segunda-feira, 14 de setembro de 2020

 

(continuação)

De Volta aos Primeiros Passos - 3 -

  

Os anos iam passando e os dois filhos que entretanto tiveram, António, o nome do avô paterno e Carlos, o mais “perto” que encontraram para se parecer com o da mãe, estudavam já na escola que entretanto se construíra na povoação.

O negócio crescera bem, as viagens mais frequentes eram a N’Dalatando visitar os tios e prestar contas da sociedade que estava bem sólida financeiramente, e também para darem a conhecer ao pai de Catxi a sua nova família. Esta visita foi uma festa em casa do kota e sua nga, que estavam felizes por verem a filha bem casada, com dois lindos netos e um genro, mesmo português, que os respeitava.

Não tardou também que numa dessas visitas Gabriel convidasse os tios, quase solenemente, para serem seus padrinhos de casamento. Já tinham tudo combinado com o Padre de Xá Muteba.

Casariam naquela pequena igreja, e fariam a festa na casa nova que tinham construído.

Os dois serventes iniciais, com o tempo e muita dedicação eram agora empregados a quem se podia entregar a loja quando se ausentava, e duas ou três vezes, toda a semana, Gabriel saía na carrinha para visitar áreas mais afastadas, entregar algumas encomendas mais pesadas, como tambores de 200 litros de petróleo, muito usado na iluminação, ver como corriam as plantações, sobretudo algodão e mandioca, visitando os sobas e mantendo esse entendimento e bom relacionamento com todos.

Nessas viagens não conseguia segurar-se e o alargar mais os seus horizontes para os lados femininos passaram também a ser um pretexto. E começou a experimentar outras delícias. Chegava a casa mais à noite, por vezes cansado, quando encontrava uma parceira mais bonita e mais fogosa, mas nunca nenhum destes “encontros” se fazia a menos de 30 ou 40 quilómetros de casa! Todas eram excelentes parceiras para os exercícios sexuais mas, perder Catxi, isso estava fora de cogitação.

Xá Muteba também tinha crescido, Posto Administrativo com o respetivo chefe de posto, uma espécie de presidente da câmara, telégrafo, telefone, enfim um progresso que, em 1949, quando Gabriel ali chegou era quase impensável.

A sua casa comercial continuava a ser a maior e mais importante, aquela que os sobas visitavam com alguma frequência e onde eram recebidos como amigos, nunca indo embora sem terem bebido uns copos de vinho e comido uns bolinhos que Catxi, mestra na cozinha, preparava.

Em muitos fins de semana Gabriel levava a família para caçar. Barraca de campanha e todos os apetrechos para passarem uma boa noite no “mato”, onde sempre lhes aprecia um pisteiro que os levava a abater alguns animais, a maioria dos quais ficava com a população. Para eles chegavam uns lombos e duas pernas, que consideravam comida dos deuses.

Desde muito pequeno o grande entusiasta pela caça era sobretudo Carlos; aos nove anos, com a carabina do pai já tinha abatido um sengue, antílope aí com uns noventa quilos, que fez questão de mandar embalsamar a cabeça e guardar no seu quarto!

Gabriel que percorria constantemente a região vinha sentindo um mal estar geral entre as populações, devido principalmente ao escandaloso preço porque obrigavam os agricultores a vender o seu algodão. Percebia que esse mal estar preparava algo que poderia ser grave, mas com a confiança que ganhara em tantos anos, não temia por ele nem pelos seus, mas pelo negócio que, de um dia para o outro poderia acabar.

1961. Os filhos, nove e onze anos, Catxi continuava a mesma mulher simpática, sempre sorrindo, muito carinhosa com a família e com todos, uma tarde dois sobas vieram falar com Gabriel. Conversa confidencial.

Avisaram-no que o pessoal decidira fazer greve e não entregar o algodão, já colhido, a menos que o preço fosse aumentado de forma considerável, e que isso poderia trazer consequências graves porque “pairava no ar” que algum tipo de levantamento estava a preparar-se.

Em toda a região sabia-se que a sua casa comercial tinha sido o seu apoio durante muitos anos, e por isso era respeitada, e nada faria prever que alguém se atrevesse a prejudicá-la, antes pelo contrário queriam protegê-la, e manter as ligações respeitosas que sempre prevaleceram. Mas... aconselhavam-no a mandar a família passar uns dias com os tios-avós até que o problema estivesse resolvido.

