segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

 

Recordando Ernesto Lara Filho

E mais coisas sobre Angola

 

Recordar Ernesto Lara é assunto que só quem peregrinou por Angola deve saber de quem se trata e apreciar.
Uma figura de legenda, cronista e poeta, Ernesto Lara Filho, um dos inventores da angolanidade literária, boémio, generoso, meu amigo e colega regente agrícola, louco por liberdade, sobre quem já escrevi no “Os Meus Amigos” – https://fgamorim.blogspot.com/search?q=ernesto+Lara.
Agora, ao arrumar, aliás tentar dar um pouco de arrumação aos milhares de papeis que fui juntando, “descobri” mais de 30 revistas de Angola, quase todas a “TRÓPICO”, de 1963 a 1965, que me têm deliciado a rever coisas daquele tempo, onde, além de artigos do Ernesto, até aparecem reportagens com a minha figura!!!

Mas alguns textos do Ernesto Lara quero compartilhar, sobretudo este maravilhoso poema que escreveu a seu pai:

" Pergunta " (para meu pai)

Tu,

que lá em Benguela tinhas saudades do Minho

expressas em todos os teus olhares saudosos,

em todas as conversas.

Tu,

que sempre recordavas lá tão longe a tua terra distante

o teu Portugal de menino.

Porquê, meu pai,

me negas o direito simples de amar a minha terra,

a minha Angola?

Por que me negas todos os dias a todas as horas,

o direito sagrado de ter saudades da minha terra,

de olhar com os olhos embaciados, mas contentes,

de escrever longas cartas inconsequentes,

de ter longas conversas melancólicas

sobre a minha terra desflorada,

a minha Angola adiada?

Serei poeta também adiado como a minha terra.

Eu negarei Pai e Mãe pela minha terra.

Três vezes como Pedro o apóstolo negou Cristo

Três vezes antes de o galo cantar no raiar da madrugada.

 

Os textos da revista são sobre assuntos diversos, mas onde se encontra a humanidade e simplicidade de um amigo que todos estimavam. Muito. Temas simples, como o autor, onde ele se confessa boémio incurável!

Aqui vão eles.

Foto da revista de 1964

 CARTA  A  UMA  SOBRINHA

Acabo de receber sua cartinha que tem a beleza das coisas puras. Sua cartinha me comoveu, porque é sincera e revela o desejo de colaborar. Vou dirigir à secção feminina a receita com que se apresenta a dar-nos ajuda e vou desejar-lhe as maiores felicidades e que sempre apareça entre nós. Sabes? Teu irmão é nosso tipógrafo e foi um dos que mais me surpreendeu quando entrei naquela Tipografia pela primeira vez. Desatou a citar crónicas minhas do tempo do Caprandanda de cor e salteado. Eu e o Mário mandámos-lhe ver a exposição de Teresa Gama. A Teresa Neves e Sousa dos meus tempos de menino. Foi e viu e só gostou de três quadros. Quero dizer, só compreendeu três quadros. Foi isso que nos disse e a gente mandou insistir. Mas como eu ia dizendo, já conhecia seu irmão que no dia a dia dos tipos, no dia a dia do carvão que envenena os tipógrafos, vai fazendo singrar a revista. Assim gostei que você tivesse aparecido ao nosso lado pretendendo colaborar. Você não será daquela família muito antiga dos Pintos de Caxito?

Gostava que todas as meninas de «18 anos de idade, cabelos e olhos castanhos e 1m,64 de altura» como você diz tão singelamente na sua carta, colaborassem com coisas positivas como esta revista.

Atravessámos grave crise, minha querida Amiga, mas está vencida e por conseguinte muito nos comoveu essa sua frase com que termina a cartinha que entregou há dias na Tipografia. Frase essa que transcrevo integralmente: «Gosto muito do vosso jornal e nosso também».

Quanto ao tratamento de Tio muito obrigado, pequena, eu não fico zangado, fui até eu que criei. Este velho morcegão solteiro, já a nada mais aspira senão isso, na sua pobre e modesta vida de homem de jornais. A ser tratado por tio por todas as meninas morenas e bonitas de Luanda, um daqueles tios boémios que todos nós temos ou já tivemos na vida, que pastoreia as noites de Luanda e semeia alegrias e sorrisos, nos lábios e nos corações de tanta gente. Sem que nada pretenda receber em troca.

A não ser o carinho dessas sobrinhas todas, loiras, morenas, altas, baixas, lindas, feias que palmilham as ruas desta minha tão linda cidade.

