(continuação)
De Volta aos Primeiros
Passos - 3 -
Os
anos iam passando e os dois filhos que entretanto tiveram, António, o nome do
avô paterno e Carlos, o mais “perto” que encontraram para se parecer com o da
mãe, estudavam já na escola que entretanto se construíra na povoação.
O
negócio crescera bem, as viagens mais frequentes eram a N’Dalatando visitar os
tios e prestar contas da sociedade que estava bem sólida financeiramente, e
também para darem a conhecer ao pai de Catxi a sua nova família. Esta visita
foi uma festa em casa do kota e sua nga, que estavam felizes por verem a filha
bem casada, com dois lindos netos e um genro, mesmo português, que os respeitava.
Não
tardou também que numa dessas visitas Gabriel convidasse os tios, quase
solenemente, para serem seus padrinhos de casamento. Já tinham tudo combinado
com o Padre de Xá Muteba.
Casariam
naquela pequena igreja, e fariam a festa na casa nova que tinham construído.
Os
dois serventes iniciais, com o tempo e muita dedicação eram agora empregados a
quem se podia entregar a loja quando se ausentava, e duas ou três vezes, toda a
semana, Gabriel saía na carrinha para visitar áreas mais afastadas, entregar
algumas encomendas mais pesadas, como tambores de 200 litros de petróleo, muito
usado na iluminação, ver como corriam as plantações, sobretudo algodão e
mandioca, visitando os sobas e mantendo esse entendimento e bom relacionamento
com todos.
Nessas
viagens não conseguia segurar-se e o alargar mais os seus horizontes para os
lados femininos passaram também a ser um pretexto. E começou a experimentar
outras delícias. Chegava a casa mais à noite, por vezes cansado, quando
encontrava uma parceira mais bonita e mais fogosa, mas nunca nenhum destes
“encontros” se fazia a menos de 30 ou 40 quilómetros de casa! Todas eram
excelentes parceiras para os exercícios sexuais mas, perder Catxi, isso estava
fora de cogitação.
Xá
Muteba também tinha crescido, Posto Administrativo com o respetivo chefe de
posto, uma espécie de presidente da câmara, telégrafo, telefone, enfim um
progresso que, em 1949, quando Gabriel ali chegou era quase impensável.
A
sua casa comercial continuava a ser a maior e mais importante, aquela que os
sobas visitavam com alguma frequência e onde eram recebidos como amigos, nunca
indo embora sem terem bebido uns copos de vinho e comido uns bolinhos que
Catxi, mestra na cozinha, preparava.
Em
muitos fins de semana Gabriel levava a família para caçar. Barraca de campanha
e todos os apetrechos para passarem uma boa noite no “mato”, onde sempre lhes
aprecia um pisteiro que os levava a abater alguns animais, a maioria dos quais
ficava com a população. Para eles chegavam uns lombos e duas pernas, que
consideravam comida dos deuses.
Desde
muito pequeno o grande entusiasta pela caça era sobretudo Carlos; aos nove
anos, com a carabina do pai já tinha abatido um sengue, antílope aí com uns
noventa quilos, que fez questão de mandar embalsamar a cabeça e guardar no seu
quarto!
Gabriel
que percorria constantemente a região vinha sentindo um mal estar geral entre
as populações, devido principalmente ao escandaloso preço porque obrigavam os
agricultores a vender o seu algodão. Percebia que esse mal estar preparava algo
que poderia ser grave, mas com a confiança que ganhara em tantos anos, não
temia por ele nem pelos seus, mas pelo negócio que, de um dia para o outro
poderia acabar.
1961.
Os filhos, nove e onze anos, Catxi continuava a mesma mulher simpática, sempre
sorrindo, muito carinhosa com a família e com todos, uma tarde dois sobas
vieram falar com Gabriel. Conversa confidencial.
Avisaram-no
que o pessoal decidira fazer greve e não entregar o algodão, já colhido, a
menos que o preço fosse aumentado de forma considerável, e que isso poderia
trazer consequências graves porque “pairava no ar” que algum tipo de
levantamento estava a preparar-se.
Em
toda a região sabia-se que a sua casa comercial tinha sido o seu apoio durante
muitos anos, e por isso era respeitada, e nada faria prever que alguém se atrevesse
a prejudicá-la, antes pelo contrário queriam protegê-la, e manter as ligações
respeitosas que sempre prevaleceram. Mas... aconselhavam-no a mandar a família
passar uns dias com os tios-avós até que o problema estivesse resolvido.
