segunda-feira, 5 de outubro de 2020

 

Saudade das Gentes de África - 2

 
Falar sobre as Gentes de África, não é só sobre os amigos que lá conheci, e muitos, muitos foram, raros os que ainda são, estão.
Mas recordar, ainda que por breves momentos todos esses e mais aqueles com quem contatámos, nem que fosse uma só vez, e olhar ao que se passa hoje pelo mundo, perto ou longe de nós, logo nos vem à cabeça aquela música do angolano Bonga: “Tenho uma lágrima no canto do olho!”
Quem leu o “Mussulo – Um Abraço à Vela” (escrito em 2006!) talvez se lembre que, quando fomos lançar o livro em Angola, consegui encontrar uns compadres meus, angolanos, que não via há uns quarenta anos! Ele foi motorista da empresa onde trabalhei, um homem simples, humilde e por isso GRANDE, há meio século estava eu já noutra empresa, veio convidar-me para ser padrinho dum filho que acabava de lhe nascer. Fiquei muito sensibilizado e honrado e aceitei de imediato. Fui encontrá-los, ele e a comadre, em 2007. Ele bem doente, ela velhotinha também, mas ainda a trabalhar. Caí nos braços de ambos. Correram lágrimas. Vieram filhos, entre eles o afilhado, e netos, ver este “espécime” tão amigo dos velhotes. Uma das criança sentou no meu colo e não quis sair mais. Saí desse encontro de “marmelo atravessado” sem poder articular uma palavra.
Numa visita que fiz a Libreville, no Gabão, fui convidado para jantar em casa do diretor de um banco do Gabão (nem sei já que banco era) que eu havia recebido em Luanda. Estava ele, a mulher e o pai, gente extremamente atenciosa. Depois do jantar o filhote deles também veio sentar-se no meu colo e quando a mãe o quis levar para dormir ele reagiu.
No Congo, Brazzaville, ao dar um passeio à noite pelos arredores do hotel, entrei num pequeno comércio, onde nunca um branco tinha entrado. Estava cheio com gente a tomar cerveja e animada – sempre – conversa. Ao verem-me entrar todos se calaram. (O que faria aquele branquela por ali?!) Só perguntei se podia beber uma cerveja, que todos disseram sim. Depois vieram meter conversa. Eu ia de Angola, um país em plena guerra colonial o que lhes causou estranheza que eu ali estivesse. A conversa era quase um interrogatório. Todos queriam saber como era a guerra, porque, etc. Devo lá ter estado cerca de uma hora. Bebi duas cervejas e quando perguntei quanto devia não me deixaram pagar! A saída, abraços! (Em Portugal isto era possível? Os portugueses verem um africano entrar num bar e por fim lhe pagarem as bebidas? Não acredito.)
Uma das coisas que me fazia sempre rir era o diálogo com alguém que estivesse a vender alguma coisa. Especialmente com as mamanas, vendedeiras de produtos frescos – legumes, frutas, peixe, etc. – sempre tudo fresquíssimo. Começavam por pedir, por exemplo, 10 angolar eu dizia que era muito caro, oferecia 5, e ficámos um tempinho nessa conversa. Quando elas por fim concordavam com os 5 eu pagava os 10 ! Depois começava a segunda parte do diálogo: como fazê-las aceitar mais do que tínhamos combinado! A minha argumentação só prevalecia quando eu dizia que era para elas beberem um cerveja! Aí, sim, aceitavam e riam muito.
Como eu gostava dessa brincadeira, ao fim de pouco tempo, mal eu aparecia, elas já ficavam a rir! Que beleza.
No extremo oposto, lembro de um mercado que havia em Lisboa, aí por 1980 (?), ali, na av. Fontes Pereira de Melo, ao lado do prédio de Portugal Telecom. A minha mãe morava na Latino Coelho, e eu passei no mercado, vi uns pêssegos lindos e decidi comprar-lhe uns quantos. Peguei num saco e comecei a escolher os que queria. A vendedeira, rasca, faca na liga, linguajar alto e sujo, berra comigo que não podia escolher a fruta. Ela é que escolhia! Loucura! Eu compraria o que ela quisesse!!! É evidente que larguei tudo lhe disse para meter os pêssegos onde ela quisesse e não comprei nem um. Gaja rasca. Disto em África, não havia.
Em 1970 fui para Lourenço Marques – Maputo – diretor comercial da Mac-Mahon, cervejas, Coca-Cola, etc.
O pessoal chamado serventes, que trabalhava nos caminhões de distribuição, era muito mal pago, mal vestidos, com injustiças inadmissíveis. Uma das primeiras preocupações foi arrumar a casa, começando por rever os salários e regalias dessa gente que resultou praticamente em duplicação dos ganhos (assim mesmo muito baixos), sem penalizações por faltas de doença, etc. Poucos dias depois esses homens quiseram falar comigo, e em vez de virem à minha sala (mais ou menos um cubículo envidraçado) mandaram-me uma carta pelo correio! O chefe de vendas que estava há uns anos na companhia, soube logo quem a tinha escrito. Pedi-lhe para saber o que eles queriam. Só uns ajustes nos carros em que trabalhavam. Marcámos então uma tarde, fim do expediente deles, para nos reunirmos. Todos, eram talvez uns 30 ou 40, roupinha lavada, e eu comecei por lhes dizer que a minha sala era “ali” e quem quisesse falar comigo era só dizer. Nada de cartas!. Avançou o “escritor” e disse que havia grandes diferenças entre os que trabalhavam nos carros que mais vendiam e os outros. Foi fácil: por ordem de antiguidade, cada um vai escolher o carro onde quer trabalhar!
