Ensaio Teo... e Lógico
Pouco mais que adolescente, morava em Lisboa e estudava
em Évora. Quase cento e cinquenta quilómetros separavam as duas cidades. Atravessávamos
o rio para apanhar o combóio no Barreiro. Isto só depois das férias, porque
fins de semana... nem para os mais abastados era.
Raro, mas às vezes tinha um dinheirinho no bolso,
pouco, sobretudo para comprar, quando o combóio parava em Casa Branca e se
dividia, indo metade para o Algarve e outra metade que passava perto de Évora,
um sanduiche, de maravilhoso pão alentejano com uma febra de porco muito bem
frita, que exalava um cheiro divino naquela estação. Era barato e sobrava um
pouco do pouco de que dispunha.
Numa banca de jornais, revistas, etc., ainda no cais
em Lisboa, comecei a comprar uns livrinhos de bolso para ler na viagem, uma
coleção muito interessante. Lembro de ter comprado “Os Grandes Músicos”,
“Grandes Pensadores” e alguns outros, mas foi sobretudo “Os Grandes
Religiosos”, escrito por um pastor protestante americano, de que sempre guardei
uma frase lapidar.
Já lá vão talvez mais de setenta anos por isso não lembro
de todos os religiosos ali descritos, teria Abraão e outros do Antigo
Testamento, talvez Avicena, Santo Agostinho, Francisco de Assis, etc., e
sobretudo, Jesus. O livro dava uma breve história de cada um, mas terminava o capítulo de Jesus com
esta frase:
O
cristianismo é o milagre da realidade!
Fui educado como católico, tive Grandes Amigos
padres, mas toda a vida ficou pairando no ar uma sensação de que me faltava
alguma coisa. E isso era, e sempre foi, a dúvida da Fé.
Hoje, a carregar uma carcaça envelhecida, tudo quanto
me sobra para fazer é pensar, e escrever cada vez menos, porque o motor vai
dando os seus ratés. Nos entretantos a cabeça está sempre a trabalhar,
muitas vezes a sonhar, o que me leva quase todos os fins dos dias a estar
cansado... da cabeça.
Mas como ela ainda não parou, vou penetrando nos
problemas até que chega uma hora em que o pensamento está, mais ou menos maduro,
para passar à escrita.
Desta vez é o Temer a Deus que me tem ocupado.
As três principais religiões monoteístas – houve
outras de que falarei a seguir – judaísmo, cristianismo e islamismo, criaram,
cada uma o seu Deus, apesar de estarem estranhamente de acordo de que há Um só!
Mais estranho é que eles meteram na cabeça das
pessoas que todos deveriam ser tementes a Deus. Deus poderia nos
castigar; primeiro havia céu, purgatório e inferno. Ultimamente o purgatório
foi purgado! O islão promete não sei quantas virgens para os “bons” e uns quantos
jovens homens para as mulheres! Um absurdo e uma deslavada mentira ou
atrevimento.
E durante anos nós sonhamos que nos vamos encontrar
com os entes queridos que já partiram e muitos que estarão lá, no Céu, velando
por nós.
Isto a parte boa, porque havia calamidades que Deus
nos poderia mandar, como dilúvios, o bombardeio de Sodoma e Gomorra, doenças,
guerras, etc.
O maior contrassenso de qualquer destas religiões.
Como é possível conceber um Deus que nos complexa a
viver temendo, sob a ameaça que ele nos dê umas pauladas na cabeça, e nos acena
com um Eliseu ou nos ameaça com o fogo eterno?
Deus, onipotente, onisciente, seja quem for, sempre
desconhecido, foi unicamente o Criador de tudo quanto existe, e isso deste os
tempos mais remotos quando os homens, por ignorância e inteligência, concluíram
que algo havia de superior à matéria. Mas é impossível conceber que Ele nos
esteja a observar para nos encher de desgraças se não nos comportarmos bem.
Deus é a essência do Bem.
