segunda-feira, 28 de setembro de 2020

 

Saudade das Gentes de África

 

Não conheço alguém que tenha passado por Angola ou Moçambique e que essa passagem lhe tenha sido indiferente.
Até as dezenas de milhares de militares que, infelizmente, tiveram que enfrentar uma estúpida guerra colonial recordam esse tempo com algum aperto no coração. Parece um absurdo, mas essas duas terras, estes hoje dois países, eram um absurdo de contradições, sobretudo quando se tenta comparar a vida que lá se levava com a das colónias dos outros países.
O colonialismo, comandado por uma Metrópole pobre e gananciosa, levou à única solução possível, a Guerra Colonial. Tão absurda era s situação que os nativos não queriam lutar contra os portugueses que ali trabalhavam, mas acabar com o colonialismo explorador, e a prova é que muitos portugueses, face à injustiça da situação, pegaram em armas contra os seus, também irmãos.
Neste pequeno apontamento vou tentar mostrar alguns momentos vividos nos muitos anos que lá passei, não só com africanos, com filhos de famílias de portugueses, algumas das quais ali estavam há quatro e bem mais gerações e com os que chegaram poucos anos antes do desastre que foi a independência, porque se ofereceram aqueles países aos comunistas.
Muitas destas histórias já as contei, mas estão sempre presentes na minha memória, guardadas e recordadas com muito carinho.
O meu primeiro contato com um angolano, por incrível que pareça foi em Portugal, teria eu pouco mais de meia dúzia de anos. O meu avô materno, que vivia com folga financeira (e acabou com quase nada!) um dia foi a Angola para caçar. Isto aí por 1934. Boa vida, tinha lá amigos influentes, quando regressou levou um angolano para seu motorista!  Mas a grana do vovô, que esbanjou em maus negócios e mulheres boas, ficou curta e teve que dispensar o motorista que entretanto criara família em Lisboa.
Uns anos mais tarde, já homem dos cinquenta ou sessenta anos, que tinha arranjado muito modesto trabalho noutro lugar, decidiu ir a nossa casa visitar a minha mãe e ver os meninos, que seríamos já uns cinco ou seis. Lembro que era um homem grande, maior o sorriso na sua cara, e fez questão de apertar a mão a todos nós.
Quando apertou a minha eu fiquei muito espantado porque não tinha ficado escura! Mão escura, naquele tempo era só dos limpa chaminés, que quando apertavam a mão a alguém ela ficava preta! Todos viram a minha cara estranhando o “fenómeno”, e o pobre e simpático ex-motorista e a minha mãe riram bem. Depois disso nunca mais o vi.
O segundo contato foi à chegada a Luanda, de navio, que assim que atracou, uma quantidade de carregadores o invadiu oferecendo o seu serviço para carregar malas, caixotes, o que fosse. O que me contatou simplesmente me mostrou um crachá da alfandega com um número que tinha na camisa. Pegou mas minhas coisas e sumiu naquela confusão de gente a desembarcar e mais os que estavam no cais aguardando alguém. É evidente que um minuto depois eu já tinha esquecido o número do carregador e fui à procura dele. Tinha vista a cara dele, e naquele momento para mim todos os pretos (por que não usar este termo?) eram todos iguais! Não consegui distinguir nenhum e como não lembrava do número de identificação, pensei que estava “ferrado”! Não tardou a que o “meu” carregador me aparecesse, aquele sorriso que parecia dar a entender qual era o meu problema, a chamar-me para onde estava a minha bagagem. Pouco falei com ele. Fiz-lhe algumas perguntas sobre o seu trabalho e logo percebi que, se estavam ali uns cinquenta ou cem carregadores, todos eles eram diferentes. Esta foi a minha primeira lição africana que muito me marcou. Todos diferentes uns dos outros e todos, durante muitos anos altamente confiáveis.
