segunda-feira, 16 de setembro de 2019



O Tangapema

Quase trinta anos em África e vinte no Brasil, onde se refugiara depois das independências das colónias portuguesas, já a bater perto dos noventa, mas ainda cheio de saúde, foi viver parte do ano em Portugal onde um filho conseguira alguns bens, entre eles uma razoável propriedade agrícola, onde construiu uma pequena moradia para os pais, ambos vivos.
De qualquer modo precisavam de alguma privacidade, em vez de se sentirem hóspedes em casa do filho, o que pressupõe sempre alguma cerimónia e consequente desconforto e liberdade.
Que fossem para lá viver ao lado dele, sem preocupações com finanças, pessoal para limpar a casa, etc.. De tudo isso o filho se ocuparia.
A propriedade não muros à volta, nem cerca, como praticamente todas são, mas o lugar era bonito, bons ares, uma serra ao longe que lhes enviava ar fresco durante o verão, horta, árvores de fruta, vinha e olival, belas caminhadas pelo sossego dos campos, onde aqui comia um figo, além umas amoras ou outras delícias, de vez em quando via passar correndo um coelho a quem desejava boa sorte, enfim, um fim de vida que se aproximava com descanso e conforto.
Ninguém se preocupava muito com uns assaltos que alguns agricultores na região tinham já sofrido, normalmente de imigrantes ilegais ou estrangeiros, e a vida continuava sem que se pusessem trancas nas portas.
O velho pai fazia questão de ajudar o filho nas suas fainas agrícolas, dentro das fracas forças que ainda lhe restavam, sobretudo na época de provar o vinho, vivia despreocupado, sem deixar de continuar a devorar livros que lhe ocupavam as horas em que necessitava de se sentar e repousar um pouco.
Levantava-se normalmente cedo, assim como se deitava com as galinhas, ou até com os pintainhos, e preparava sozinho a sua refeição matinal, que se compunha duma fruta e alguma aveia, como os cavalos (!) que lhe diziam, ser muito bom para o trato intestinal. Naquela idade todo o cuidado era pouco.
Um belo dia, ainda o sol não raiava, passando uma leve claridade entre os ramos das oliveiras, vê que lhe entram pela cozinha dois indivíduos, mal encarados, com alguma coisa na mão que não percebeu se se tratava de faca ou pistola, vozes de sotaque estranho, roucas, pensando aterrorizar os que lhes aparecessem pela frente, e logo começam a ameaçar.
- Ó velhote vai buscar o dinheiro e as jóias quando não quebramos isto tudo e deixamos-te as tripas de fora.
Raimundo – o seu nome – só pensou na mulher que habitualmente se levantava mais tarde e na pequenina bisneta que dormia também, e ficou desejoso que ambas dormissem ainda mais. Se alguém podia perder a parada seria somente ele.
Tranquilo respondeu:
- Na minha idade já não há mais jóias nem dinheiro. O mais que vos posso dar é um café da manhã, e fingir que nunca aqui vocês vieram. É bom que aceitem.
Os assaltantes, nervosos.
- Deixa de conversa, ó pá. Vamos revistar a casa. Anda, levanta-te. Nós vamos atrás.
Raimundo não gostou da segunda ameaça. Guardava de recordação, pendurado na porta da cozinha, um “tangapema”, arma que os índios da Amazónia usavam nos rituais ao sacrificar um inimigo. Madeira dura como ferro. E um pouco mais dentro de casa outra “arma” ainda mais perigosa, um “javite” africano, peça antiga de muita estimação, mas... ai de quem leve com ela! Abria-o ao meio.
                                                                   