Depois
de ter ouvido tudo quanto os sobas lhe contaram, mais preocupado ficou, sabendo
que nada podia fazer. O preço do algodão eram os poderosos da Metrópole que
fixavam. Ele estava ali, como sabiam, há quase treze anos, e praticamente não
tinha ganho nada em milhares de toneladas que mandara para Luanda. Os sobas
sabiam disso, mais uma razão para o considerarem um amigo e uma pessoa a
respeitar sempre. O problema é quando as multidões se enfurecem!
À
saída, baixinho, disseram ao seu amigo:
-
O senhor Gabriel tem sido sempre um amigo do nosso povo. Nós estamos-lhe muito
agradecidos. Guarde estas duas garrafinhas em lugar bem escondido. Nós aqui não
precisamos disso. Talvez no futuro o possam ajudar a viver. Tudo por aqui está
muito confuso.
As
duas “garrafinhas”, embrulhadas em velhos papeis de jornal eram duas garrafas
grandes de cerveja, 0,6 L, da velha Cuca, cheias. Cheias... de diamantes!
O
diamante! Um monopólio oligárquico, poderosíssimo, controlava o contrabando
dessas pedras de forma violenta. Aquele “presentinho” que os sobas lhe tinham
dado valia uma fortuna, e não era qualquer um que podia sair por aí e encontrar
comprador. Era, sim, um magnífico seguro de vida, só que para o negociar teria que
ir à Bélgica ou Holanda.
Sem
que alguém visse, guardou tudo no mais escondido buraco que encontrou em casa e
jamais falou sobre o assunto com alguém.
No
dia seguinte foi a Malange levar a mulher e os filhos que seguiram no combóio
para casa dos tios.
A
agitação crescia e os chefes dos postos administrativos, chamaram o exército,
diminuto e inexperiente exército para tão grande país, com a ideia de segurar
alguma possível sublevação.
O
encontro entre a tropa e o povo foi de total desentendimento. Os feiticeiros
queriam que os sobas dessem ordem para atacar com as armas que tivessem:
canhangulos, catanas, paus e foices, e completamente drogados procuravam
convencer o povo que as balas dos portugueses eram água e não feriam ninguém.
Tentaram
os oficiais que comandavam a tropa dialogar, mas não foi possível. O povo
gritava, ninguém se entendia e de repente começa o tiroteio.
Ninguém
sabe ao certo quanta gente morreu. Soldados portugueses poucos, porque eram os
que tinham as armas. Da parte do povo falava-se em centenas e até em milhares.
Um desastre completo. E o desmonte da última réstea de confiança que poderia
existir.
Poucos
dias depois, Gabriel, acompanhado de alguns sobas, corajosamente, foi visitar
as áreas da chacina. Era um dos raros portugueses que mantinham amizade junto
daquela gente, mas o que viu deixou-o extremamente abalado, determinado a
continuar com a sua casa e tentar melhorar a situação da região.
Passado
esse susto, esse perigo, Catxi e os filhos regressaram a casa. O mais velho já
estudava no liceu em Malange. Carlos deveria para lá seguir também em Outubro,
e Catxi tinha que dividir entre acompanhar os filhos e o marido, sabendo que se
o deixasse sozinho, novo, ainda o mesmo aspeto de rapagão forte e bonito, o seu
lugar na cama corria o risco de ser ocupado por outra!
Gabriel
entendeu que a melhor solução seria comprar um andar em Malange para não ter
que entregar os filhos aos cuidados de outras pessoas e Catxi para lá se mudou.
Raro era o fim de semana que não passava com a família. Ou dormia em Malange,
quase sempre aproveitando para dar uma volta à caça, ou quando podia chegava
sexta à tarde para os levar para Xá Muteba, onde logo Catxi desconfiou que
naquela cama, na sua cama, várias deviam andar a passar. Como sempre, não disse
nada. Só uma vez, com ar meio distraído, é que perguntou ao marido se ele não
sentia frio de noite, dormindo sozinho! Entendeu o recado! Respondeu que os
cobertores eram quentes. A verdade é que já experimentara, aproveitara, algumas
boas ofertas que umas mais atrevidas lhe tinham feito. Mas nunca levara nem uma
para a sua cama. Arranjava outros meios de realizar os encontros com as
oferecidas, muitas das vezes com manobras e desempenhos violentos e
prolongados, em quaisquer lugares.