Depois tive a sorte de ir viver em Benguela. Uma cidade de características únicas no Mundo. Ali não havia nem brancos, nem pretos nem mestiços. Eram todos gente. Àqueles bares, quiosques, ao ar livre, ao fim da tarde e até à noite, chegava um, depois outro, um pouco depois tinham que se juntar duas ou mais mesas, bebíamos umas cervejas, conversávamos, ríamos, e ninguém no fim saberia dizer qual a cor da pele de quem ali esteve. Festas, a sério, era nos quintalões, nas casas de angolanos, onde só se ia convidado. Fui duas vezes a essas festas. Os donos, todos pele escura ou levemente mais clara, mas uma cortesia, simpatia e educação que sem me conhecerem faziam questão de porem à vontade. Vou esquecer? Jamais.
Foi ali que conheci uma das mais interessantes, e divertidas, personagens de Angola: o filósofo, profundo, e poeta Ernesto Lara. Os seus pais, portugueses, tinham um comércio onde eu me abastecia. Pagar? Só no fim do mês.
O encarregado do depósito de máquinas do meu departamento, um português mais anti-salazar do que qualquer “centrista” ou “socialista” ou dono de órgão de informação de hoje em dia, lamentava-se que o seu sonho era ir para a Rússia. Propus pagar-lhe a passagem, só de ida, desde que ele me garantisse que me escreveria a contar como era a vida lá. A verdade. Foi sempre falando mal do governo, mas... nunca aceitou o repto. Era um sujeito simples, simpático, de quem acabei amigo.
Maior figura de legenda, o auxiliar que ajudava no armazém e fazia a limpeza do stand onde se expunham máquinas, tratores, etc. e onde eu tinha a minha mesa. O Joaquim. Já falei muito dele.
Enquanto a minha mulher não chegou de Portugal, eu estive mais de dois meses sozinho. O Joaquim foi “nomeado” meu assistente particular, a quem dava um dinheirinho para nas horas vagas – ao fim do dia – me ajudar a arrumar a casa, e sempre que eu viajava para o interior, dormir lá em casa. Impecável.
Quando no fim do dia, já noite, terminávamos o arrumo da casa, eu levava-o para o bairro onde ele morava, sentado no quadro da minha bicicleta! Quem me via passar – poucos – com um servente levado na bicicleta só ria. Era caso inédito!
Casal jovem fomos uma espécie de atração e novidade naquela terra! Não conhecíamos mais do que os colegas de trabalho, e isso só eu. Mas um dia, uma senhora que tinha os dois filhos em Portugal recebeu destes a informação de que estava ali um casal jovem. Nesse mesmo dia procurou-nos e convidou-nos para jantar. Foi pedindo desculpa porque o marido não fazia cerimónia com ninguém, ia logo deitar-se, etc. Receberam-nos como filhos, e o marido, para grande surpresa, ficou a conversar comigo até à meia noite! Passaram a ser a nossa primeira família de Angola!
Na empresa onde trabalhei tinha um colega que jogava ténis. Maravilha. Eu também. Ele conhecia um outro, funcionário de Fazenda, que era o único que até ali se sabia que jogava. A partir daí todos os sábados lá íamos nós, vestidos de branco, como era regra, jogar e deitar conversa fora.
Fomos depois morar em Luanda. Aí encontrámos uma boa quantidade de amigos de infância e até primos que já lá viviam, e a família angolana foi-se alargando. E alargou muito.
Eu ia muito à Europa e países vizinhos em trabalho, e os amigos, aliás as amigas, reclamavam que eu nunca levava a minha mulher! Um dia combinaram que levariam os nossos filhos todos para suas casas – na altura ainda eram só seis - onde tinham os seus amiguinhos, e nós os dois passámos quase um mês na Europa.
Em Portugal, nós com bastante família  genética, não teríamos conseguido isso!
Anos depois fui um dia com uns colegas e amigos da Cuca, em Nova Lisboa, já sol posto, fazer um churrasco numa sanzala, aldeia indígena, a uns tantos quilómetros da cidade (não lembro quantos) onde chegámos com toda aquela gente já a dormir nas suas modestas casas. Tínhamos comprado um monte de frangos e levado uma tantas caixas de cervejas. Quando os carros chegaram ao alto do morro onde eles moravam, o barulho dos motores e os faróis levaram uns quantos a abrir as portas e indagar o que se estava a passar. Perceberam que era para fazer festa e em poucos minutos não sobrava ninguém a dormir! A minha especialidade não era a dança. Isso é com africanos, que ninguém supera, nem Nijinsky!
