domingo, 6 de outubro de 2019




Johannes Carolus – Quem foi lendo todas, ou só umas poucas das recordações de Amigos que escrevi, deve ter notado que foram muitos, quase todos, a quem o eterno descanso chamou e, com a graça de Deus alguns ainda por aqui andam, muitos deles com ótima saúde e quase incontáveis anos de idade. Também devem ter notado que entre eles há os que tiveram uma vida a todos os títulos notável, que marcaram gerações, se dedicaram aos outros, ensinaram, foram grandes mestres, deixaram belas obras e grandes exemplos.
Não vou destacar este ou aquele mas vou terminar esta série de textos pelo indivíduo para quem não consigo encontrar uma palavra que o defina. Eclético? Completo? Talvez.
Se não é fácil escrever uma biografia, fazer um resumo da vida de quem foi uma Grande personalidade é um desafio, que apesar de saber que será sempre pobre, decidi enfrentar.
Conheci este senhor aí por 1950, amigo do meu sogro e irmãos, e diversas vezes o visitei, por isso para escrever este pequeno texto sobre ele pedi a uma grande amiga, em Portugal, que me arranjasse alguns, dos muitos, livros que escreveu.
Nasceu em Ílhavo, em 1899 e faleceu, depois de sofrer com uma doença incurável, em Lisboa em 1961, quando a sua capacidade produtiva ainda teria imenso que nos dar.
Médico, escritor, poeta, pintor, escultor, professor, romancista, até ator, uma extensíssima cultura, conhecia os clássicos europeus, japoneses, árabes, chineses, indianos, publicou alguns livros que traduziu do alemão, italiano, inglês, e de acordo com palavras suas, numa entrevista em 1949, contava

“Aos oito anos, depois do primeiro exame já exprimia as minhas emoções com rimas e desenhos. Aos onze tive meu jornal manuscrito e desenhado, de que ainda existe, em mãos amigas, uma coleção completa. E aos dezasseis abria as primeiras gravuras para o meu jornal impresso de que saíram 4 números. A Medicina veio muito tarde, por desejo de meu Pai. A Medicina e Farmácia era tradição de família. A Arte, foi, pois, sempre o meu destino, a minha mais gostosa obrigação.”