O que fica evidente destas invenções dos homens é que
fizeram das religiões uma força poderosa.
Poderosíssima, mantendo o rebanho de crentes a
procurarem fazer as sacanagens às escondidas para que Deus e os arvorados em detentores do poder
Divino, não vissem.
Quer isto dizer que todos vivemos enganados e
subjugados a essas poderosas organizações que atemorizam as nossas consciências
e se arrogam o direito de nos obrigarem a viver como eles, simplesmente, e
quantas vezes analfabetos, hierarcas determinarem.
Para que servem ou serviram essas tão poderosas
forças?
Foi nelas, com suas imposições ditas divinas, que os reis e governantes desde que o tempo é
tempo se apoiaram para manter o poder.
E sob a alegação de que as forças divinas os comandavam
foram destroçando outros povos que não pensavam como eles, matando destruindo
tudo, sob a proteção daquele Deus que eles tinham criado para matar.
Há muito que cheguei a algumas conclusões, mesmo
sabendo que vão continuar infindáveis dúvidas.
Deus terá sido Criador dos Céus e da Terra, porque
alguém, alguma entidade superior, teve que dar início a tudo quanto existe. Mas
como surgiu essa entidade se antes era o Nada? De algum lado veio!
Vamos admitir que o Universos não teve princípio nem
terá fim, mesmo sabendo que há estrelas que se apagam e outras que nascem.
Quem criou tudo isso? Um Deus que agora nos vai
esbofetear se pecarmos, e para pecado é tudo quanto fere a natureza?
Não pode.
O mais antigo fundador do monoteísmo, de acordo com o que, até agora, se tem
conseguido apurar, terá sido Zaratustra. Pelo menos foi ele que difundiu a
crença num ser também Poderoso, Ahura Mazda, através dos seus escritos, “Os
Gathas”, “Os Cantos”, e que viveu cerca de 1700 a.C.
Ahura, as forças benevolentes da existência, o Senhor. Mazda, o
conhecimento, a sabedoria.
Zaratustra canta seus louvores ao Ser Supremo, sempre
carregado de perguntas e dúvidas, como acontece com todo o ser humano que...
pensa, porque, jamais, até ao fim dos tempos, ninguém vai conhecer a face de
Deus.
Em todos os Cantos não se vê que Zaratustra alguma vez
tenha pedido a Ahura que o ajudasse a combater quaisquer inimigos! Pede-lhe pelo
raciocínio da Sabedoria, a possibilidade de O conhecer, Tu que és o Criador de
toda a existência”.
Pede-lhe que o faça saber se as palavras que digo e
que ensino são verdadeiramente justas.
Nas suas meditações Zaratustra descobre uma das leis
fundamentais da existência: a dicotomia das forças e dos fenómenos. Neste mundo
cada força ou cada fenómeno é identificado pela força ou fenómeno que se lhe
opõe. O bem é identificado como bem porque o mal existe, a luz pelas trevas,
a verdade pela mentira, o mesmo que amor e raiva, serenidade e angústia,
alegria e tristeza, justiça e injustiça, etc. Na lua ou noutros lugares
inabitados o bem e o mal não têm qualquer senso. Donde se deduz que todos esses
fenómenos são criados no pensamento.
Resumindo, esta dicotomia não é obra do Criador, mas
do pensamento humano, daqueles homo sapiens, os que sabem e sabem que
sabem, enquanto os nossos amigos, ditos, irracionais, não tendo como formular
essas situações, não conhecem o bem e o mal, talvez o medo por ser um instinto
de sobrevivência.
E Zaratustra ao dirigir-se aos sábios do seu tempo, e
de todos os tempos, diz:
Cada um de vós, homem ou mulher, escolhe uma das vias,
dos dois princípios fundamentais, que são como gémeos que nascem no pensamento,
e que representam o bem e o mal. Os sábios, os justos, escolherão o bem, os
ignorantes o mal. E assim eles, os seres humanos criaram a vida e a não vida.
