Recordando Ernesto Lara Filho
E mais coisas sobre Angola
Uma figura de legenda, cronista e poeta, Ernesto Lara Filho, um dos inventores da angolanidade literária, boémio, generoso, meu amigo e colega regente agrícola, louco por liberdade, sobre quem já escrevi no “Os Meus Amigos” – https://fgamorim.blogspot.com/search?q=ernesto+Lara.
Agora, ao arrumar, aliás tentar dar um pouco de arrumação aos milhares de papeis que fui juntando, “descobri” mais de 30 revistas de Angola, quase todas a “TRÓPICO”, de 1963 a 1965, que me têm deliciado a rever coisas daquele tempo, onde, além de artigos do Ernesto, até aparecem reportagens com a minha figura!!!
Mas alguns textos do Ernesto Lara quero compartilhar, sobretudo este maravilhoso poema que escreveu a seu pai:
"
Pergunta " (para meu pai)
Tu,
que lá em
Benguela tinhas saudades do Minho
expressas em todos os teus olhares saudosos,
em todas as
conversas.
Tu,
que sempre
recordavas lá tão longe a tua terra distante
o teu
Portugal de menino.
Porquê, meu
pai,
me negas o
direito simples de amar a minha terra,
a minha
Angola?
Por que me negas
todos os dias a todas as horas,
o direito
sagrado de ter saudades da minha terra,
de olhar com
os olhos embaciados, mas contentes,
de escrever
longas cartas inconsequentes,
de ter
longas conversas melancólicas
sobre a
minha terra desflorada,
a minha Angola
adiada?
Serei poeta
também adiado como a minha terra.
Eu negarei
Pai e Mãe pela minha terra.
Três vezes
como Pedro o apóstolo negou Cristo
Três vezes
antes de o galo cantar no raiar da madrugada.
Os textos da revista são sobre assuntos diversos, mas onde se
encontra a humanidade e simplicidade de um amigo que todos estimavam. Muito.
Temas simples, como o autor, onde ele se confessa boémio incurável!
Aqui
vão eles.
Acabo de
receber sua cartinha que tem a beleza das coisas puras. Sua cartinha me
comoveu, porque é sincera e revela o desejo de colaborar. Vou dirigir à secção
feminina a receita com que se apresenta a dar-nos ajuda e vou desejar-lhe as
maiores felicidades e que sempre apareça entre nós. Sabes? Teu irmão é nosso
tipógrafo e foi um dos que mais me surpreendeu quando entrei naquela Tipografia
pela primeira vez. Desatou a citar crónicas minhas do tempo do Caprandanda de
cor e salteado. Eu e o Mário mandámos-lhe ver a exposição de Teresa Gama. A
Teresa Neves e Sousa dos meus tempos de menino. Foi e viu e só gostou de três
quadros. Quero dizer, só compreendeu três quadros. Foi isso que nos disse e a
gente mandou insistir. Mas como eu ia dizendo, já conhecia seu irmão que no dia
a dia dos tipos, no dia a dia do carvão que envenena os tipógrafos, vai fazendo
singrar a revista. Assim gostei que você tivesse aparecido ao nosso lado
pretendendo colaborar. Você não será daquela família muito antiga dos Pintos de
Caxito?
Gostava
que todas as meninas de «18 anos de idade, cabelos e olhos castanhos e 1m,64 de
altura» como você diz tão singelamente na sua carta, colaborassem com coisas
positivas como esta revista.
Atravessámos
grave crise, minha querida Amiga, mas está vencida e por conseguinte muito nos
comoveu essa sua frase com que termina a cartinha que entregou há dias na
Tipografia. Frase essa que transcrevo integralmente: «Gosto muito do vosso
jornal e nosso também».
Quanto
ao tratamento de Tio muito obrigado, pequena, eu não fico zangado, fui até eu
que criei. Este velho morcegão solteiro, já a nada mais aspira senão isso, na
sua pobre e modesta vida de homem de jornais. A ser tratado por tio por todas
as meninas morenas e bonitas de Luanda, um daqueles tios boémios que todos nós
temos ou já tivemos na vida, que pastoreia as noites de Luanda e semeia
alegrias e sorrisos, nos lábios e nos corações de tanta gente. Sem que nada
pretenda receber em troca.
A não
ser o carinho dessas sobrinhas todas, loiras, morenas, altas, baixas, lindas,
feias que palmilham as ruas desta minha tão linda cidade.
