Mais um dos primeiros textos que escrevi, em 1986, falando de
África, evidente, que acabou substituído por um outro para a entrada das
páginas dedicadas a caçadas, no livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”. Por
isso “alguns tiros certeiros” que aqui não vão aparecer.
Este tem mais descrição do país, e por isso achei que alguns
leitores iriam gostar.
Revisto de algumas gralhas e imprecisões, aqui vai ele.
ALGUNS
TIROS CERTEIROS
Há uns
tantos imprecisos anos ainda toda a África negra era um paraíso, com uma
variada e exuberante fauna, desde o pequeno antílope ao elefante, carnívoros,
pássaros, etc. Os maiores animais terrestres ali se encontram, como o grande
elefante africano, o rinoceronte, e até nas aves nenhuma alcança o porte da
avestruz,
A todos
estes animais passou a designar-se genericamente por “caça”, e ainda hoje
guardam esse nome os “parques de caça”, mesmo que não se possa abater animal
algum.
Essa
imensa e maravilhosa fauna chegou quase intacta até aos nossos dias (até meados do século XX) porque em todo
o continente não havia caça predatória, as populações se mantinham em reduzido
número e sempre houve com que se alimentarem.
A
maioria das pastagens hoje utilizadas em todo o mundo para criação de gado tem
as suas origens nos “capins” nativos africanos.
É
imensa a variedade de antílopes e de predadores carnívoros. A natureza é de uma
prodigalidade que encanta. Extensões imensas com manadas de animais que por
vezes atingem largos milhares.
Quem
alguma vez esteve em África jamais pode esquecer o que viu. E quem não viu não
consegue imaginar.
Há por
todo esse mundo lugares lindíssimos como o Rio de Janeiro, Acapulco, os Alpes,
Havaí, as ilhas do Caribe e do Pacífico, a inigualável Amazónia, etc. Obras
feitas pelos homens nos deixam igualmente extasiados, como as Pirâmides do
Egito, as ruinas astecas, Machu Pichu, monumentos na Grécia na Itália e na
China, mas não creio que nada tenha a beleza e a grandiosidade de uma manada de
cinco ou seis mil búfalos em plena liberdade, ou uma centena de elefantes com
os seus enormes chefes e pequenas crias, tomando banho num rio ou num charco,
ou assistir a uma caçada feita por uma família de leões!
Ainda
hoje há possibilidade de ver algo, se não desta grandeza, pelo menos com beleza
semelhante, porque felizmente diversos países mantém um razoável número de
“parques de caça” onde o visitante somente pode caçar com a sua máquina
fotográfica ou de filmar.
As boas
e precisas armas de caça só há poucos anos (talvez
uns oitenta!) invadiram aquele continente.
No
século passado (XIX) e nos primeiro
deste a caça que o homem branco ali fazia era desportiva e para fins
alimentares e não predatória.
Procurava
o melhor e maior troféu o que pressupunha caçar o velho macho solitário, já
isolado pela sua manada que, sem mais servir como reprodutor, aguarda a morte
natural, quase sempre violenta, por predadores mais fortes. Por isto todo o
solitário é um animal desconfiado, e como todo o solitário, mal disposto,
pronto a defender aquele resto de vida.
Os
nativos, que não faziam caça desportiva, matar por matar, nem possuíam as
inconvenientes armas de fogo, mantiveram todo um equilíbrio natural até à
entrado do século XX. Talvez até mês a meados deste século. Caçavam o
suficiente para se alimentarem. Só os elefantes é que sempre sofrerão
perseguição porque o marfim era, e ainda é, considerado moeda valiosa, muito
procurado desde a antiguidade. Mas a precariedade das suas armas, lanças e
setas, manteve o abate destes animais em número reduzido.
Mais
tarde, a expansão do homem em geral, ocupando cada vez mais território com seu
gado e agricultura, necessitando por isso das pastagens que até há pouco eram
privativas dos animais selvagens, e a desenfreada caça com armas até
automáticas, puseram em eminente perigo a extinção desta vida selvagem.
Hoje,
mais ainda com a independência dos territórios africanos e sua necessidade de
desenvolvimento agrícola para alimentaras populações com índices de crescimento
elevados, a divulgação das armas de fogo e e o descontrole que reina em alguns
desses países, com guerrilhas permanentes, esse paraíso natural está ameaçado
de desaparecer rapidamente, e dentre em breve podem sobrar somente uns escassos
parques de caça, e os zoológicos, onde os nossos filhos e mais descendentes mal
conseguirão apreciar os animais.
Faltar-lhes-á
o seu habitat natural, a sua vida em total liberdade, a maravilha do equilíbrio
da natureza que o homem tanto se esforça por exterminar.
Não há
muitos anos, ainda perto das povoações e bem perto significa alguns centos de
metros, se podiam encontrar diversas espécies de antílopes pastando, por vezes
descaradamente a comer dentro das hortas que os agricultores faziam à volta das
suas casas, ou mesmo dentro de quintais. Até os leões entravam nos curraispara
pegar um ou mais bois, geralmente os mais frágeis ou os mais gordos, para suas
festanças. Depois de os matarem saltavam muros com mais de 2 metros de altura
carregando nas costas o “petisco” que podia pesar duas ou três vezes mais do
que eles.
Os
antílopes pastavam, os carnívoros os pegavam e assim se mantinha todo um
equilíbrio que era um espetáculo belo e gratuito.
