O Tangapema
Quase trinta anos em África e vinte no Brasil, onde se
refugiara depois das independências das colónias portuguesas, já a bater perto
dos noventa, mas ainda cheio de saúde, foi viver parte do ano em Portugal onde
um filho conseguira alguns bens, entre eles uma razoável propriedade agrícola,
onde construiu uma pequena moradia para os pais, ambos vivos.
De qualquer modo precisavam de alguma privacidade, em
vez de se sentirem hóspedes em casa do filho, o que pressupõe sempre alguma
cerimónia e consequente desconforto e liberdade.
Que fossem para lá viver ao lado dele, sem
preocupações com finanças, pessoal para limpar a casa, etc.. De tudo isso o
filho se ocuparia.
A propriedade não muros à volta, nem cerca, como
praticamente todas são, mas o lugar era bonito, bons ares, uma serra ao longe
que lhes enviava ar fresco durante o verão, horta, árvores de fruta, vinha e
olival, belas caminhadas pelo sossego dos campos, onde aqui comia um figo, além
umas amoras ou outras delícias, de vez em quando via passar correndo um coelho
a quem desejava boa sorte, enfim, um fim de vida que se aproximava com descanso
e conforto.
Ninguém se preocupava muito com uns assaltos que alguns
agricultores na região tinham já sofrido, normalmente de imigrantes ilegais ou
estrangeiros, e a vida continuava sem que se pusessem trancas nas portas.
O velho pai fazia questão de ajudar o filho nas suas
fainas agrícolas, dentro das fracas forças que ainda lhe restavam, sobretudo na
época de provar o vinho, vivia despreocupado, sem deixar de continuar a devorar
livros que lhe ocupavam as horas em que necessitava de se sentar e repousar um
pouco.
Levantava-se normalmente cedo, assim como se deitava
com as galinhas, ou até com os pintainhos, e preparava sozinho a sua refeição
matinal, que se compunha duma fruta e alguma aveia, como os cavalos (!) que lhe
diziam, ser muito bom para o trato intestinal. Naquela idade todo o cuidado era
pouco.
Um belo dia, ainda o sol não raiava, passando uma leve
claridade entre os ramos das oliveiras, vê que lhe entram pela cozinha dois
indivíduos, mal encarados, com alguma coisa na mão que não percebeu se se
tratava de faca ou pistola, vozes de sotaque estranho, roucas, pensando
aterrorizar os que lhes aparecessem pela frente, e logo começam a ameaçar.
- Ó velhote vai buscar o dinheiro e as jóias quando
não quebramos isto tudo e deixamos-te as tripas de fora.
Raimundo – o seu nome – só pensou na mulher que
habitualmente se levantava mais tarde e na pequenina bisneta que dormia também,
e ficou desejoso que ambas dormissem ainda mais. Se alguém podia perder a
parada seria somente ele.
Tranquilo respondeu:
- Na minha idade já não há mais jóias nem dinheiro. O
mais que vos posso dar é um café da manhã, e fingir que nunca aqui vocês
vieram. É bom que aceitem.
Os assaltantes, nervosos.
- Deixa de conversa, ó pá. Vamos revistar a casa.
Anda, levanta-te. Nós vamos atrás.
Raimundo não gostou da segunda ameaça. Guardava de
recordação, pendurado na porta da cozinha, um “tangapema”, arma que os índios
da Amazónia usavam nos rituais ao sacrificar um inimigo. Madeira dura como
ferro. E um pouco mais dentro de casa outra “arma” ainda mais perigosa, um
“javite” africano, peça antiga de muita estimação, mas... ai de quem leve com
ela! Abria-o ao meio.
Javite
Levantou-se, devagar, virou as costas aos bandidos, e
pareceu caminhar para o interior da casa, seguido pelos assaltantes.
Discretamente tira a “arma amazónica” do seu lugar e
voltando-se, sempre devagar, para trás, um dos bandidos muito perto, acerta-lhe
com o tangapema na cabeça que o prostra logo no chão. O outro fica uns momentos
petrificado e não tardou a levar a mesma dose.
Sempre com muita calma, o velhote pega numas tiras de
pano e cordas, enquanto os agredidos tentavam acordar, sangrando da cabeça, e
amarra os dois, pés e mãos pelas costas, sem largar a arma, não fosse o caso de
ter que dar mais uma dose em quem necessitasse.
Para que não aparentassem muita ferida vai buscar um
frasco de água oxigenada, limpa-lhes as cabeças e ainda lhe deita um pouco de
tintura de iodo! Deve ter ardido, mas era para o bem deles!
Depois, pelo telefone chama a GNR e o filho, este que
logo acorre assustado, e fica perplexo ao ver o panorama daquela cozinha.
- Dá uma mão aqui.
Amarram melhor os dois, separados, guardam a arma dos
assaltantes - um ameaçador e grande facão - dentro dum saco de plástico para
guardar as impressões digitais e, com muito esforço, carregam os dois na mala
do carro para depositá-los à entrada da quinta.
Passado um pouco chegam a GNR, vê o quadro, insólito,
algemam os estúpidos, vêm os estragos nas cabeças de ambos e convocam o
“agressor” para um depoimento, o que este recusa, e encenando, de bengala na
mão a mostrar mais velhice.
- Foi você que fez isto ou o seu filho.