* * * * *
CAMIONISTAS
DE ANGOLA
Não
vale a pena falar da estrada por Catengue quando o Uche dizia não a todo o
camionista que queria avançar para a guerra. Guerra de botões, essa guerra dos
camionistas de Angola. Lá em Catengue o velho Rodrigues «mata-leões» recebia
sempre toda a gente da mesma maneira aquele seu vozeirão ensurdecedor. Que
contrastava com as falhas da voz de sua pobre e já falecida esposa - aquela tão
simpática mulher que recebeu em sua casa, alimentou e acarinhou todas as duas
gerações do meu tempo, de camionistas de Angola.
As
realidades no Sul daquele tempo, eram a serra da Cacula e as lamas de Quipungo
- não sabemos se a estrada hoje passa por lá! - e víamos tudo quanto era herói
da estrada morrer um pouco por esses caminhos. Vi perecerem alguns dos meus
melhores amigos nessas estradas de Angola. E se já alguma vez esta criança que
trago dentro de mim teve um herói, esse herói era mulato e chamava-se Raul. O
Raul, condutor de «Krupp» e mais tarde de uma «GMC» na Fazenda Aurora dos
nossos tempos de menino. Hoje quem traz as viandas da Fazenda Aurora para
Luanda é aquele rapazinho pequenino chamado Queiroz. E a vida continua.
Umas
gerações passam e outras as substituem. O Castanholas e o Carreira aí estão
para afirmar que a vida não pára. O Maciel com os seus 4.000 quilómetros por
semana entre São Salvador, Luanda e Nova Lisboa, esse homem de vozeirão
tremendo e com um coração de menino, esse Hércules das estradas de Angola, aí
está, firme, ao volante da sua «Scania», navegando por todos os caminhos, velho
marinheiro das calemas de Angola. Varando quilómetros e quilómetros de poeira e
de lama, bebendo em todos os bares do caminho, transportando aqui um pobre
homem desempregado que precisa de boleia, levando acolá uma senhora grávida
para uma Maternidade ou Hospital mais próximo, fazendo Humanidade por essas
caminhos, esse Homem e os Outros camionistas de Angola significam para quem
quiser perceber que com Ouro deste, Ouro Puro de Lei, poderemos de facto
repetir Índias e Brasis de Universalidade.
Não
foi impunemente que escrevemos um dia sobre Paulo Rosa. Tinha caído na estrada
varado pelas balas que no Norte não perguntam quem passa. Paulo Rosa caiu com
uma dignidade extraordinária e nunca perdoarei a suamorte. Nunca o vi
recusar uma boleia, uma passagem, um carinho, a um Homem Negro, ou Branco, ou
Mulato, do Norte. Como não posso perdoar a sua morte, também não perdoarei a do
regente agrícola Albano Gonçalves da Cunha. No momento em que abandonando a sua
família, foi avisar as outras famílias do que se passava. Tombando na hora da
verdade, deram-me uma certeza. Certeza a que já não poderemos fugir. É que
nascendo ou não em Angola, estamos aqui para ficar. Seja no volante de uma
«Scania», seja nas teclas desta
«Antares-Micron», venha a ser um dia no volante do luxuoso
«Alfa-Romeo» que usa um antigo colega de Imprensa que estimo e admiro, apesar
de tudo.
Ouvia
a voz monótona do velho Silva contar como tinha acontecido o desastre perto da
Munenga. Depois do João do Muquetixe. Ouvia-o e na
sua voz sentia todos os camionistas sacrificados que enchem as estradas de
Angola e com o seu terrível esforço, com uma indomável forca de vontade, não
deixam que o sangue pare, não deixam que o sangue fique por circular nestas
pobres veias que são as nossas estradas. Nada merecem de mim a não ser toda a
nossa sincera admiração, nosso profundo carinho e Amor ao Próximo. Porque se há
dias vi um polícia multar um desses homens por excesso de velocidade - não
defendo o princípio! - ele vinha do mato com 6.000 quilómetros percorridos,
seis mil deles, de sangue, suor e lágrimas, Tinha estado debaixo de fogo para
os lados do Negage. E foi à entrada de Luanda que vi lágrimas nos olhos desse
homem que pedia enraivecido que o multassem sim, por excesso de velocidade lá
no Norte - onde sem uma arma que não a sua pobre camionete, ele tivera que
acelerar até à loucura.