O homem pode pois escolher tomar a decisão mais
leviana mesmo sem disso terem consciência.
Zaratustra fala muita vez dos dois mundos diferentes:
o mundo físico e material e o mundo, do pensamento, do mental, espiritual ou da
alma, palavra bonita que vem de anima, animação.
Não sei de quem é a frase de que sempre lembro: Nada
de grande jamais se fez sem entusiasmo, sem animação!
Então Zaratustra dirige-se a Ahura a pedir lhe o
pensamento Justo, para que a luz da justiça revele a felicidade dos dois
mundos, o material e o espiritual, para poder guiar os seus companheiros.
O Canto I (yasna,
hat 28) começa:
Com os braços levantados, ó Mazda
eu oro e Te peço humildemente
De me concederes a bondade.
Que todas as minhas ações
estejam de acordo com
a Sabedoria e o Pensamento justo.
Assim eu poderei Te satisfazer
e satisfazer a alma da Terra.
Enfim Zaratustra o grande apóstolo, o grande
mensageiro do Mazdeísmo, nunca refere a possibilidade do Ser Supremo, o Deus
da sabedoria, poder vingar-se ou castigar os seres humanos. Podem merecer o
Seu reconhecimento ou serem ignorados, mas jamais castigados.
Há muitos, muitos anos comprei, talvez por acaso, o
livro de Nietzsche, “Assim falava Zaratustra”, na altura em que ainda era livro
proibido pelo Index da Igreja de Roma, e apesar de ser um poema foi baseado em
“Os Gathas”.
E lembro que, mesmo sabendo, pelas “hierarquias” que
Nietzsche era um inimigo de Roma, a verdade é que me marcou. Perdi
esse livro, no meio de tantas andanças, e há uns trinta anos comprei outro. Já
li esse livro duas ou três vezes, e desta vez fui à fonte, ao “Os Gahtas”, e confirmei
porque me impressionou o Nietzsche.
E, depois de muito pensar, procurando, como sempre na
minha vida, o Pensamento Justo, olho à nossa volta e vejo que o Deus do mundo
ocidental é um Deus vingativo, o que só pode ser uma violenta inverdade.
Chego à conclusão de que não necessitamos desses
deuses. Zaratustra, Buda mostram-nos o caminho do Bem, da Justiça.
E Cristo? Chegou e virou a “caridade” do avesso. Em
vez do “não faças aos outros o que não gostarias que fizessem contigo”, disse,
voz firme: “Faz”.
Cristo resumiu todos os ensinamentos a uma frase: Amai
os outros.
É evidente que incomodou os donos das outras
religiões e dos poderes temporais. Crucificaram-no de forma ignóbil, e
assassinaram quase todos dos seus apóstolos. Ninguém queria amar os outros se
isso significava perder poder, liderança, dinheiro.
Hoje as pessoas continuam a discutir sobre o Cristo
histórico. Cristo foi um Messias que, uma vez mais, veio dizer à humanidade
como se deviam comportar.
Quando Jesus disse aos discípulos: comparai-me e
dizei-me com quem pareço. Só Tomé pôde responder com evidência: Mestre,
minha boca é incapaz de dizer a quem tu és semelhante.
Justiça, bondade, amor ao próximo parece serem
palavras que estão a ser erradicadas de todas as línguas. Ficarão em alguns
dicionários amarelecidos e esquecidos pelo tempo.
Mas ficaram exemplos do pensamento inicial, símbolos
materiais, mais fáceis de manter do que o Pensamento Justo. Os templos
Mazdeístas tinham basicamente um lugar (altar?) para o fogo sagrado, que os
sacerdotes não podiam deixar apagar. Mais tarde Moisés criou a Menorá, o
candelabro de sete braços, e chegou ao cristianismo com as velas devocionais,
ou a lamparina de azeite, acesas para “demostrar” a fé e... aproveitar para
fazer pedidos a Deus ou a algum santo. Resquícios mazdeístas.