Depois de ter ouvido tudo quanto os sobas lhe contaram, mais preocupado ficou, sabendo que nada podia fazer. O preço do algodão eram os poderosos da Metrópole que fixavam. Ele estava ali, como sabiam, há quase treze anos, e praticamente não tinha ganho nada em milhares de toneladas que mandara para Luanda. Os sobas sabiam disso, mais uma razão para o considerarem um amigo e uma pessoa a respeitar sempre. O problema é quando as multidões se enfurecem!

À saída, baixinho, disseram ao seu amigo:

- O senhor Gabriel tem sido sempre um amigo do nosso povo. Nós estamos-lhe muito agradecidos. Guarde estas duas garrafinhas em lugar bem escondido. Nós aqui não precisamos disso. Talvez no futuro o possam ajudar a viver. Tudo por aqui está muito confuso.

As duas “garrafinhas”, embrulhadas em velhos papeis de jornal eram duas garrafas grandes de cerveja, 0,6 L, da velha Cuca, cheias. Cheias... de diamantes!

O diamante! Um monopólio oligárquico, poderosíssimo, controlava o contrabando dessas pedras de forma violenta. Aquele “presentinho” que os sobas lhe tinham dado valia uma fortuna, e não era qualquer um que podia sair por aí e encontrar comprador. Era, sim, um magnífico seguro de vida, só que para o negociar teria que ir à Bélgica ou Holanda.

Sem que alguém visse, guardou tudo no mais escondido buraco que encontrou em casa e jamais falou sobre o assunto com alguém.

No dia seguinte foi a Malange levar a mulher e os filhos que seguiram no combóio para casa dos tios.

A agitação crescia e os chefes dos postos administrativos, chamaram o exército, diminuto e inexperiente exército para tão grande país, com a ideia de segurar alguma possível sublevação.

O encontro entre a tropa e o povo foi de total desentendimento. Os feiticeiros queriam que os sobas dessem ordem para atacar com as armas que tivessem: canhangulos, catanas, paus e foices, e completamente drogados procuravam convencer o povo que as balas dos portugueses eram água e não feriam ninguém.

Tentaram os oficiais que comandavam a tropa dialogar, mas não foi possível. O povo gritava, ninguém se entendia e de repente começa o tiroteio.

Ninguém sabe ao certo quanta gente morreu. Soldados portugueses poucos, porque eram os que tinham as armas. Da parte do povo falava-se em centenas e até em milhares. Um desastre completo. E o desmonte da última réstea de confiança que poderia existir.

Poucos dias depois, Gabriel, acompanhado de alguns sobas, corajosamente, foi visitar as áreas da chacina. Era um dos raros portugueses que mantinham amizade junto daquela gente, mas o que viu deixou-o extremamente abalado, determinado a continuar com a sua casa e tentar melhorar a situação da região.

Passado esse susto, esse perigo, Catxi e os filhos regressaram a casa. O mais velho já estudava no liceu em Malange. Carlos deveria para lá seguir também em Outubro, e Catxi tinha que dividir entre acompanhar os filhos e o marido, sabendo que se o deixasse sozinho, novo, ainda o mesmo aspeto de rapagão forte e bonito, o seu lugar na cama corria o risco de ser ocupado por outra!

Gabriel entendeu que a melhor solução seria comprar um andar em Malange para não ter que entregar os filhos aos cuidados de outras pessoas e Catxi para lá se mudou. Raro era o fim de semana que não passava com a família. Ou dormia em Malange, quase sempre aproveitando para dar uma volta à caça, ou quando podia chegava sexta à tarde para os levar para Xá Muteba, onde logo Catxi desconfiou que naquela cama, na sua cama, várias deviam andar a passar. Como sempre, não disse nada. Só uma vez, com ar meio distraído, é que perguntou ao marido se ele não sentia frio de noite, dormindo sozinho! Entendeu o recado! Respondeu que os cobertores eram quentes. A verdade é que já experimentara, aproveitara, algumas boas ofertas que umas mais atrevidas lhe tinham feito. Mas nunca levara nem uma para a sua cama. Arranjava outros meios de realizar os encontros com as oferecidas, muitas das vezes com manobras e desempenhos violentos e prolongados, em quaisquer lugares.