Poucas
as armas de fogo, os nativos caçavam só para se alimentarem, quase sempre com
as habituais lanças, flechas e armadilhas.
Cruzar
Angola pelo Caminho de Ferro de Benguela, que saía do Lobito, um porto de marno
Atlântico, para o Katanga (hoje parte da
República “Democrática” do Congo), no centro de África, era um permanente
espetáculo inesquecível. Começava por atravessar uma pequena área de areia ou
mata rala, com uma altitude de 50 a 100 metros acima a do nível do mar, para
logo em seguida subir para o planalto interior com uma altitude média de 1.300
a 1.700 metros. Aqui as savanas se sucediam, imensas, a perder de vista, com os
seus capins verdes ou amarelos conforme a estação do ano. Quantas vezes o trem
era obrigado a parar porque uma manada de zebras, ou gungas (elandes), ou búfalos e até elefantes
estava atravessando a linha ou pastando ao seu lado. Por vezes não conseguindo
parar ou abrandar, atropelava um ou outro animal que era colhido de surpresa à
saída de uma curva. Se fosse um animal grande o trem para se vistoriar se a
locomotiva havia sofrido algum estrago (?), os passageiros todos também saiam
para ver o que tinha acontecido e aproveitava-se a oportunidade para esfolar o
bicho, e levarem para casa uma saborosíssima carne fresca!
Aquelas
planícies sem fim cheias de animais de tantas espécies, mesmo que se vivam cem
anos não se podem esquecer. Era obrigatório, mesmo para ateus, louvar a Deus,
pela beleza e grandiosidade que nos encantava.
Pelos
anos 40 os transportes rareavam, não só porque o seu desenvolvimento ainda era
pode dizer-se precário, como o mundo inteiro estava a sofrer com toda a
perturbação da II Guerra Mundial. O acesso ao interior de Angola, exceto no
trem, era feito Deus sabe com que dificuldades e canseiras. Estradas
pavimentadas não havia mais do que umas escassas dezenas de quilômetros (parte no Norte e parte no Sul). Tudo o
resto eram caminhos cujo estado em que se encontravam era designado só por duas
referências: “passa” ou “não passa”! Na época das chuvas, sobretudo no Norte, o
estado das estradas-caminhos, de terra,
era o segundo: “Não passa”! E os carros, caminhões, ficavam aguardando,
muitas vezes enterrados na lama, que um ou dois dias de sol, ou a ajuda de
terceiros fossem tirá-los ali.
Entretanto
mosquitos e mais toda a sorte de outros de outros miseráveis insetos, à mistura
com um calor imenso e abafado, eram a única ocupação dos camionistas ou
viajantes naquelas terras.
Os
caminhões por falta de combustível (escasso
por causa da guerra), nesse tempo quase exclusivamente gasolina, usavam
tudo que pudesse queimar para não ficarem sem trabalho, e cada um inventava a
mistura que parecia dar melhor resultado, e procurava óleo de dendem, azeite,
resquícios de gasolina, etc., e lá seguiam sertão adentro, levar e trazer
mercadorias. Não era milagre, era a força interior e o desejo de vencer, de
dominar o meio e os elementos numa terra bravia, inexplorada, que cada uma
queria considerar como sua, também.
Angola
ficou a dever uma dos maiores quinhões da sua ocupação e desenvolvimento do
interior ao esforço e coragem desses homens que tudo faziam para não pararem,
para quem parecia que não havia obstáculos que não fossem transponíveis.
Brancos, negros e mulatos, empenhados na mesma luta e objetivos, lado a lado,
criaram uma infraestrutura de capital importância para o progresso e
desenvolvimento do país.
Quando
lá no interior (a que se chamava
genericamente “mato! Saía-se da cidade e ia-se ao mato, a dez ou quinhentos
quilómetros de distância! ) o
governo abria alguma estrada nova ou procurava conservar as existentes, ou
fazia qualquer outra obra longe de centros de abastecimento, contratava os
nativos locais o que lhes proporcionava um pouco de dinheiro extra (pouquíssimo, vergonhosamente pouco!)
mas tinha que os alimentar, sobretudo quando eram obras grandes ou demoradas e
ocupavam muita gente.
Como não
havia carne de gado, a solução era contratar um “caçador profissional” que se
comprometia a levar com regularidade carne suficiente para dar de comer a toda
a gente. Possuidor de uma licença de caça especial, experiente caçador, hábil e
consciente, a sua vida era o permanente contato com o mato, a espera, a caça, o
transporte dos animais abatidos até aos locais de consumo. E levava antílopes,
búfalos e outros conforme a área em que se encontrava.
Naquele
tempo muita gente caçava (eu também!)
e, se não todos, a maioria tinha uma profunda consciência do que fazia.
Primeiro
era obrigatório ter licença de caça passada pelos Serviços de Veterinária, que
podia ser anual para animais pequenos, ou especial para os grandes e limitada
normalmente a um exemplar, e a uma área especificada, tudo obedecendo às épocas
definidas para as diferentes espécies, e rigorosamente proibida no defeso.
PS.- Até
eu que cacei por todo o lado, um dia decidi que não queria mais matar animais,
depois que um amigo e parceiro de caça foi morto num acidente com elefantes.
Nunca
mais dei um tiro!
Escrito
em 1986 e revisto em 09/09/23
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