sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

 

O Cabo das Tormentas

Outro irmão que descansou


Há anos que a vida me vem mostrando que raros são os que dobram os 90, com saúde. Raríssimos. Daí eu chamar a essa idade “O Cabo das Tormentas”.
Em Agosto de 1957 entravam para a CUF Portuense, a companhia de cervejas que fazia a ótima Super Boch, na velha fábrica da rua Julio Diniz, que já lá não está, três novos técnicos contratados pela Cuca de Angola, para estagiarem, e depois seguirem para Luanda.
Dois demoraram pouco, seguiram para Louvain, estudar cerveja, e ficou só este que vos conta a história.
Um deles, que conheci quando entrei para o Liceu, em Lisboa, estava ele no 5° ano, e que veio a ser um dos meus mais estimados amigos, e o outro, também agrónomo, acabadinho de casar, que se alojou numa espécie de lar de freiras (tinha um cunhado jesuíta!), e, do mesmo modo, a vida nos juntou como irmãos.
No fábrica, além de acompanharmos todo o processo de fabrico e controle de laboratório, o diretor técnico achou que devíamos também ler os dois volumes do professor de Louvain, De Clerc, sobretudo “tudo” que dizia respeito à cerveja. Almoçávamos sempre muito bem, e a seguir ao almoço íamos para uma pequena sala, tranquila, pouca luz, belas e cómodas poltronas, ler, em francês, o famoso tratado cervejeiro. Não tardava a que um se reclinasse, adormecesse e roncasse, o outro mantinha uma postura erecta mesmo a dormir e eu cabeceava de tal forma que tinha que sair dali com dores no pescoço! Pode-se imaginar o que aprendemos com a ciência do prof. de Clerc!!! Nada, de nadinha. Um chato!
O primeiro deste trio, o Alfredo, foi-se embora há muitos anos, 1987, deixou mulher e seis filhos, ela como nossa irmã e meus sobrinhos queridos, e um grande vazio, que uma amizade assim nunca preenche.
O segundo, chegou a Luanda, com a mulher, e como é de calcular, não conhecia quase ninguém; fomos nós,  minha mulher e eu, que os orientámos na chegada, e como trabalhávamos na mesma fábrica o contato era diário.
A amizade aprofundou-se. Nasceu-lhes a primeira filha e nós apadrinhámos. Veio a segunda, idem. Só não fomos padrinhos do terceiro porque estávamos fora de Angola. Morámos uns tempos a meia centena de metros entre as duas casas, e logo os nossos filhos e as meninas foram crescendo como irmãos.
Um dia resolvemos ser criadores de gado! Pedimos uma concessão de terra ao governo, talvez uma ou duas centenas de hactares mas já não sei quanto, fizemos sociedade no cartório

 para o que o “anto”, António, vendeu o velho Fusca que tinha comprado na Alemanha e com esse dinheiro comprou umas quantas vacas no Sul de Angola que de lá foram levadas por caminhão. Ao “Xic” – Chico – competiu-lhe comprar o touro que fizesse o conveniente serviço para o rebanho crescer. (Nunca cresceu porque, dizia o homem que, teoricamente, tomava conta do gado, que as cobras iam comendo os bezerros, outros animais as vacas e assim o grande negócio acabou em “0”, zero! Os animais que comeram o gado... foi o pessoal dali, mas... era assim!).
O negócio acabou mas a amizade sempre se ia fortalecendo e crescendo.
Mais tarde, 1969, já eu não estava na Cuca, e ele lá e subindo, lembrei-me de montar uma empresa para importação de material de offset, fotocópia, microscopia, a Repro. É evidente que o compadre e sócio da extinta agropecuária tinha que participar; agregou-se um outro sócio, outro irmão, o Bartolomeu, que já nos deixou há uma dúzia de anos. Começou e singrou muito bem até TUDO ser engolido pelo 25/4. Desta sociedade nasceu ainda a mais chique loja de modas de Luanda, a Chiméne, depois a Zimbo, fábrica de calças jeans, e tudo se desfez, como um sonho que estava a ser bonito!
António, seu ar arcebispal, como eu o tratava, volta e meia convocava os sócios – todos amigos de primeira linha – para uma “assembleia geral”, com a finalidade de tratarmos de... qualquer coisa. Lá íamos ao fim da tarde a sua casa, Bartolomeu e eu. Não lembro já se alguma vez chegámos a discutir qualquer assunto da sociedade, mas sei que ficávamos até tarde bebendo uns copos e comendo uns bolinhos que a comadre fazia. O Bartolomeu passou a tratá-lo por “senhor assembleias”!
E histórias de caça! E de filosofias teológicas! Que magníficos tempos! Éramos jovens de 40 e poucos anos, cheios de entusiasmo!
Um dia tudo acabou em Angola.
Vieram os três sócios para o Brasil. Como irmãos, e os nossos filhos também como irmãos uns dos outros.
A vida não correu fácil para todos. Dois regressaram mais tarde a Portugal onde lá sempre tínhamos a oportunidade de os abraçar, jogar conversa fora e, se possível cimentar sempre mais uma grande amizade que vinha de longe.
                                

Durante oito anos colegas na Cuca, desde os primeiros tempos logo compadres e comadres, depois sócios, nunca entre nós houve qualquer desentendimento. Mas ríamos e nos descontraíamos.
Não havia festinha, fadistice ou reunião em nossa casa que os compadres não estivessem presentes.
O Atlântico um dia nos separou. Só fisicamente, porque os nossos corações sempre se mantiveram abraçados.
Destes quatro amigos a que aqui me refiro... resta um! Bem sei que era o mais novo de todos.
Mas como sinto a falta deles.
Ontem o António Nuno Dias Melícias, depois de passar o último ano muito desgastado, adormeceu em Paz.

O meu mundo, egoísta, vai-se fechando. Sobram poucos. Agora pouco mais me resta do que aguardar a minha vez.

 

Hoje telefonei para dois, ambos nos 92. Estão ótimos. E até um primo já nos 97. Que bom.

 

29/01/2021

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