O tempo corria, a luta colonial espalhava-se por Angola, e Gabriel tinha dificuldade em gerir a sua posição face a ambos os contendores. De um lado a população da região que o conhecia tratava-o com a mesma atenção, avisando-o até de possíveis situações de maior perigo. Do outro lado o exército português desconfiava que ele tivesse ligações com os “terroristas” pelo simples fato de ter sido sempre um comerciante honesto e amigo do povo.

Na verdade ele conhecia muitos dos combatentes, há anos seus clientes e muitos até amigos, mas com quem não falava do problema político militar.

Começava a ver a sua situação difícil, e sobretudo calculava que o futuro certamente não lhe reservaria a tranquilidade que qualquer um almeja na vida.

Numa conversa com o tio percebeu que a situação lá na zona dos Dembos, ao lado de N’Dalatando, não era melhor. Pelo contrário, o perigo era constante. Já tinha até começado a transferir para a metrópole todo o dinheiro que pudesse, reduzindo o movimento da loja, sem o entusiasmo que pouco anos antes o movia.

Os filhos tinha-os mandado para Portugal, um a estudar no Porto outro em Coimbra, ambos na universidade e em riscos de serem chamados para o serviço militar e voltar para Angola, para uma guerra que não aceitavam. Já tinham posto o problema ao pai de se ausentarem para França, mas a questão financeira, de os manter lá dificultava a decisão. Só eles a podiam tomar.

Achou a decisão do tio muita sensata, prudente e começou também a trocar o dinheiro de que podia dispor, não por escudos de Portugal mas por dólares. Parecia-lhe mais seguro.

Em pouco tempo, a Angola, finalmente, tinha chegado a universidade. António desde criança dizia que queria ser médico, e se tudo corresse bem em Outubro estaria já em Luanda. Carlos, sempre mais vivo e despachado, ainda tinha tempo para pensar entre engenharia ou... logo veria.

Com dificuldade venderam a casa de Malange e alugaram um andar na capital, sempre com Catxi acompanhando os filhos. Só que agora as visitas de fim de semana se tornaram muito mais raras, porque, mesmo com a estrada em bom estado, alcatroada, mais de 750 quilómetros para cada lado, além do tempo e custo da deslocação, já se corria perigo de ser atacado no caminho. O melhor meio era o avião, que de qualquer forma tinha que apanhar em Malange com horários que não lhe davam grande possibilidade de aproveitar bem o fim de semana.

Aos pais esta separação era difícil, mas necessária. Só nas férias é que se juntavam todos em Xá Muteba, região bastante patrulhada pelo exército português, com grande influência do MPLA sobre toda a região. No entanto os combates naquela zona eram mais raros por haver muitas áreas abertas que não permitiam emboscadas e nem os angolanos estavam preparados para um enfrentamento aberto.

Como é evidente toda a família tinha muitos conhecidos e os filhos até muitos amigos nas fileiras dos combatentes angolanos, que de vez em quando até se atreviam a aparecer, um ou outro, em casa deles, sempre disfarçados de agricultores. A maioria das vezes vinham pedir ajuda para algum doente ou ferido, o que constituía um perigo para os hospedeiros.

António avançava na medicina e sugeria ao pai abrir um posto médico para ajudar a população; Carlos estava em engenharia civil e, em férias, não perdoava as caçadas. Com o conhecimento que tinha da região e de muitos bons pisteiros, tornara-se um grande caçador. Era isto que ele queria, muito mais do que a tal engenharia.

Terminado o curso, António ingressa logo no serviço militar, sem sair de Angola segue com um batalhão para o interior, responsável pelo serviço de saúde. Carlos foi também chamado para o serviço militar, mas entretanto a guerra acabara!

Grande euforia nas populações com o anúncio da independência que Portugal proclamara, Gabriel fez uma festa convidando os chefes indígenas para comemorarem.

Não durou muito a alegria. Os movimentos revolucionários que lutavam contra o colonialismo dividiam-se pelo país: o norte com a influência do Congo e o FNLA que queria absorver essa parte de Angola, a metade sul com o povo umbundo apoiando a Unita e o centro-norte nas mãos dos quimbundos, o MPLA, aquele que melhores elites tinha e que, sobretudo, estavam apoiados nos sovietes.