Fiquei toda a noite até o dia começar a clarear, sentado ao lado do soba. Conversámos muito, gozei a quietude mesmo com aquela música e tudo o mais, um céu feito para encantar, e uma sensação de que naqueles momentos Deus está lá, a sorrir para nós. Não sabemos quem é esse Deus, Mas estava lá, sim, no meio de gente simples e alegre.
Numa ida a Portugal comprei um Morris Minor de 1932! Um brinquedo que levei para Luanda, dei-lhe uma “garibada” e fazia um sucesso imenso. Era brinquedo que não dava para passear com a família porque só cabiam dois e... bem juntinhos.
Mas era raro ser eu a andar no carro. Começaram a chegar de Portugal amigos de infância, militarizados, porque a guerra colonial tinha começado. É evidente que não levavam meio de transporte privado! Então o nosso valente Minor era cedido com uma única condição: como leva devolve. Se avaria nas vossas mão... o problema é vosso! Nunca avariou. E foram oficiais do exército e da marinha, capelães, alguns sargentos, que aproveitavam férias ou alguma folga para se deslocarem em Luanda. Era assim. Família.
Um dos amigos, muito amigos, que me honraram com a sua amizade, na altura cónego, natural de Cabinda, pele muito escura e batina impecavelmente branca, que sempre olhara para os brancos com olhos de pouca amizade, até ao dia em que passou a ver nos portugueses pessoas que não eram responsáveis pelo desastre que sempre fora o colonialismo/Metrópole. Estávamos ali a trabalhar e a ajudar a desenvolver o país.
Quando o conheci logo reconheci naquele ser, calado, baixinho, uma pessoa rara. Inteligente, perspicaz, educado. Atrevi-me a perguntar-lhe se ele nos daria o prazer de um dia almoçar em nossa casa. Disse imediatamente que sim.
Os nossos filhos receberam-no com imensa alegria e passaram a tratá-lo por “tio Muaca”! Criámos um vínculo de amizade muito forte. Dom Eduardo Muaca, depois Arcebispo de Luanda. Uma personalidade que admirei, e ainda hoje admiro muito, e sinto muito a sua falta.
Sempre houve, e vai continuar a haver gente boa e gente, não direi má, mas perdida. A estadia dos portugueses em África, Angola e Moçambique, não parece que tenha ainda sido estudada por alguém isento, sociólogo ou filósofo, mas tem histórias que contadas muita gente teima em não acreditar.
Em Luanda havia um hospital, grande hospital militar, onde mercê da guerra, quase todos os dias chegavam doentes ou estropiados daquela maldita guerra. Eu tive lá alguns amigos médicos, e um dia fui visitar o hospital. O diretor, amável,  mostrou-me, creio que tudo, mas o que mais me impressionou foram as enfermarias. Numa delas, com umas oito camas, tinha um soldado à porta, armado. Por quê? Numa das camas estava um combatente angolano, (inimigo-terrorista!), que tinha sido ferido num combate. Foi levado para o hospital, e tratado como qualquer outro, na mesma enfermaria, ao lado de soldados portugueses, alguns deles bem estropiados.. E o diretor ainda acrescentou:
- “Este já é a segunda vez que ele é ferido e volta para ser tratado aqui!”
- “E depois o que lhe fazem?”
- “Nada. Damos-lhe alta quando estiver bom, e ele vai à sua vida! Quem sabe se ainda o voltaremos a ver!”
- “E os soldados portugueses não reclamam por o terem mesmo ao lado?”
- “Não. Até conversam!”
Alguém sabe de situação igual com os ingleses, por exemplo?
Quando cheguei a Angola, tive que percorrer grande parte daquela terra. Fui a Nova Lisboa, hoje Huambo. Terra pequena, lá encontrei uma ou duas pessoas conhecidas e logo tinha uma porção de amigos. Um deles, uma meia dúzia de anos mais velho, que eu não conhecia, tinha recebido de Portugal uma carta que o informava que eu para lá ia e que ele, no que pudesse, me ajudasse.
Felizmente não precisei de ajuda, mas criámos uma amizade tão forte, que muitos anos mais tarde, estava eu já no Rio de Janeiro, ele em Portugal, muito doente, sabia que pouco tempo tinha de vida. Veio ao Brasil para se despedir de nós! Cada vez que penso nele...