Dizia que a sua vocação era conversar, escrever e desenhar.
Como médico, aproveitando ao máximo as suas faculdades de inteligência, e artísticas, começou a desenvolver uma atividade verdadeiramente febril, e em ambos os setores: medicina e artes.
Pouco a pouco, foi constatando a inutilidade de grande número de conhecimentos, quer em relação à arte de diagnosticar, quer à arte de curar, o que mais tarde revela nas simples e famosas crónicas “É bom poupar a saúde” que publicou no Diário de Notícias, que ainda hoje deveriam ser lidas por muita gente, porque entendia que era fundamental ensinar ao público as normas básicas de higiene. Lembro muito bem dessas crónicas que eram lidas com um prazer duplo: o ensinamento e a graça com que as escrevia.
Foi professor do Instituto de Serviço Social, conferencista, falava na rádio e na televisão, e depois a escrita nos jornais e em livros, sempre visando transmitir cultura e bom senso.
Houve, e sempre há, uns quantos que se julgam atingidos pela ironia dos mais verdadeiros e inteligentes, como ele se apresentava nas suas atitudes. Mentes complexadas. “Para os que sabem tudo e desdenham, passem o volume a outro!”
Dizem que o nosso cérebro tem dois lados: o matemático e o poético ou artista. Raros são os que têm ambos os lados equilibrados, mas raríssimos os que os têm em grande desenvolvimento.
Neste caso temos o autêntico Médico-Artista.
Para se ter uma, muito simples e reduzida, ideia dos seus inúmeros escritos, reproduzo duas pequenas passagens da série de textos “É bom poupar a saúde”:
-  Alimentação de crianças: A banana antigo regalo de sobremesa e merenda, para raros apenas, como certa poesia... Expresso em calorias, o valor alimentar da banana é de 1.012 calorias por quilograma, não contando a casca que não se come, e a sua riqueza em vitaminas B e C coloca-a, se não a par da cenoura, limão, leite, pão e batata, pelo que diz respeito à vitamina B, pelo menos no mesmo grau quanto à vitamina C. Segue aconselhando dar banana às crianças e termina: Ora a primeira condição para alimentar bem uma criança é ter boa alimentação para lhe dar – como diria o amigo (ou a banana)... Banana.
-  Sobre a hipertensão: Quando se diz que um indivíduo tem 12/8 de tensão arterial, o que significa um estado normal, quer dizer que o coração consegue impelir o sangue a uma coluna de 120 milímetros de mercúrio e a 80 no intervalo entre dois batimentos... Quem primeiro mediu a tensão arterial foi um pároco da aldeia do condado de Middelesex, na Inglaterra, o reverendo Stephan Halles (1677-1761) que, ligando à carótida de uma égua um tubo de vidro, verificou a subida do sangue a nove pés e seis polegadas de altura. Quando as paredes dos vasos sanguíneos aparecem alteradas, fibrosas ou atingidas pela esclerose, diminuindo-lhes o calibre, dizem que é isso mesmo a causa da hipertensão, enquanto outros pensam ser justamente por causa dela! ... E enquanto não há mezinha, nem remédio, nem varinha de condão que cure todos os casos de tensão elevada, o melhor é cada um ajustar a vida aos seus meios físicos, em vez de ficar aí a impacientar-se e a deixar-se vencer pelo medo – coisas que só servem para agravar a hipertensão.
Conselhos de educação sanitária. Mais vale prevenir que remediar (dar remédios!) sempre com muita graça e ironia.
Aquilo que publicava, como médico ou simplesmente como romancista ou poeta, assinava Celestino Gomes e as obras de arte, pintadas ou desenhadas, como João Carlos, algumas vezes em latim como Johannes Carolus, como em muitos dos ex-libris em que mostrou ser um dos maiores especialistas de todos os tempos. Basta ver o dele, baseado no que via pintado nos barcos dos pescadores da sua tão querida terra, Ílhavo, e que mostra a sua, sempre, boa disposição

Ora bamos lá cum Deus – na grafia popular

Um dia perguntaram-lhe: “Porque escreve?” – “ Sei lá porque escrevo! Ponto foi terem-me ensinado a ler e a escrever!  Desde então, suponho, tenho ‘ideias’ literárias!” – “E como escreve?” – “Escrevo onde e quando calha, ponto é que a ocasião e a disposição coincidam.” 
Os livros sempre as capas, e muitos no interior com desenhos seus, vão da medicina ao romance e poesia, tendo começado a publicar em 1920. Abaixo, um para a divulgação das boas práticas de vida, com setenta e um textos publicados no jornal Diário de notícias, edição de 1953, o outro, pequenos romances e aventuras”, edição de 1943.


Sempre muita ironia e uma profunda cultura, escreveu sobre os temas mais variados, leitura de grande sabor e prazer, como no romance Iruchi-Ko que ilustrou. E em muitos outros. Livros seus e de amigos.



Na pintura, apresentou os seus primeiros trabalhos em 1917, com 18 anos. Depois no ano seguinte, e seguinte, e seguinte e por aí fora até pouco antes de falecer. 
Definia os seus trabalhos
“Em cada um dos meus quadros eu procuro, como os antigos, os pormenores, porque todos entram na história que ali se conta. Nenhum dos objetos está ali por estar, mas porque faz parte da história.”
Conheceu a senhora com quem casou num baile em Coimbra, ainda estudante. No dia seguinte, num pedaço de madeira com uns 30 centímetros de altura, esculpiu a figura e cara da noiva com uma perfeição admirável. Esculpiu também a cabeceira da sua cama, já casado e com um filho adolescente, em que a figura central, o Cristo, está ladeado por um pescador, ele, e sua mulher, ambos ajoelhados, enquanto o Cristo tem a mão no ombro da criança. Uma obra de arte, em estilo gótico, de raríssima inspiração.
Gostava de pintar retratos com os retratados em trajes típicos, da sua terra ou do século XIV ou XV, como estes dois auto retratos, um o pescador outro o doutor.



