sexta-feira, 11 de outubro de 2019



O Milagre da Caridade

A costa Norte de Portugal tem, frequentes vezes temporais e, nos séculos passados, a zona da Póvoa de Varzim, hoje uma cidade próspera e importante, era habitada sobretudo por valentes pescadores que enfrentavam o mar com valentia, e alguns agricultores, que adubavam as suas terras com o sargaço que tiravam do mar.
Como em outras ocasiões, no meio da minha papelada e livros encntro algo que estava até esquecido, como este.
Em 1885 um grande temporal levou consigo muitos pescadores que andavam na sua faina, deixando inúmeras vítimas entre viúvas, crianças e outros familiares. Foi uma drama profundo que abalou o país.
Francisco Gomes de Amorim (1827-1991) natural de A-Ver-O-Mar, freguesia de S. Jorge de Amorim, pertencente à Póvoa, condoeu-se das famílias e, sem dinheitro para lhes acudir, compôs o pequeno e tão bonito poema abaixo, que mandou imprimir na Imprensa Nacional, em 1885, e o cedeu para ser vendido, sendo o resultado dessa venda entregue às famílias vitimadas.
Poema que não necessita de tragédias para ser lido e meditado.
O opúsculo, mede 7,5 por 11 cm, vai aqui reproduzido, e é uma pequena peça de coleção.


Era uma vez um menino / Pequenino, / De tamanho coração /
Que aos pobres dava metade / Por amor e caridade, / Do escasso pão.

Ao pais também pobrezinhos, /  Coitadinhos, /  Matavam-se a trabalhar!
E quando, à volta da escola / O filho dava de esmola / O seu jantar,

Diziam: - Que vale o estudo /  Se dás tudo, / Augmentando a nossa cruz?! -
E o menino respondia: / - Dou, pela Virgem Maria, / E por Jesus.-

- Dá, meu filho; dá querido... - /  Comovido, / Tornava o par infeliz:
- Quando um pobre, d’outro pobre / Mata a fome, acção tão nobre / O céu bemdiz. -

O jovem filho do povo, /  Fato novo / Pôde uma vez conseguir.
Eis, quando o tinha vestido, /  Esmola, um mais desvalido, / Lhe vai pedir

Como elle, em dura pobreza, /  A tristeza / Da orphandade tinha a mais.
De trapos vis se cobria; / Com fome e frio tremia, / Soltando ais.

- Oh! Deus, ser-me-ía tão grato /  Dar-lhe um fato, / Que fosse novo também!...
Ih! Jesus, que bom conselho!... /  Torno a vestir o meu velho... / Menino, vem. -

Leva-o consigo ao quarto; /  Comer farto, / E a roupa nova lhe deu.
- Estais lindo! Sae. Depressa, /  Por essa porta travessa... / E deixa o teu.

Que guapo vai, que bonito / Coitadito! ... / Agora, toca a sumir
Os farrapos do meu sócio ... / Se os paes sabem do negócio, / Tenho que ouvir! ...

- O rapaz faz-se poupado!... /  Consolado, / Dizia o esposo à mulher.
- E verdade, nem se veste /  O fato que tu lhe deste! / Para que o quer?

- Conheceu, enfim, que a vida / comprida, / Que depressa o romperá... -
- Não é isso, eu já lhe disse / Muitas vezes que o vestisse... / Onde o terá? -

Vê na caixa. - Está fechada. ... / - Que embrulhada! / Nunca até hoje a fechou!
Chama-o cá. Foi com bom custo / Que o comprei! - Cheia de susto / A mãe, o chamou.

- Abre isto; ou dize o destino, / Meu menino / Da roupa que o pae te deu. ...
- Perdão ... - Abriu sereno: / - Dei-o de esmola a um pequeno, / Mais pobre do que eu. -

- Deste! O novo?! - E furibundo, / Volta o fundo / Da caixa, e vê reluzir
Oiro, joias pedraria; / Quantos trapos ali havia,  / A refulgir!

Ficam todos mudos, quêdos, /  Quaes penedos; / E o prodígio não se esvae!
- Bruxaria... ou roubaste?! / Filho? Onde foi que isto achaste? - / Exclama o pae.

- São vestidos do orphãozinho / Doentinho, / Com quem a roupa troquei!
Mas não eram assim d’antes... /  Que milagre os fez brilhantes, / É que não sei.

- Sei eu. - Volve, ajoelhando, / chorando, / A mãe. - Oh! Bem hajas tu,
Porque ricos nos fizeste, / Quando a Deus ouvidos déste, / Vestindo um nu.

Tornou-se a esmola thesouro; /  Fez-se em oiro / O dom do pobre, bem vês.
E, depois da vida finda, / Maior paga terás inda / No céu, talvez.

Ambos, agora, commigo, / Filho amigo,  / Ajoelhai-vos; a pedir
A quem nos deu tal riqueza, / Que nos mande mais pobreza / Para vestir. -

Paralavras não eram ditas, /  Infinitas / Vozes se ouvem a cantar.
Eram os anjos, n’um hymno, /  O feito do pequenino / A celebrar.

E diziam: - “O opulento / Terá cento / Pela esmola de um ceitil;
Porém, o necessitado, /  Por cada obolo dado, / Terá cem mil.”-


Out/2019


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