, criaram uma infraestrutura de capital importância para o progresso e desenvolvimento do país.

Quando lá no interior (a que se chamava genericamente “mato! Saía-se da cidade e ia-se ao mato, a dez ou quinhentos quilómetros de distância! ) o governo abria alguma estrada nova ou procurava conservar as existentes, ou fazia qualquer outra obra longe de centros de abastecimento, contratava os nativos locais o que lhes proporcionava um pouco de dinheiro extra (pouquíssimo, vergonhosamente pouco!) mas tinha que os alimentar, sobretudo quando eram obras grandes ou demoradas e ocupavam muita gente.

Como não havia carne de gado, a solução era contratar um “caçador profissional” que se comprometia a levar com regularidade carne suficiente para dar de comer a toda a gente. Possuidor de uma licença de caça especial, experiente caçador, hábil e consciente, a sua vida era o permanente contato com o mato, a espera, a caça, o transporte dos animais abatidos até aos locais de consumo. E levava antílopes, búfalos e outros conforme a área em que se encontrava.

Naquele tempo muita gente caçava (eu também!) e, se não todos, a maioria tinha uma profunda consciência do que fazia.

Primeiro era obrigatório ter licença de caça passada pelos Serviços de Veterinária, que podia ser anual para animais pequenos, ou especial para os grandes e limitada normalmente a um exemplar, e a uma área especificada, tudo obedecendo às épocas definidas para as diferentes espécies, e rigorosamente proibida no defeso.

 

PS.- Até eu que cacei por todo o lado, um dia decidi que não queria mais matar animais, depois que um amigo e parceiro de caça foi morto num acidente com elefantes.

Nunca mais dei um tiro!

 

Escrito em 1986 e revisto em 09/09/23

 

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