A Vespa e as fraturas!
F… já é avô, e de uma linda
mocinha de quinze meses que faz parar o trânsito, pedestre, das vizinhas! Todas
adoram a Joaninha! Dizer que a sua neta é bonita seria quase pleonasmo, porque
o nosso herói não admitiria que outra coisa dela fosse dita! Mas ele naquele
dia ainda não tinha visitado a neta!
Arranjou um pretexto para
sair, vestiu um agasalho de algodão, lindo, bem branquinho, pôs o capacete na
cabeça, montou a sua Vespa, novinha, muito bem conservada, com pouco mais de
seis meses de uso, que ele hoje em dia só usa para pequenas saídas ou para
circular em áreas de tráfego intenso, desde que o tempo esteja bom, e foi até à
casa do contador (guarda-livros, o senhor Valério, um muito simpático homem)
para com ele discutir os detalhes da abertura da firma que será a proprietária
da nova loja que está abrindo, e vai dar às filhas.
A firma chama-se “SAMBORÁ”
Comercio de Artesanato e Móveis, Ltda.. Samborá significa em língua
tupi-guarani “o pólen das flores”, a matéria prima das maiores artesãs do
Universo!
O dia estava bonito, com um
solzinho gostoso, sem frio nem chuva, seriam s quatro horas da tarde. A
distância a percorrer era curta, talvez uns quatro a cinco quilómetros, e pouco
trânsito.
O avô ia apreciando a tarde
bonita, e pensando como era agradável sair de vez em quando na Vespa,
calmamente, sem a preocupação de ter que procurar lugar para estacionar, nem
sem se assustar com possíveis engarrafamentos do trânsito. De fato tinha sido uma
grande invenção para o trânsito das cidades.
O contador não estava em
casa e o nosso “vespeiro”, viu a porta fechada e nem sequer teve que parar o
veículo. Seguiu em frente para voltar para casa, pela rua da Paz, muito mal
calçada de pedra, uma espécie de paralelepípedos mal cortados e bem
desalinhados. Esta rua, de paz nada tem, porque todo o mundo que por ela
transita, xinga a Prefeitura pelo desmazelo em que o piso se encontra e ainda
pelos obstáculos que ali foram colocados para diminuir a velocidade da
circulação, que por foça do péssimo empedrado já é muito baixa.
A 30 km/hora, com seu dono
em cima, a Vespa seguia tranquila qual jumentinho paciente a caminho do Egito.
Sucedem-se os buracos, as vibrações da calçada mal conservada, e os
cruzamentos. Num destes um carro aguardava que o trânsito passasse para cruzar
a rua. Ao aproximar da Vespa, com tranquilidade em inércia, o carro ignorou a
Vespinha, e avançou! Ambos bem devagar. O carro trava, e a Vespa, além de ter
que travar, com o desgraçado parado na frente, foi obrigada a desviar-se para
não lhe bater. Com aquele miserável piso, agravado com restos de água e lama, a
Vespa escorregou e o seu cavaleiro foi obrigado, mais por solidariedade do que
por necessidade, a imitá-la! E ali ficam os dois em pleno cruzamento,
estendidos no chão!
A Vespa ligeiramente
aranhada, calma e paciente aguardava que alguém mais bondoso a levantasse do
chão, porque até ficava mal a uma máquina andarilha, depois de nada sofrer,
ficar ali estendida como algo inútil. O vovô depois de ter feito uma “viagem”
de uns escassos dois metros, esfregando a barriga e o visor do capacete por
cima daquele desalinhado e porco empedrado, pára bem em cima de uma poça de
lama e começou logo, mentalmente, a xingar o desastrado motorista que o fizera
cair!
Sentou-se, e depois de ver a
sua dedicada montada em posição tão indigna, concluiu que para além do seu
lindo agasalho “ex branco” e das calças todas sujas, o prejuízo fora unicamente
os leves arranhões na montada. Coitada! Só ela sofrera, porque como para ele
nada mais parecia haver do que o pequeno susto sofrido, mandou ao desastrado,
um jovem... que lhe pusesse a moto em
posição decente, e o ajudasse a levantar.
Já em pé pergunta ao
motorista:
- Você não sabe que esta
rua tem prioridade? Não viu ali, olhe bem, a placa com essa indicação?
- É. Eu olhei, não vi a
moto, e arranquei, até bem devagar!
- E agora, tem seguro?
- Não, não tenho!
- Então está aqui a fazer
o quê? Ponha-se a andar.
E com desprezo, o despediu.
Acarinhou a montada e tentou
pô-la de novo a funcionar. A Vespa estava amuada com a figura que a tinham
feito fazer ali no meio da rua, e recusou-se a trabalhar!
Custou-lhe a convencê-la que
ninguém a havia feito cair com intenção de a humilhar. Finalmente o seu motor, depois
de aceite a desculpa voltou a roncar, e ela aceitou com a costumeira humildade
o seu cavaleiro para a viagem de regresso a casa.
No caminho passaram em casa
da neta para a ver, só, porque a mãe tinha ido ao hospital, mas sujos como
estavam unicamente se inteiraram que tudo estava a correr bem.
Mal disposto porque lhe
haviam riscado a sua Vespa e sujado a roupa, foi para casa trocar-se e retomar
o trabalho do escritório, onde ficou até tarde da tarde.
