O Parque de Monsanto
MIRADOURO-MOR DA CAPITAL
Já
tenho aqui falado, no meu Pai, sobretudo em 19 de Abri de 2010, com uma breve
resenha da sua vida, e um retrato, que quem quiser ainda pode ver neste blog - https://fgamorim.blogspot.com/search?q=o+meu+pai
Pesquisando
entre muito papel, recortes, recordações que tenho guardado ao longo dos anos,
fui encontrar um recorte do Jornal “Diário de Notícias”, Lisboa, de 13 de Junho
de 1952, com texto da autoria do Dr. Alberto de Sousa Costa (1879-1961),
magistrado e escritor, que a seguir transcrevo.
“Não
vou descrever o bosque suburbano, tranquilizem-se. Os actos temerários também têm
limite de idade. Desejo, apenas, com prudente regozijo, praticar um acto de
desobriga.
Sinto-me
obrigado a apresentar cumprimentos, em público, ao Parque de Monsanto -
a que chamaria coroa de louros da gloriosa Lisboa de hoje, se não temesse Sª
Ex. o Conselheiro Acácio, ainda mais do que os inimigos certos e os amigos
incertos, os «impávidos marotos» de Camilo. Tenho por dever trepar ás colunas
cimeiras do Diário de Notícias para saudar, deste galarim, a floresta da
serra cidadã - tu ca tu lá, com a Cidade, de 'braço dado com elá desde o
Aqueduto das Águas Livres. E sinto-me vinculado àquela obrigação,
convertida em obcessão após a última e recente visita ao bosque arrabaldino,
que não chega a ser rústico, bosque quase urbano, por seu convívio diurno e
nocturno com as Sete Colinas da comunidade ulissiponense; e estou cativo
daquele dever, por esta razão plausível: porque, precisamente do alto das
colunas do Diário de Notícias, várias vezes me permiti lembrar aos
Mordomos da Cidade, Vereadores da sua fazenda, a efectivação da benfeitoria,
por sua larga projecção económica, estética, recreativa e climatérica no
património de todos nós.
É verdade.
Amigo velho da Árvore, minha irmã. segundo o linhagista S. Francisco de
Assis, devoto fiel da Cidade, mãe espiritual a quem devo as escassas luzes que
me alumiam, dei-me sempre, desde que me alcandorei no Chiado, ao afã de
conjugar o interesse da Cidade com as graças da Árvore. E perdi a conta ao número
de vezes que do balcão altaneiro do Diário de Notícias pregoei os bens a
colher do amável consórcio.
Daqui
soltei brado insistente pela urbanização e arborização do baldio encravado no
seio da Urbe, a que se dera o nome de Parque Eduardo VII. Afligia-me,
como uma vergonha de família, a montueira subversiva, escrupulosamente mantida
no coração do aglomerado citadino - barril do lixo dos moradores do contorno,
baluarte invicto de revoluções e contra-revoluções periódicas, à espera, desde
o começo do século, de que o investissem nas dignidades da cidadania.
Daqui
supliquei, a quem de direito, indulto a favor do arvoredo da Avenida da
Liberdade, condenado á morte por sofrer, alegava-se, de não sei que doença
bacilosa - como se fosse crime de pena de morte,
para qualquer vivente, aquartelar bacilos no corpo.
A sentença foi publicada em 1937. Os julgadores
dignaram-se ouvir a súplica - não por força dela, mas do Pretório que lhe impôs
autoridade. Já lá vão quinze anos. E o arvoredo da Avenida, a despeito do
precipitado diagnóstico e da sentença sinistra, continua de pé, no seu posto
de honra, sadio, risonho, umbroso, viridente, providencial - bálsamo consolador
dos grilhetas da carestia da vida sujeitos á lava de Julho; albergue nocturno
dos pardais das três freguesias adjacentes; máscara generosa de arquitectura
pouco digna de lugar ao Sol na artéria primaz da Metrópole.
Em página oportuna, estusiante de humorismo, Mestre
Francisco Valença, mago do riso que nos faz rir pelo menos uma vez cada
semana, comentou o acontecimento numa caricatura a preceito - o procurador
oficioso do arvoredo, nesta Mourama de arboricidas natos, a partir, iracundo, o
machado executivo; as árvores a lançarem-lhe os ramos aos ombros, e a
murmurarem, e a agradecerem:
- Obrigadas!
Muito obrigadas!
E foi
igualmente daqui, desta selecta tribuna, que declinei, embati, e tornei a
bater, duas, dez vezes, o acervo de vantagens da transfiguração dos cabeços e
pendores furunculosos da serra quase urbana em parque florestal.
Meseta calcárea erguida á ilharga da urbe magnificente; plaga inóspita
desde sempre relaxada ao escalracho e ao malfeitor, arborizá-la seria integrá-la
na vida da colmeia humana, convertida á lei da economia colectiva e da sedução
paisagística - sedução, consoante rezam os códigos do turismo internacional,
que representa uma das maiores fontes de riqueza dos povos progressistas. Sim,
meus amigos - amigos certos. Dar vida á serra, pela transfusão de vida das
selvas, das ramagens, dos ninhos, dos novos seres que rompem das entranhas habitadas
pelas raízes, das novas espécies que brotam dos
flancos da terra em apojadura, seria a forma de atrair aos cabeços
virentes, aos pendores frondosos o interesse do natural, a curiosidade do estranho,
o entusiasmo do contemplativo. Seria pôr a serra em perpétuo convívio com a
Humanidade - concorrendo para a regularização das correntes atmosféricas do contorno;
para a fixação do regime das águas locais; para o crescimento e barateamento
de lenhas e madeiras a bem do rico e do pobre.