O
tempo corria, a luta colonial espalhava-se por Angola, e Gabriel tinha
dificuldade em gerir a sua posição face a ambos os contendores. De um lado a
população da região que o conhecia tratava-o com a mesma atenção, avisando-o
até de possíveis situações de maior perigo. Do outro lado o exército português
desconfiava que ele tivesse ligações com os “terroristas” pelo simples fato de
ter sido sempre um comerciante honesto e amigo do povo.
Na
verdade ele conhecia muitos dos combatentes, há anos seus clientes e muitos até
amigos, mas com quem não falava do problema político militar.
Começava
a ver a sua situação difícil, e sobretudo calculava que o futuro certamente não
lhe reservaria a tranquilidade que qualquer um almeja na vida.
Numa
conversa com o tio percebeu que a situação lá na zona dos Dembos, ao lado de
N’Dalatando, não era melhor. Pelo contrário, o perigo era constante. Já tinha
até começado a transferir para a metrópole todo o dinheiro que pudesse,
reduzindo o movimento da loja, sem o entusiasmo que pouco anos antes o movia.
Os
filhos tinha-os mandado para Portugal, um a estudar no Porto outro em Coimbra,
ambos na universidade e em riscos de serem chamados para o serviço militar e
voltar para Angola, para uma guerra que não aceitavam. Já tinham posto o problema
ao pai de se ausentarem para França, mas a questão financeira, de os manter lá
dificultava a decisão. Só eles a podiam tomar.
Achou
a decisão do tio muita sensata, prudente e começou também a trocar o dinheiro
de que podia dispor, não por escudos de Portugal mas por dólares. Parecia-lhe
mais seguro.
Em
pouco tempo, a Angola, finalmente, tinha chegado a universidade. António desde
criança dizia que queria ser médico, e se tudo corresse bem em Outubro estaria
já em Luanda. Carlos, sempre mais vivo e despachado, ainda tinha tempo para
pensar entre engenharia ou... logo veria.
Com
dificuldade venderam a casa de Malange e alugaram um andar na capital, sempre
com Catxi acompanhando os filhos. Só que agora as visitas de fim de semana se
tornaram muito mais raras, porque, mesmo com a estrada em bom estado,
alcatroada, mais de 750 quilómetros para cada lado, além do tempo e custo da
deslocação, já se corria perigo de ser atacado no caminho. O melhor meio era o
avião, que de qualquer forma tinha que apanhar em Malange com horários que não
lhe davam grande possibilidade de aproveitar bem o fim de semana.
Aos
pais esta separação era difícil, mas necessária. Só nas férias é que se
juntavam todos em Xá Muteba, região bastante patrulhada pelo exército
português, com grande influência do MPLA sobre toda a região. No entanto os
combates naquela zona eram mais raros por haver muitas áreas abertas que não
permitiam emboscadas e nem os angolanos estavam preparados para um
enfrentamento aberto.
Como
é evidente toda a família tinha muitos conhecidos e os filhos até muitos amigos
nas fileiras dos combatentes angolanos, que de vez em quando até se atreviam a
aparecer, um ou outro, em casa deles, sempre disfarçados de agricultores. A
maioria das vezes vinham pedir ajuda para algum doente ou ferido, o que constituía
um perigo para os hospedeiros.
António
avançava na medicina e sugeria ao pai abrir um posto médico para ajudar a
população; Carlos estava em engenharia civil e, em férias, não perdoava as
caçadas. Com o conhecimento que tinha da região e de muitos bons pisteiros,
tornara-se um grande caçador. Era isto que ele queria, muito mais do que a tal
engenharia.
Terminado
o curso, António ingressa logo no serviço militar, sem sair de Angola segue com
um batalhão para o interior, responsável pelo serviço de saúde. Carlos foi
também chamado para o serviço militar, mas entretanto a guerra acabara!
Grande
euforia nas populações com o anúncio da independência que Portugal proclamara,
Gabriel fez uma festa convidando os chefes indígenas para comemorarem.
Não
durou muito a alegria. Os movimentos revolucionários que lutavam contra o
colonialismo dividiam-se pelo país: o norte com a influência do Congo e o FNLA
que queria absorver essa parte de Angola, a metade sul com o povo umbundo apoiando
a Unita e o centro-norte nas mãos dos quimbundos, o MPLA, aquele que melhores
elites tinha e que, sobretudo, estavam apoiados nos sovietes.