Um dos vendedores, branco, vem ter comigo com um servente que tinha já 11 amos de casa, e diz que não quer aquele homem no seu carro!
- Quanto tempo de casa tem você?
- Ano e meio.
- Então fazemos assim: ou este homem, que tem 11 anos de casa, vai para o seu carro ou você vai para a rua. Escolha!
Funcionou perfeitamente. Quando saí da companhia, soube que congeminavam dar-me um presente. Avisei que não aceitava nada, mas fizeram questão de se reunir comigo. Abracei um por um.
Quem sabe um pouco que seja da história de Moçambique sabe que Mouzinho de Albuquerque, o herói que prendeu o Gungunhana, e depois Comissário-Régio, foi durante muitos anos, até mesmo depois de ter morrido, considerado pelo povo moçambicano um herói que eles muito respeitavam.
Outro militar que deixou uma história digna de ser contada a todos, sobretudo em Moçambique também, e de quem já escrevi algumas páginas, foi  João de Azevedo Coutinho. Único branco, finais do século XIX, pacificou mais de 30.000 km2 (o triplo da área de Portugal). Admirado, estimado e respeitado pelas populações locais, muçulmanas, aprendeu a língua árabe porque muita vez foi consultado e nomeado juiz para resolver questões da população!
Convidado pelo mais importante chefe macua, o Rei Macuana, que ouvindo falar dele, e sem jamais ter visto um branco, convidou-o a que o visitasse na sua aldeia. Preparou-lhe casa especial, e depois de o ter recebido com todas as deferências, ainda lhe pediu que o aliviasse de 39 esposas que ele tinha a mais!
Só mais uma vivência, em Luanda, aí por 1963. Nessa altura já tinha lido muitos livros de um autor angolano, que sempre apreciei e considerei muito, Óscar Ribas, filho de pai português e mãe angolana, que nessa altura teria uns 50 e poucos anos. Por causa de uma doença grave cegara aos 36, e foram os irmãos que passaram a escrever o que ele lhes ditava.
Conheci um dos irmãos e manifestei o meu interesse em visitar o escritor. Convidaram-me para ir um domingo almoçar com a família. Um família tipicamente angolana, com a mãe ainda viva. Foram de uma gentileza impagável. Estive muito tempo conversando com o escritor, a saborear grande parte do seu saber e sobretudo da sua simpatiquíssima simplicidade. Nunca esqueci, tenho oito ou dez livros dele, que já li e reli muita vez. Ainda agora estou com mais um nas mãos.
Não há muito mais que possa dizer da “minha” África, a não ser que a saudade é muito grande.
Vou terminar com duas citações do livro “Mussulo- Um Abraço à Vela”, de 2006, A primeira do prefácio, do meu amigo “Nauta por ofício, Amante de África”, comandante da Marinha que viveu um pouco em Moçambique integrado numa missão da ONU.
- A África é um mundo diferente de tudo a que estamos acostumados a ver, ouvir e principalmente sentir. Na África ainda se pode encontrar a simplicidade perdida das relações humanas do nosso mundo tão civilizado. Não há um ser humano digno deste nome que não se torne de novo criança ao defrontar-se com este povo.”
Outra, uma mensagem que nesse livro deixei para os angolanos, sofridos pelas guerras e pelo descaso e vergonha dos governos (desgovernos) que têm tido:

                                   Não percam, jamais, a esperança.
Nem esqueçam que esperança não é plano de vida.
Há que planejar o futuro, já hoje, para todos.
Sempre com toda a esperança e muito entusiasmo.

E por último a frase com que fechou a apresentação do livro, em Luanda, o filho de amigo que eu conhecera, companheiro de caçadas, José Batista Borges:
Para que fique registado na história dos nossos dois países (Brasil e Angola) que a saudade de um abraço só pode ser diluída, com um outro abraço de saudade!
 
N.- Entusiasmo vem do grego e significa transporte divino, exaltação sob inspiração divina.  Como concretizou o americano Ralph Waldo Emerson (1803 -1882) quando disse “Nada de grande jamais foi feito sem entusiasmo.”
 
02/10/2020
 

 


Um comentário:

  1. Adorei,é de uma ternura e saudade enorme. escreve sempre tão bem e com muito sentimento. Abraço

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