Até à data da independência, um ano e pouco depois do desastre português, os três movimentos estavam completamente desentendidos, como estiveram sempre durante a guerra colonial, e agora pegavam em armas, entre eles, no que foi uma horrorosa guerra civil que durou vinte anos.

Os portugueses fugiam, abandonavam tudo, e o abastecimento de todos os bens começava a tornar-se raridade; o pouco que havia, muito especulado.

O pecúlio em moeda posto nos Estados Unidos tinha já um volume razoável e jamais esquecia daquelas duas garrafinhas que lhe tinham sido oferecidas, que nem filhos nem a mulher sabiam da existência. Foi visitar um dos sobas que lhe dera esse presente e pediu-lhe para lhe arranjar mais um “pouco”. Ele lhe pagaria. Não foi necessário. Poucos dias depois recebia mais duas garrafinhas, que ele sabia terem um valor muito grande, mas sem noção do quanto.

A loja a ficar com inúmeras faltas de mercadorias essenciais, Gabriel disse a Catxi que iria na sua camionete a Luanda comprar tudo quanto pudesse. Claro sempre aproveitando para ver os filhos que já estavam integrados nos quadros do MPLA, e que lhe facilitavam os contatos para comprar alguma coisa.

Dois dias depois estava de volta a Xá Muteba. Ao aproximar-se da terra sentiu alguma coisa errada. Muito fumo. Algum incêndio, mas onde? O seu coração bateu forte e quando entrou na povoação viu o desastre que o deixou estarrecido: Xá Muteba tinha sofrido um ataque de grupos do Congo, saquearam tudo quanto puderam e quem se lhes opôs foi barbaramente morto. A sua loja e a casa estavam ainda a arder. Com dificuldade entrou, procurou por Catxi. Acabou por encontrá-la estendida no chão, assassinada, pescoço cortado, possivelmente teria sido estuprada.

Abaixou-se e chorou convulsivamente agarrado ao cadáver mutilado. A custo embrulhou-a num lençol e num cobertor e carregou-a nos braços para fora. Correu a pedir ajuda aos seus amigos algumas tábuas que improvisassem um caixão e para abrir uma cova ao lado da igreja, tão profunda quanto pudesse ser para aí depositar aquela que, durante vinte e seis anos, tinha sido a mulher da sua vida.

Desesperado procurou só alguns detalhes pessoais, como fotografias e as tais garrafinhas especiais. Depois, mais uma vez foi visitar os sobas, um dos quais tinha também sido assassinado, para lhes agradecer e despedir-se deles, dizendo que deixava de vez tudo o que lhe sobrava, incluindo a carga que levava na camionete e que ficava para eles. Sem custo. Pediu-lhes só que cuidassem do túmulo da sua querida esposa.

A sua idéia era ir embora de Angola, mesmo sabendo que os filhos ficariam, certamente em condições razoáveis, porque estavam ambos com estudos superiores e integrados no movimento a quem estava a ser entregue o país.

Voltou a Luanda, chamou os filhos, contou-lhes todo o desastre, e que ia embora. Quando as “coisas” estiverem mais calmas voltarei para estar com vocês. Agora estou abalado demais vou para Portugal, aproveito para regularizar a casita e o terreno que eram de meus pais, e vou dando notícias.

Tinha um segredo para eles: as garrafinhas, que levaria o mais escondidas que pudesse.

Também lhes disse que a conta em dólares estava bem fornecida, o que eles sabiam, e que se precisassem de alguma coisa lhe telefonassem. Quando chegasse a Portugal mandaria um telegrama a dizer onde ficava. Carlos garantiu que no dia seguinte lhe indicaria como, onde e a quem vender o famoso conteúdo das garrafinhas! Ele sabia quem, em Angola, estava totalmente por dentro desse assunto. Não podia vender a qualquer um; tinha que ir direto ao melhor comprador.

No dia seguinte à noite, com a interferência dos filhos e seus amigos que, não tardaria, alguns seriam importantes membros do governo, não teve dificuldade em arranjar lugar no avião e levar as malas sem que alguém lhes tocasse.

 

(continua)

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