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CAMIONISTAS DE ANGOLA

 Naquele tempo costumávamos sair para Sá da Bandeira no dorso, na carga de uma camionete. Ao volante, sei lá quem! - talvez o Raul Costa, o Magalhães, o Zé Pequeno, Camões, um desses quaisquer heróis esquecidos das estradas de Angola. Íamos para um dos dois únicos liceus de Angola fazer o nosso primeiro anito. Corria o ano de 1940.

Não vale a pena falar da estrada por Catengue quando o Uche dizia não a todo o camionista que queria avançar para a guerra. Guerra de botões, essa guerra dos camionistas de Angola. Lá em Catengue o velho Rodrigues «mata-leões» recebia sempre toda a gente da mesma maneira aquele seu vozeirão ensurdecedor. Que contrastava com as falhas da voz de sua pobre e já falecida esposa - aquela tão simpática mulher que recebeu em sua casa, alimentou e acarinhou todas as duas gerações do meu tempo, de camionistas de Angola.

As realidades no Sul daquele tempo, eram a serra da Cacula e as lamas de Quipungo - não sabemos se a estrada hoje passa por lá! - e víamos tudo quanto era herói da estrada morrer um pouco por esses caminhos. Vi perecerem alguns dos meus melhores amigos nessas estradas de Angola. E se já alguma vez esta criança que trago dentro de mim teve um herói, esse herói era mulato e chamava-se Raul. O Raul, condutor de «Krupp» e mais tarde de uma «GMC» na Fazenda Aurora dos nossos tempos de menino. Hoje quem traz as viandas da Fazenda Aurora para Luanda é aquele rapazinho pequenino chamado Queiroz. E a vida continua.

Umas gerações passam e outras as substituem. O Castanholas e o Carreira aí estão para afirmar que a vida não pára. O Maciel com os seus 4.000 quilómetros por semana entre São Salvador, Luanda e Nova Lisboa, esse homem de vozeirão tremendo e com um coração de menino, esse Hércules das estradas de Angola, aí está, firme, ao volante da sua «Scania», navegando por todos os caminhos, velho marinheiro das calemas de Angola. Varando quilómetros e quilómetros de poeira e de lama, bebendo em todos os bares do caminho, transportando aqui um pobre homem desempregado que precisa de boleia, levando acolá uma senhora grávida para uma Maternidade ou Hospital mais próximo, fazendo Humanidade por essas caminhos, esse Homem e os Outros camionistas de Angola significam para quem quiser perceber que com Ouro deste, Ouro Puro de Lei, poderemos de facto repetir Índias e Brasis de Universalidade.

Não foi impunemente que escrevemos um dia sobre Paulo Rosa. Tinha caído na estrada varado pelas balas que no Norte não perguntam quem passa. Paulo Rosa caiu com uma dignidade extraordinária e nunca perdoarei a suaImageImageImageImagemorte. Nunca o vi recusar uma boleia, uma passagem, um carinho, a um Homem Negro, ou Branco, ou Mulato, do Norte. Como não posso perdoar a sua morte, também não perdoarei a do regente agrícola Albano Gonçalves da Cunha. No momento em que abandonando a sua família, foi avisar as outras famílias do que se passava. Tombando na hora da verdade, deram-me uma certeza. Certeza a que já não Imagepoderemos fugir. É que nascendo ou não em Angola, estamos aqui para ficar. Seja no volante de uma «Scania», seja Imagenas teclas desta «Antares-Micron», venha a ser um dia no Imagevolante do luxuoso «Alfa-Romeo» que usa um antigo colega de Imprensa que estimo e admiro, apesar de tudo. Image

Ouvia a voz monótona do velho Silva contar como tinha acontecido o desastre perto da Munenga. Depois do João Imagedo Muquetixe. Ouvia-o e na sua voz sentia todos os camionistas sacrificados que enchem as estradas de Angola e com o seu terrível esforço, com uma indomável forca de vontade, não deixam que o sangue pare, não deixam que o sangue fique por circular nestas pobres veias que são as nossas estradas. Nada merecem de mim a não ser toda a nossa sincera admiração, nosso profundo carinho e Amor ao Próximo. Porque se há dias vi um polícia multar um desses homens por excesso de velocidade - não defendo o princípio! - ele vinha do mato com 6.000 quilómetros percorridos, seis mil deles, de sangue, suor e lágrimas, Tinha estado debaixo de fogo para os lados do Negage. E foi à entrada de Luanda que vi lágrimas nos olhos desse homem que pedia enraivecido que o multassem sim, por excesso de velocidade lá no Norte - onde sem uma arma que não a sua pobre camionete, ele tivera que acelerar até à loucura.