Só África para estas amizades.
Em Moçambique, onde passei quase seis meses dando o meu tempo para a Casa do Gaiato, tinha o visto de estadia a caducar e precisava de mais uns dias para não ter problemas na saída. O muito querido AMIGO, padre Zé Maria, conhecia um moçambicano que seria, talvez, o chefe dos serviços de informação. Posto importante no governo, mas um homem simples, simpático. Mandou dois funcionários de carro buscarem-me à Casa do Gaiato (45 kms de Maputo) e levarem-me a Mbabane, na Suazilândia, para que lá me dessem novo visto de entrada. Fomos em muito animada conversa, na ida e na volta. O Consul de Moçambique pegou no meu passaporte, chamou um funcionário e mandou pôr o visto. Uns minutos depois devolveu-me e quando lhe perguntei quando devia pagar, olhou para mim e disse:
- “Aqui os amigos não pagam!”
A poucos dias de ir embora recebo um telefonema de um dos que me acompanharam a Mbabane. A convidar-me para almoçar em sua casa em Maputo, porque queria que a sua família me conhecesse! Lá fui. Estavam lá os dois e mais uma porção de casais amigos. Recebido com um carinho e atenções que nem pessoa importante. As senhoras pareciam estar num concurso de culinária. Cada uma fez um petisco melhor do que outro, e todas faziam questão que eu comesse de tudo! Impossível. A meio do almoço tive que capitular e pedir que me desculpassem. Não podia comer mais.
Fizeram 90 kms para me irem buscar e outro tanto para me levarem de volta.
Vou esquecer ou guardar bem aqui dentro?
No meu livro “Mussulo - Um Abraço À Vela” falei da minha “paixão” pelo mar, por velejar, que começou quando eu teria uns 10 anos. Só consegui concretizar esse sonho (parte dele) quando, quase trinta anos mais tarde, consegui comprar o primeiro (e quase único) barco, veleiro famoso o “Argus”. O barco ficava fundeado quase na ponta da Ilha de Luanda, perto de casas de pescadores. Um deles, um cara forte, atlético, que “herdei” com o barco, o Agostinho, era quem tomava conta do barco, o limpava e preparava para nos fins de semana sair a gozar aquele mar. O Agostinho era impecável e muito me ensinou. Tinha um ou dois filhotes pequenos e estes uns amiguinhos, claro, que faziam uns brinquedos para “velejarem” (os brinquedos!) na praia. Lembrei-me um dia de chamar essa criançada toda e propor-lhes fazer uma “regata” com os barquitos feitos por eles, com muita habilidade infantil (tinha barcos de uma e até de três velas). Montaram uns cinco ou seis no meu barco, saímos e a uns 100 metros da praia puseram os barcos na água. O entusiasmo deles foi uma maravilha. Logo os devolvi à praia. Esperámos pela chegada da regata e houve premiação! Já não lembro bem o que lhes dei, mas foi outra festa para todos.
Nunca fomos domos, nem sócios de restaurantes, mas às quartas feiras, durante alguns anos, tínhamos a nossa casa aberta para os almoços das quartas feiras, a que demos o nome dos “almoços dos solteiros”! Quem estivesse em Luanda só, sem a família que estaria em férias em qualquer outro lugar, podia aparecer. Não precisava avisar, nem nós nunca sabíamos quantos convivas iam aparecer. Normalmente entre um ou dois e às vezes meia dúzia.
Não havia cerimónia. Havia muito boa disposição, muita amizade que, naqueles que ainda por aqui andam permanece firme como rocha.
Como disse um amigo meu, militar, brasileiro, que esteve com as forças da ONU em Moçambique:
- África é um mundo diferente de tudo a que estamos acostumados a ver, ouvir e principalmente sentir.
Só quem por lá andou, e ainda hoje, sabe como é ser “recebido à angolana”. Só por ter feito a travessia do Atlântico, no “Mussulo” ganhei mais umas dezenas de amigos. Amigos de verdade
Por hoje fico-me por aqui. Mas tem mais para contar. Muito mais.
 

24/09/2020


Um comentário:

  1. Só c0ndegui ler agora. Uma "DELICIA" de descrição sobre a amizade em África. Creio que só possível de quem viveu neste ambiente ...

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