 Tangapema
Javite


Levantou-se, devagar, virou as costas aos bandidos, e pareceu caminhar para o interior da casa, seguido pelos assaltantes.
Discretamente tira a “arma amazónica” do seu lugar e voltando-se, sempre devagar, para trás, um dos bandidos muito perto, acerta-lhe com o tangapema na cabeça que o prostra logo no chão. O outro fica uns momentos petrificado e não tardou a levar a mesma dose.
Sempre com muita calma, o velhote pega numas tiras de pano e cordas, enquanto os agredidos tentavam acordar, sangrando da cabeça, e amarra os dois, pés e mãos pelas costas, sem largar a arma, não fosse o caso de ter que dar mais uma dose em quem necessitasse.
Para que não aparentassem muita ferida vai buscar um frasco de água oxigenada, limpa-lhes as cabeças e ainda lhe deita um pouco de tintura de iodo! Deve ter ardido, mas era para o bem deles!
Depois, pelo telefone chama a GNR e o filho, este que logo acorre assustado, e fica perplexo ao ver o panorama daquela cozinha.
- Dá uma mão aqui.
Amarram melhor os dois, separados, guardam a arma dos assaltantes - um ameaçador e grande facão - dentro dum saco de plástico para guardar as impressões digitais e, com muito esforço, carregam os dois na mala do carro para depositá-los à entrada da quinta.
Passado um pouco chegam a GNR, vê o quadro, insólito, algemam os estúpidos, vêm os estragos nas cabeças de ambos e convocam o “agressor” para um depoimento, o que este recusa, e encenando, de bengala na mão a mostrar mais velhice.
- Foi você que fez isto ou o seu filho.
-Eu.
- ???!!!
- Sou assaltado em casa e vocês querem que eu vá agora contar a história lá no vosso quartel. Não. Não vou. Já não tenho idade para essas coisas. Venham vocês a minha casa que lá eu conto como tudo se passou.
Ali mesmo deu fez uma descrição do que acontecera, deixando os zelosos guardas desconfiados que fosse um velho a fazer aquilo, além do que deveriam ter deixado os dois onde os amarraram em vez de os levarem para fora.
Mas não quiseram mais conversa, foram embora com as duas prendas.
Passado pouco tempo o “agressor” recebe uma intimação do Tribunal Judicial da Comarca de ... , para  ir depor perante o juiz. Aí teve que ir, acompanhado do filho e da mulher, mas sem advogado.
Por mais incrível que pareça era acusado de ter agredido dois indivíduos!!! Passava de vítima a agressor!
Quando o juiz lhe lê o relatório em que ele era acusado de agressão e de não apresentar evidências do assalto, e pede explicações.
Raimundo, a bater nos noventa anos de vida e muita experiência, assume:
- Doutor juiz, excelência, como se usa dizer no Brasil. Imagino que o senhor, com idade para ser meu neto, não deveria gostar de ver entrar às 7 horas da manhã dois bandidos pela sua casa ameaçando-o até de morte. Olhe, senhor doutor juiz, eu também não gostei. E como vi que eles estavam armados, com um imenso facão que imagino esteja, como prova, na posse deste tribunal, que na altura nem distingui se era faca ou pistola, e vendo que a ameaça se estendia até à minha mulher – que está ali, olhe – e mais a pequenina bisneta, que estava em nossa casa, tive que reagir o mais rápido que a minha idade permitiu.
Sabe senhor doutor juiz, eu vivi em África, muitos anos, desde 1950. Andei por todos os caminhos possíveis, incluindo no tempo da guerra. Nunca fui ameaçado, era sempre muito bem recebido pelas povoações locais. Enfrentei perigos de outra ordem, inclusive nos meus quase vinte anos no Brasil onde são assassinadas mais de cinquenta mil pessoas por ano. Tive por duas vezes revolveres apontados para a minha barriga. Nem um só disparou e um dos assaltantes acabou preso. O outro fugiu. Sempre pensei que, quem sabe, um dia, eu teria que me defender, e fui-me sempre mentalizando para saber como reagir se isso acontecesse. Aconteceu agora. E vou-lhe dizer mais. Só não acabei com a vida desses dois vermes porque respeito muito a vida de quem quer que seja. Até dos meus inimigos. Mas ficar quietinho e deixar que roubem e maltratem a família, ainda hoje eu não consinto. Ver dois delinquentes me ameaçarem e à minha família que estava ainda a dormir... Essa não. Só não entendo, excelência, porque sou eu o acusado, e ficarei muito grato se vossa excelência me explicar.
- Interessante a sua explicação, mas o senhor agrediu duas pessoas, e como as retirou do local do crime, não permitiu que os agentes da autoridade pudessem certificar-se do que se tinha passado.
- Mentira, doutor juiz. Eu defendi a minha vida e a dos meus, e pelo que agora se está a passar eu deveria ter dado mais umas mocadas na cabeça dos dois imprestáveis até que eles entregassem a alma do demo! Só me faltava que fossem eles agora as vítimas. Pode vossa excelência me condenar. Mas creia, deveria ser o maior absurdo jurídico deste país.
Porque os agentes da GNR não foram a minha casa conferir? Veriam o sangue no chão, pelo menos. E eu tirei os bandidos de casa porque não queria que a mulher e a pequenita se levantassem e vissem aquele horrendo espetáculo. E os senhores agentes limitaram-se a algemar os bandidos e foram embora. Ainda lhes disse que fossem lá a casa conferir. Havia sangue no chão. Mas não foram.
O juiz engoliu em seco. Chamou o promotor e um dos guardas da GNR, segredaram entre eles. Ninguém sabia o que dizer ao “réu”. Se estava certo ou errado. Por fim sentenciou:
- Levante-se o réu.
Raimundo ficou sentado.
O juiz repetiu, não viu reação e mandou que o oficial de diligências avisasse o réu, que lhe responde:
- Isto é brincadeira? Eu é que sou o réu?
- É melhor o senhor se levantar quando não pode ser considerado um desrespeito ao tribunal.
- Pois eu não me levanto. Não sou réu. Sou a vítima. Podem até me mandar para a prisão.
O juiz percebeu que tinha perdido a partida, e, voz cordial, pediu então:
- O senhor quer fazer o favor de se levantar?
- Pedindo, assim, com todo o prazer.
Levantou-se
­- Parece que efetivamente há aqui um erro, quando a GNR apresenta queixa pelas lesões sofridas pelos dois meliantes. Assim sendo considero o “réu” não só inocente, como injustamente chamado a este tribunal como réu. Encerrada a sessão.
O tribunal inteiro bateu palmas.
Raimundo não sabe se as palmas foram para ele ou para o juiz.
O tangapema, depois de bem lavado, voltou a ser colocado em local estratégico.

14/09/2019

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