Nas mãos começou a sentir um
pouco as batidas nas pedras, mas coisa sem importância.
Depois dessa hora, sozinho
em casa, preparou um whisky, coisa rara nele que prefere normalmente um gin
tónico, levou para perto se si um pouco de chocolate e algumas nozes, foi
sentar-se no seu canto habitual, conhecido como o cantinho do papai, onde gosta
de ficar a ouvir música e tentar ler o tanto que não conseguiu durante a vida
já passada, por preguiça ou falta de oportunidade!
Agora chora o atraso e a
imensa ignorância a que se deixou entregar durante tantos anos, e sobretudo por
saber que o tempo perdido jamais pode ser recuperado!
Foi ouvindo e lendo, as mãos
começando a doer mais!
Apesar do whisky achou que
não era má ideia tomar uma aspirina, e aproveitou para amarrar com uma ligadura
a mão direita que estava a incomodar demais. As dores continuavam a aumentar de
intensidade.
Quase às 10 da noite, sua
esposa, regressa a casa depois de ter estado no hospital com a nora, que ali
tinha ido fazer um procedimento ginecológico. Uma gravidez perdida, mesmo nos
primeiros dias, traz sempre alguma complicação para o físico de uma mulher, e
havia-se perdido a esperança de um segundo neto para os babosos avós.
- Então correu tudo bem?
- Correu. Ela já está em
casa, mas terá que repousar pelo menos um dia. E você, como está?
- Estive muito bem até há
pouco quando me começaram a doer as mãos e agora não aguento com dores! Têm
vindo a aumentar e agora doem-me horrivelmente.
A, mulher treinada em
hospitais, por andar já com todos os filhos, talvez dezenas de vezes, por esses
lúgubres lugares, logo concluiu que o melhor era irem ao hospital.
No primeiro em que entraram
não tinha ortopedista, no segundo a equipa estava operando um acidentado e
finalmente no terceiro, onde chegaram com o “doente” parecendo um marciano,
verde de dores, já sem conseguir mexer um só dedo, finalmente encontraram a
equipa de médicos que logo mandaram fazer as necessárias radiografias da mão
direita.
A cada dez minutos tinha que
se deitar porque não se aguentava já em pé. De posse dos exames o médico tratou
de o enfaixar, aliás, engessar todo o braço e a mão direta. Ficou igual a uma
múmia.
A seguir voltou a dizer ao
médico que lhe doía igualmente a mão esquerda. Volta aos Raios X, nova
radiografia, e entretanto o médico sumiu!
Veio um outro, louro,
aspecto de ariano nazi, pegou na mão do doente, depois de olhar para as chapas,
e enquanto dava um bruto aperto onde já doía imenso, perguntava:
- Dói aqui?
O grito de dor era reposta
suficiente! Mas o bruto, não contente com a resposta apertou com exagerada
força em diversos locais onde esperava que doesse e sempre, friamente,
perguntava:
- Dói?
- Imenso, como deve dar
para notar.
- Mas aqui não tem nada.
- E na outra?
- Tem que ficar engessada
durante duas semanas por suspeita de fratura do escafoide. Se a fratura se
confirmar, depois são mais seis semanas.
- Muito obrigado. E sussurrou – “grande besta.”
Tanto trabalho, canseira e
só suspeitas.
Imagina agora o acidentado com
a mão direita com quatro dedos de fora, sendo que o polegar, só por sacanagem,
ficou bem longe deles, não conseguindo assim segurar em nada. Além de ter o
braço imobilizado até ao sovaco.
A sua Vespa vai ter também que
ficar imobilizada uns tempos. Nem guiar o carro pode, que lhe faz a maior falta
para a sua vida profissional. E o peso do gesso?
Olhem, o coitado não sabe
onde colocar aquele trambolho quando se deita para dormir. Não é capaz de se
pentear, lavar as mãos nem o sovaco esquerdo. Mesmo levar a colher de sopa à
boca, com a mão esquerda é uma canseira. Também não consegue tirar aquelas
chatas carrapetas do nariz, o que tem feito toda a vida, umas vezes com mais
discrição do que outras, mas sempre com os eficientes dedos da mão direta, sem
nunca ter previsto que uma situação destas o viesse a deixar na mão!
Mas o desalento não o
atingiu. Não.
Ele ainda se lembra de já
ter vivido mais de mês com uma enorme perna de gesso, muito mais incomoda do
que isto agora, sem igualmente ter sofrido fratura. Naquela ocasião, bem jovem
ainda, 21 anos, recuperou-se com facilidade desse acidente provocado por um trator
que lhe passara desastradamente por cima das duas pernas, e que unicamente lhe
provocara rotura dos ligamentos internos do joelho esquerdo.
O pior é que, com todo este
trabalho, dores e gesso, ainda desta vez não conseguiu uma fratura digna para
mandar dizer à sua mãe e à irmã Luiza que finalmente havia alcançado o status conveniente
para poder entrar o “Club Privê” delas. (Coitadas, muito se quebraram.)
Escrito em 06/Julho/1987
Recuperado nos papeis velhos
em 01/08/2020
E já lá vão 33, a farinha que vale por três! Constituição de ferro. Saúde!
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