Até
à data da independência, um ano e pouco depois do desastre português, os três
movimentos estavam completamente desentendidos, como estiveram sempre durante a
guerra colonial, e agora pegavam em armas, entre eles, no que foi uma horrorosa
guerra civil que durou vinte anos.
Os
portugueses fugiam, abandonavam tudo, e o abastecimento de todos os bens
começava a tornar-se raridade; o pouco que havia, muito especulado.
O
pecúlio em moeda posto nos Estados Unidos tinha já um volume razoável e jamais
esquecia daquelas duas garrafinhas que lhe tinham sido oferecidas, que nem
filhos nem a mulher sabiam da existência. Foi visitar um dos sobas que lhe dera
esse presente e pediu-lhe para lhe arranjar mais um “pouco”. Ele lhe pagaria.
Não foi necessário. Poucos dias depois recebia mais duas garrafinhas, que ele
sabia terem um valor muito grande, mas sem noção do quanto.
A
loja a ficar com inúmeras faltas de mercadorias essenciais, Gabriel disse a
Catxi que iria na sua camionete a Luanda comprar tudo quanto pudesse. Claro
sempre aproveitando para ver os filhos que já estavam integrados nos quadros do
MPLA, e que lhe facilitavam os contatos para comprar alguma coisa.
Dois
dias depois estava de volta a Xá Muteba. Ao aproximar-se da terra sentiu alguma
coisa errada. Muito fumo. Algum incêndio, mas onde? O seu coração bateu forte e
quando entrou na povoação viu o desastre que o deixou estarrecido: Xá Muteba
tinha sofrido um ataque de grupos do Congo, saquearam tudo quanto puderam e
quem se lhes opôs foi barbaramente morto. A sua loja e a casa estavam ainda a
arder. Com dificuldade entrou, procurou por Catxi. Acabou por encontrá-la estendida
no chão, assassinada, pescoço cortado, possivelmente teria sido estuprada.
Abaixou-se
e chorou convulsivamente agarrado ao cadáver mutilado. A custo embrulhou-a num
lençol e num cobertor e carregou-a nos braços para fora. Correu a pedir ajuda
aos seus amigos algumas tábuas que improvisassem um caixão e para abrir uma
cova ao lado da igreja, tão profunda quanto pudesse ser para aí depositar
aquela que, durante vinte e seis anos, tinha sido a mulher da sua vida.
Desesperado
procurou só alguns detalhes pessoais, como fotografias e as tais garrafinhas
especiais. Depois, mais uma vez foi visitar os sobas, um dos quais tinha também
sido assassinado, para lhes agradecer e despedir-se deles, dizendo que deixava
de vez tudo o que lhe sobrava, incluindo a carga que levava na camionete e que
ficava para eles. Sem custo. Pediu-lhes só que cuidassem do túmulo da sua
querida esposa.
A
sua idéia era ir embora de Angola, mesmo sabendo que os filhos ficariam,
certamente em condições razoáveis, porque estavam ambos com estudos superiores e
integrados no movimento a quem estava a ser entregue o país.
Voltou
a Luanda, chamou os filhos, contou-lhes todo o desastre, e que ia embora. Quando as “coisas” estiverem mais calmas
voltarei para estar com vocês. Agora estou abalado demais vou para Portugal,
aproveito para regularizar a casita e o terreno que eram de meus pais, e vou
dando notícias.
Tinha
um segredo para eles: as garrafinhas, que levaria o mais escondidas que
pudesse.
Também
lhes disse que a conta em dólares estava bem fornecida, o que eles sabiam, e
que se precisassem de alguma coisa lhe telefonassem. Quando chegasse a Portugal
mandaria um telegrama a dizer onde ficava. Carlos garantiu que no dia seguinte
lhe indicaria como, onde e a quem vender o famoso conteúdo das garrafinhas! Ele
sabia quem, em Angola, estava totalmente por dentro desse assunto. Não podia
vender a qualquer um; tinha que ir direto ao melhor comprador.
No
dia seguinte à noite, com a interferência dos filhos e seus amigos que, não
tardaria, alguns seriam importantes membros do governo, não teve dificuldade em
arranjar lugar no avião e levar as malas sem que alguém lhes tocasse.
(continua)
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