Apareceram muitos doutores da igreja, sim, como muitos
rabinos e imãs adaptaram
os sentimentos básicos das religiões ao seu gosto e modo de dominar.
A igreja de Roma para se impor fez ainda milhares de
santos e santas como Santa Helena por ser cristã e mãe de imperador, e tantos
outros que nem se sabe se existiram ou quando, e até lembro do Bom Papa João
XXIII ter des-santificado dois ou
três, um deles São Jorge, que não passariam de mitos. É claro que no Brasil São
Jorge é um dos maiores santos, e não depende da opinião da tal hierarquia.
Pessoalmente admiro e venero profundamente Francisco
de Assis, António de Lisboa/Pádua, o Bom Papa João XXIII, uma das maiores e
mais santas figuras de igreja de todos os tempos, e até conheci um Santo,
desconhecido da igreja, que foi o Padre José Maria, da Casa do Gaiato em
Moçambique, e alguns mais.
Tenho imensa admiração por Buda e sua lição de vida,
um homem que morreu sem descobrir a verdade, e acho Zaratustra um modelo
de ética e honestidade.
Não deixo de ter o pensamento cristão porque a
mensagem de Cristo sobrepassa tudo.
Mas há muito que não beijo anéis de bispos e outros
considerados importantes, e nem me interesso pelo que eles me dizem. Segundo
o Evangelho de S. Tomé (apócrifo, não entendo porquê) Jesus disse aos
discípulos:
Talvez os homens pensem que vim trazer paz à terra, e
não sabem que eu vim trazer discórdia, fogo, espada e guerra. Haverá cinco numa
casa, três contra dois, pai contra filho, filho contra pai. E serão solitários.
O panorama do mundo! Onde um imenso fosso entre o Bem
e o Mal continua a expandir-se.
O Pensamento Justo... fica para o final dos tempos. O
tal arrependimento.
17/02/2020
Muito interessante o seu ensaio Tio Também admiro e identifico-me com a filosofia Budista e acho que a minha Fé não é afectada por isso. Pelo contrário, ajuda-me a ver a face do Amor por diversos prismas e a reforçá-la... 😉 mts beijinhos
ResponderExcluirQuem é esta tão simpática sobrinha?
ExcluirBoas reflexões...
ResponderExcluirGostei bastante da visão geral e imparcial mas que mostra bem a força de manipulação que existe por trás das religiões.
ResponderExcluirPara mim, que pela graça de Deus, tenho uma fé até agora inabalável, o seu texto dá que pensar! E de pedir ao espírito santo que nos ilumine!
ResponderExcluirAbraços do
António OM
Acabei de ler o escrito Teo... lógico.
Vi escritos por mão alheia alguns dos meus pensamentos recentes. Por acaso não conheço bem Zaratustra, mas também comprei o livro de Nietzsche, embora confesse a minha dificuldade em entrar. Mas tenho-me interessados por outras religiões que muito nos têm a ensinar.
E sobretudo refuto com firmeza essa ideia do Deusa quem temos que temer.
Gostei muito do seu escrito
Abraços
Francisco Ataíde
BRAVO!!! Gostei MESMO!
ResponderExcluirA propósito das três religiões «do Livro», muita coisa se poderia simplificar se nos lembrássemos de que Javé é como se diz Deus em aramaico e Alá é como se diz Deus em árabe.
Ao longo do escrito, fui-me lembrando dos argumentos ontólógicos de Santo Anselmo (O mail alto que se pode imaginar) até ao de Einstein que o Francisco tão bem glosou (Quem deu o «pontapé de saída» para que acontecesse o Big Bang?) e poderia ir a Pascal...
Sorte a minha ter lido hoje este texto, agora que estou a ler a biografia de Nietzsche.Já tenho umas anotações sobre que darei rumor.
E concluo como comecei: BRAVO!!!