É pois para vós que hoje escreve um pobre jornalista vagamundo, meus amigos, camionistas de Angola, Para ti, a quem encontrei um dia fazendo a barba no espelho retrovisor, na baixa da Cela. Para ti, que tombaste naquela ribanceira da estrada de Catete, com o tio Ernesto ao lado e debaixo de chuva quando o terreno cedeu. Para si, velho Ferreira - carta 29 619 de Lisboa - que andaste dez anos na linha do Norte de Angola. Para ti, Castanholas. Para ti, meu bigodaças, meu caro Carreira. Para ti Morais da Cela e Lima dos Bois. Enfim, para ti Maciel, para que sempre contes com o nosso pequeno estímulo, estas linhas de um modesto artigo, que sendo a vocês, é para todos os camionistas de Angola.

Vocês, os que levam o «TRÓPICO» aos quatro pontos cardeais da Província.

Trópico, nr.35, 12/03/65

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O  PEDRO

 

Disseram-me um dia que esse Homem não viajava de terra-em-terra. Que viajava de bar-em-bar. Era verdade, pois foi num bar que eu o conheci.

Nada nele me dizia que não era um homem como os outros. Apenas mais triste. E mais desiludido, Apenas mais castigado pelos ventos desencontrados de todos os rumos.

Lembro-me ainda do seu nome. Que nunca se diluirá na tristeza do esquecimento. Chama-se Pedro. Era - e é - um Irmão de todos os que precisassem de um verdadeiro Irmão. Ribatejano. Bebendo demasiadamente. Há algum ribatejano que não beba e não goste de cavalos?

Bebia e gostava de toiros. Amigo das crianças de todo o Mundo, era um verdadeiro Homem.

Um dia - já lá vai um ano - naquela sua voz monótona, começou a falar em Eva Braun e em Hitler. Dizia ele por entre os cacussos grelhados da Casa Verde dos Muceques que Eva Braun se colocava na frente de Hitler, quando este discursava impedindo os atiradores longínquos, de fazerem fogo pela caçadeira de binóculo. Atiradeira, fica melhor. Nessa noite assassinaram o Presidente Kennedy. Lee Oswald. Nunca mais me esqueci dessa noite nem dos companheiros que comigo estavam. Onde andarão eles?

Pedro tinha o raro condão de prever os acontecimentos com muitas horas de antecedência. Os acontecimentos mais trágicos da história do nosso tempo.

Não dizia. «Vamos beber um copo!» Adoptara a frase do João Teles que deve estar a ler isto devidamente comovido enquanto fabrica os já célebres licores Kumbira E a frase do João tem a poesia das frases com sentido. Era: «Ernesto, vamos molhar o bico.» ou «Ernesto, vamos tomar uma gota...»

Não sei onde andará o Pedrinho, o tio Pedro das nossas histórias de boémios. Disseram-me que andava em digressão por Angola. Da «Petisqueira» tinha seguido para o «Bar do Freitas» na Cela. Do Bar do Freitas onde passou o Natal e o Ano Novo, foi para o Galgo Bar em Nova-Lisboa. Creio que a estas horas deve andar pelo Sul de Angola. Se não atravessou o Cunene e passou para Vindoek.

Boa-sorte, Pedro e muitas felicidades do   E. L. F.

Trópico, nr. 31, 12/2/65

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Tem mais crónicas interessantes, mas ficam para outra vez.
Só vou acrescentar alguns dados daquela terra que, mesmo dos “antigos” poucos conhecem e os “de hoje” não devem ter a menor ideia.
Em 1964 Angola ainda sofria com o controle do desenvolvimento industrial e comercial por parte da Metrópole.
Em 1957 um grupo de sócios pediu um alvará para uma fábrica de massas alimentícias. Só em 1964 foi autorizada!!! E a partir dessa data Angola passou a produzir as suas próprias massas! E boas.
Também em 1964 inaugurou uma fábrica de “motorizadas”. A FABRIMOR. Começou com umas motos pequenas de 50 cc que logo tiveram uma enorme repercussão não só em Angola, como até para alguns países vizinhos.
Em Benguela surgia também em 1964 uma fábrica de Acumuladores Elétricos.
Em 1965 a Casa Americana começou a montar tratores, Catterpilar chegando a fabricar algumas partes da sua mecânica.!
Quem sabia disso? Com a independência, TUDO isto e muito mais... desapareceu. Só em 2015 voltou a ter produção própria de massas! 40 anos depois!
Pobre Angola. País tão rico.

NOTA: Quem estiver interessado nestas revistas é só avisar-me e vir buscá-las.

Se ninguém quiser... o destino delas será o lixo.


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