E a pôr em equação o somatório de benefícios da obra de fomento,
atrevia-me a beliscar, com irónica irreverência, a fama clássica da visão
fomentista de Pombal. Não, Pombal não enxergara, de tão perto, da rua Formosa,
do seu palácio de Oeiras, quase debaixo das fraldas da serra. As melhorias e
benignidades que a empresa lhe teria prodigalizado a troco de bem pouco, de lhe
vestir os bureis, as sedas e os veludos tecidos pelos ramos e frondes.
De súbito, ali por volta de 1930, o Município de Lisboa anuncia a
deliberação do povoamento florestal de Monsanto. Depois, dispõe-se a meter
ombros ao acto grande na esfera silvícola, E, iniciado o acto grande, em boa
entrega o governo da empresa à competência oficial, à sensibilidade requintada,
ao coração magnânimo do engenheiro Gomes de Amorim – coração tão bom, com um
fim tão mau, por força do trágico e brutal acidente de automóvel que o
arrebatou à vida e ao fervor da sua obra, na companhia de Duarte Pacheco,
fomentista para aquém e além de tudo.
Maio de 1938. À
esquerda, o meu pai explicando ao Gen. Carmona, o projeto do reflorestamento de
Monsanto.
À esquerda de Carmona
o eng. Duarte Pacheco, na ocasião Presidente da Câmara de Lisboa
Perdão. Um parêntesis de dois segundos. Acreditai-me:
ao evocar, nestas colunas, o nome de Gomes de Amorim, superintendente dos parques
e jardins do Município lisbonense, tenho a sensação de que todos os troncos,
todas as ramagens da cidade e seu termo estremecem de comoção e se quedam em
sentido - gratos à memória do chefe que os isentou dos tormentos vandálicos do
serrote da tesoura, que os emancipou dos tratos impostos por bárbaros
escultores de monstros.
São veros escultores de monstros os podadores municipais
que por esse País fora, de uma das mais belas obras da Criação, fazem obra
cruel, horrenda e sacrílega - ruas, avenidas e praças povoadas de troncos mutilados, de colégios de aleijadinhos,
de procissões de penitentes, implorando em vão a misericórdia do Senhor!
Em
1939, nas vésperas da minha retirada de Lisboa, Gomes de Amorim, sensível aos
brados frequentes da minha pena no sentido da urbanização de Monsanto,
conduziu-me lá acima, de automóvel. Fez-me observar, um por um, os talhões já
cobertos de ramos - á data nos assomos tímidos da idade infantil. Subiu comigo
ao coruto das lombas - proporcionando-me o encantamento panorâmico dos miradouros
abertos nas cumeeiras. Levou-me aos viveiros do Município - dando-me a conhecer
a maioria das espécies lenhosas
consignadas à florestação.
Tornei
ao Parque de Monsanto no Abril deste ano - treze anos rodados sobre a
primeira visita. E outra sensação, comovedora como aquela anteriormente registada,
me acompanhou no curso da jornada. Percorri todo o vasto território na
impressão de que seguia a meu lado, no carro que me transportou aos cerros arborizados,
que subia e descia comigo a «montanha russa» das estradas e avenidas
entalhadas no cerne dos maciços, o arquitecto ilustre que delineou e lançou as
bases do grande monumento silvícola e panorâmico da cidade.
Subimos
a autoestrada, gilvaz rasgado no flanco da serra, sobranceiro ao Tejo. Entramos
no dédalo sinuoso de carreteiras e arruamentos que sulcam pendores e cabeços
do Parque - giestas floridas, todas ouradas!, em ranchos debruçados dos
taludes. Galgamos, rodopiando, serpenteando, os maciços lenhosos de cota
superior. Assentamos pé, deslumbrados, no miradouro-mor da capital, com sua
casa de chá a oferecer o beberete ao viandante. Inclinámo-nos á visão magnífica
de Lisboa a escorregar das Sete Colinas, à esquerda. Observámos, em frente,
Almada, a Arrábida; à direita, Carnaxide, Linda-a-Pastora, Linda-a-Velha.
Deleitámo-nos a admirar o Tejo, ao fundo, no rodapé das quebradas, além inchado
de glória, aqui mirrado de angústia – na majestosa soberbia da glória, ao
depar-se-lhe a sumptuosidade de Lisboa, sua Senhoria, a encolher-se na dor e
angústia suprema, quando mete a caminho de Cascais e da morte, que o aguardam
lá em baixo, na baía fagulhante de lumes...”
Além
da muita, imensa, saudade, é sempre reconfortante “ouvir” estas palavras.
Quando
faleceu deixou sete filhos. O mais velho e o mais novo já estão em sua
companhia. Os outros, velhotes, por aqui continuamos penando, e recordando.
18/01/2020