É
pois para vós que hoje escreve um pobre jornalista vagamundo, meus amigos,
camionistas de Angola, Para ti, a quem encontrei um dia fazendo a barba no
espelho retrovisor, na baixa da Cela. Para ti, que tombaste naquela ribanceira
da estrada de Catete, com o tio Ernesto ao lado e debaixo de chuva quando o
terreno cedeu. Para si, velho Ferreira - carta 29 619 de Lisboa - que andaste
dez anos na linha do Norte de Angola. Para ti, Castanholas. Para ti, meu
bigodaças, meu caro Carreira. Para ti Morais da Cela e Lima dos Bois. Enfim,
para ti Maciel, para que sempre contes com o nosso pequeno estímulo, estas
linhas de um modesto artigo, que sendo a vocês, é para todos os camionistas de
Angola.
Vocês,
os que levam o «TRÓPICO» aos quatro pontos cardeais da Província.
Trópico, nr.35, 12/03/65
* * * * *
O PEDRO
Disseram-me um dia que esse Homem não
viajava de terra-em-terra. Que viajava de bar-em-bar. Era verdade, pois foi num
bar que eu o conheci.
Nada nele me dizia que não era um homem
como os outros. Apenas mais triste. E mais desiludido, Apenas mais castigado
pelos ventos desencontrados de todos os rumos.
Lembro-me ainda do seu nome. Que nunca se
diluirá na tristeza do esquecimento. Chama-se Pedro. Era - e é - um Irmão de
todos os que precisassem de um verdadeiro Irmão. Ribatejano. Bebendo
demasiadamente. Há algum ribatejano que não beba e não goste de cavalos?
Bebia e gostava de toiros. Amigo das
crianças de todo o Mundo, era um verdadeiro Homem.
Um dia - já lá vai um ano - naquela sua
voz monótona, começou a falar em Eva Braun e em Hitler. Dizia ele por entre os
cacussos grelhados da Casa Verde dos Muceques que Eva Braun se colocava na
frente de Hitler, quando este discursava impedindo os atiradores longínquos, de
fazerem fogo pela caçadeira de binóculo. Atiradeira, fica melhor. Nessa noite
assassinaram o Presidente Kennedy. Lee Oswald. Nunca mais me esqueci dessa
noite nem dos companheiros que comigo estavam. Onde andarão eles?
Pedro tinha o raro condão de prever os
acontecimentos com muitas horas de antecedência. Os acontecimentos mais
trágicos da história do nosso tempo.
Não dizia. «Vamos beber um copo!» Adoptara
a frase do João Teles que deve estar a ler isto devidamente comovido enquanto
fabrica os já célebres licores Kumbira E a frase do João tem a poesia das
frases com sentido. Era: «Ernesto, vamos molhar o bico.» ou «Ernesto, vamos
tomar uma gota...»
Não sei onde andará o Pedrinho, o tio
Pedro das nossas histórias de boémios. Disseram-me que andava em digressão por
Angola. Da «Petisqueira» tinha seguido para o «Bar do Freitas» na Cela. Do Bar
do Freitas onde passou o Natal e o Ano Novo, foi para o Galgo Bar em
Nova-Lisboa. Creio que a estas horas deve andar pelo Sul de Angola. Se não atravessou
o Cunene e passou para Vindoek.
Boa-sorte, Pedro e muitas felicidades do E. L. F.
Trópico, nr. 31, 12/2/65
* * * * *
Só vou acrescentar alguns dados daquela terra que, mesmo dos “antigos” poucos conhecem e os “de hoje” não devem ter a menor ideia.
Em 1964 Angola ainda sofria com o controle do desenvolvimento industrial e comercial por parte da Metrópole.
Em 1957 um grupo de sócios pediu um alvará para uma fábrica de massas alimentícias. Só em 1964 foi autorizada!!! E a partir dessa data Angola passou a produzir as suas próprias massas! E boas.
Também em 1964 inaugurou uma fábrica de “motorizadas”. A FABRIMOR. Começou com umas motos pequenas de 50 cc que logo tiveram uma enorme repercussão não só em Angola, como até para alguns países vizinhos.
Em Benguela surgia também em 1964 uma fábrica de Acumuladores Elétricos.
Em 1965 a Casa Americana começou a montar tratores, Catterpilar chegando a fabricar algumas partes da sua mecânica.!
Quem sabia disso? Com a independência, TUDO isto e muito mais... desapareceu. Só em 2015 voltou a ter produção própria de massas! 40 anos depois!
Pobre Angola. País tão rico.
NOTA: Quem estiver interessado nestas revistas é só avisar-me e vir buscá-las.
Se ninguém quiser... o destino delas será o lixo.
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