Mas o mais expressivo será este onde se vê o pintor, o médico, o escultor, na parede o quadro da mulher e, para não esquecer, caído no chão, um retrato do filho ainda pequeno. Nada ali aparece por acaso, até a demonstração da sua simplicidade envergando roupa de um trabalhador, e descalço.



Escreveu centenas ou talvez milhares de textos, conferências, romances, poemas, estudos, crónicas médicas, desenhou e pintou outra imensa quantidade de ex-libris e capas de livros, pintou uma “Última Ceia” que está no Seminário dos Olivais em Lisboa, uma obra prima de profundo respeito pela cultura portuguesa.
Cedo demais, uma doença incurável o alcançou, e ele, sendo médico, apesar de ter procurado tratamento em Londres sabia que tinha os dias contados. A mulher, uma senhor muito bonita e muito culta, chorava. E ele:
­“Porque choras? Quem está doente, quem vai morrer sou eu, e não choro.”
Precisava acabar o quadro “A Senhora do Mar”. Faltavam-lhe as forças para chegar às figuras no alto do quadro. Era a mulher que tinha que lhe segurar os braços! Assim mesmo saiu a obra prima; a Nossa Senhora tem a cara da dona Silvina, sua mulher, ele, humilde, como criança estendendo a mão à Senhora do Mar, demonstração da sua Fé e do amor que uniu o casal, à direita o filho, já homem, o avô com a mão no seu ombro. Acima o pai, à direita o sogro capitão da Marinha Mercante, o tio-avô Arcebispo, e os amigos, os poetas Afonso Lopes Vieira, e Américo Cortez Pinto, os pintores Sousa Lopes, Eduardo Malta, Lino António e Guilherme Filipe, o escultor Luis Fernandes, o músico D. José Paes de Almeida, o contista do mar Loureiro Botas.
As Artes, a Poesia, a Família, os Homens do Mar, a Música e aqueles que mais amou.


Já o fim se aproximava, com incrível velocidade:
“O que eu queria, ao menos, era um pouco mais de tempo, para acabar umas coisitas em que tinha pensado. As mãos, só, e um pouco de força para desenhar!”
Em plena agonia final, mal se podendo mexer, mas consciente e sempre estóico, organizou a sua última exposição que não chegou a ver inaugurada.
Pela última vez que se deitou e não mais conseguiu levantar-se, pedia à mulher que lhe levasse papel e as aguarelas. Não parou. Só quando fechou os olhos.
Deixou infindáveis mensagens, na Medicina e nas Artes, mas creio que estes dois pensamentos, poéticos ajudam a ainda melhor o caracterizar 
“Comido o fruto da árvore vedada,
Por castigo de Deus suo o meu pão;
A minha féria é a hora descansada
Em que o que o Senhor me há-de estender a mão...”

Uma noite, já cama, deitados:
- Estás acordada?
- Estou. Precisas de alguma coisa? Ainda não é hora do remédio.
- Está bem, deixa lá isso. Queres ouvir uma poesia que tenho estado a pensar?
- Quero, mas não dormes? Assim não descansas nada.
- Ouve lá isto, tenho muito tempo para descansar, tenho a Eternidade.

Quando de alma em alvoroço
Com uma etiqueta ao pescoço
A hospedeira o levar
E o Guarda lhe perguntar
P’ra onde é que o menino vai,
Ela dirá pelo menino:
- é o filho do senhor Zézinho Celestino
E vai ter com o pai...

23/09/2019

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