-Eu.
- ???!!!
- Sou assaltado em casa e vocês querem que eu vá agora
contar a história lá no vosso quartel. Não. Não vou. Já não tenho idade para
essas coisas. Venham vocês a minha casa que lá eu conto como tudo se passou.
Ali mesmo deu fez uma descrição do que acontecera,
deixando os zelosos guardas desconfiados que fosse um velho a fazer aquilo, além
do que deveriam ter deixado os dois onde os amarraram em vez de os levarem para
fora.
Mas não quiseram mais conversa, foram embora com as
duas prendas.
Passado pouco tempo o “agressor” recebe uma intimação
do Tribunal Judicial da
Comarca de ... , para ir depor perante o juiz. Aí teve que ir,
acompanhado do filho e da mulher, mas sem advogado.
Por mais incrível que pareça era acusado de ter agredido
dois indivíduos!!! Passava de vítima a agressor!
Quando o juiz lhe lê o relatório em que ele era
acusado de agressão e de não apresentar evidências do assalto, e pede
explicações.
Raimundo, a bater nos noventa anos de vida e muita
experiência, assume:
- Doutor juiz, excelência, como se usa dizer no
Brasil. Imagino que o senhor, com idade para ser meu neto, não deveria gostar
de ver entrar às 7 horas da manhã dois bandidos pela sua casa ameaçando-o até de
morte. Olhe, senhor doutor juiz, eu também não gostei. E como vi que eles
estavam armados, com um imenso facão que imagino esteja, como prova, na posse
deste tribunal, que na altura nem distingui se era faca ou pistola, e vendo que
a ameaça se estendia até à minha mulher – que está ali, olhe – e mais a
pequenina bisneta, que estava em nossa casa, tive que reagir o mais rápido que
a minha idade permitiu.
Sabe senhor doutor juiz, eu vivi em África, muitos
anos, desde 1950. Andei por todos os caminhos possíveis, incluindo no tempo da
guerra. Nunca fui ameaçado, era sempre muito bem recebido pelas povoações
locais. Enfrentei perigos de outra ordem, inclusive nos meus quase vinte anos no
Brasil onde são assassinadas mais de cinquenta mil pessoas por ano. Tive por
duas vezes revolveres apontados para a minha barriga. Nem um só disparou e um
dos assaltantes acabou preso. O outro fugiu. Sempre pensei que, quem sabe, um
dia, eu teria que me defender, e fui-me sempre mentalizando para saber como
reagir se isso acontecesse. Aconteceu agora. E vou-lhe dizer mais. Só não
acabei com a vida desses dois vermes porque respeito muito a vida de quem quer
que seja. Até dos meus inimigos. Mas ficar quietinho e deixar que roubem e
maltratem a família, ainda hoje eu não consinto. Ver dois delinquentes me
ameaçarem e à minha família que estava ainda a dormir... Essa não. Só não
entendo, excelência, porque sou eu o acusado, e ficarei muito grato se vossa
excelência me explicar.
- Interessante a sua explicação, mas o senhor agrediu
duas pessoas, e como as retirou do local do crime, não permitiu que os agentes
da autoridade pudessem certificar-se do que se tinha passado.
- Mentira, doutor juiz. Eu defendi a minha vida e a
dos meus, e pelo que agora se está a passar eu deveria ter dado mais umas
mocadas na cabeça dos dois imprestáveis até que eles entregassem a alma do
demo! Só me faltava que fossem eles agora as vítimas. Pode vossa excelência me
condenar. Mas creia, deveria ser o maior absurdo jurídico deste país.
Porque os agentes da GNR não foram a minha casa
conferir? Veriam o sangue no chão, pelo menos. E eu tirei os bandidos de casa
porque não queria que a mulher e a pequenita se levantassem e vissem aquele
horrendo espetáculo. E os senhores agentes limitaram-se a algemar os bandidos e
foram embora. Ainda lhes disse que fossem lá a casa conferir. Havia sangue no
chão. Mas não foram.
O juiz engoliu em seco. Chamou o promotor e um dos
guardas da GNR, segredaram entre eles. Ninguém sabia o que dizer ao “réu”. Se
estava certo ou errado. Por fim sentenciou:
- Levante-se o réu.
Raimundo ficou sentado.
O juiz repetiu, não viu reação e mandou que o oficial de diligências
avisasse o réu, que lhe responde:
- Isto é brincadeira? Eu é que sou o réu?
- É melhor o senhor se levantar quando não pode ser considerado um
desrespeito ao tribunal.
- Pois eu não me levanto. Não sou réu. Sou a vítima. Podem até me mandar
para a prisão.
O juiz percebeu que tinha perdido a partida, e, voz cordial, pediu então:
- O senhor quer fazer o favor de se levantar?
- Pedindo, assim, com todo o prazer.
Levantou-se
- Parece que efetivamente há aqui um erro, quando a GNR apresenta
queixa pelas lesões sofridas pelos dois meliantes. Assim sendo considero o
“réu” não só inocente, como injustamente chamado a este tribunal como réu.
Encerrada a sessão.
O tribunal inteiro bateu palmas.
Raimundo não sabe se as palmas foram para ele ou para o juiz.
O tangapema, depois de bem lavado, voltou a ser colocado em local
estratégico.
14/09/2019
Ena pá!! que final mais redondinho.
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