Amigos - 35
O meu Ajudante
Etnólogo
Já escrevi várias vezes, talvez até demais, que em
1954 comecei a minha vida em África, por Benguela. Fui trabalhar com máquinas
agrícolas e, responsável pela metade sul de Angola, tinha o meu local de
trabalho com loja e armazém.
Eu ficava sozinho na loja, com exposição de algumas
máquinas. Lá dentro o encarregado das peças, Mário Brás, que tinha um profundo
asco ao Salazar e queria ir embora para a Rússia(!), e um ajudante, na altura
chamados serventes, que era uma figura de legenda.
Joaquim (ou António? Já não tenho a
certeza do seu nome, infelizmente.). A personificação da simplicidade e
boa vontade.
Pouco tempo depois de chegar a Angola fui para a
África do Sul, por duas semanas, fazer um estágio na fábrica local da Massey
Harris, e como já tinha alugado casa deixei-a entregue ao Joaquim que lá dormia
todas as noites guardando as “preciosidades” do chefe.
No final do estágio a fábrica entregou a cada um um diploma,
constando que tinha feito o estágio, de tal a tal dia, assinado por dois
diretores, e autenticado, como era de
praxe, com um selo de lacre e duas
fitinhas de gorgorão (agora já sei
mais de coisas femininas, viram?) nas cores vermelha e amarela, as cores das
máquinas. Muito bonitinho.
Um mês depois do regresso, da sede em Luanda o patrão
mandou dizer-me que devia emoldurar o diploma e colocá-lo na loja para
valorizar a nossa organização perante os clientes. Tudo bem.
Em casa dei volta a tudo, que era pouco o que tínhamos
no princípio da nossa vida, mas o tal de diploma, aparecer é que nada.
Todos os dias, depois do trabalho ia lá a casa o
Joaquim, para ajudar a arrumar e limpar a casa, ganhando assim mais um trocado.
O Joaquim era um tipo sensacional.
O departamento de máquinas agrícolas onde eu
trabalhava, tinha na frente, a loja onde se expunha um trator, duas ou três
alfaias e a minha mesa. Ao fundo, uma passagem para o armazém de peças, e por
fim o pátio, coberto, onde se fazia algum tipo de assistência técnica, abriam
os caixotes que vinham das fábricas, se montavam as máquinas e estocavam os
restantes equipamentos que não ficavam em exposição.
O Joaquim era o mais humilde dos empregados. Fazia a
limpeza do stand e das máquinas, ajudava a carregar e descarregar equipamento,
e na sua montagem: segura aqui, cuata
aí, cabarera-ó-catita, eram os seus conhecimentos de mecânica!
De vez em quando eu chamava o Joaquim, que pressuroso
aparecia num instante.
- Joaquim vai lá dentro buscar...
Nem acabava a frase já o Joaquim desaparecia,
solícito, para ir buscar... é verdade, o quê?
Logo a seguir, ar cabisbaixo, mãos atrás das costas
segurando a primeira coisa que lhe aparecera, voltava para ouvir o resto do
recado, porque só depois de sair correndo é que se dera conta de nem ter ouvido
o que tinha que ir fazer.
Eu tentava adivinhar o que ele trazia escondido nas
mãos, atrás das costas, para o ajudar a sair daquele difícil transe.
- Joaquim! O que é que eu mandei buscar?
Ele gaguejava, olhava para mim com cara de criança que
acabou de meter o dedo no apetitoso bolo da vovó, reservado para as visitas, e
não se atrevia a falar.
Quando eu conseguia ver o que ele apanhara, por
exemplo, um martelo, dizia-lhe:
- Joaquim, eu preciso é de um martelo.
Abria um sorriso maior do que a Praia Morena. (isto
passa-se em Benguela, e como aquela praia sorria...) enchia o peito de ar,
ufano e feliz, e entregava-me o martelo. Se naquele momento nem sequer pensava
em promoção, devia sentir-se o Soba dos
Recados!
Depois de receber o martelo e pousá-lo no chão, já que
não precisava dele para nada, dizia-lhe:
- Agora, atenção, ouve bem devagar: vai lá dentro e
traz-me, sei lá, uma chave de fendas!
Assim o Joaquim cumpria diligente e humilde o seu
dever!
Foi ele que me ajudou a desencaixotar os trastes, que
saídos de Lisboa, em Angola viraram imbambas
ou bicuatas,.
Com todo o cuidado, os dois fomos desembrulhando
livros, pratos, copos e outras coisas bonitinhas que é costume dar-se de
presente de casamento, e no meio de tudo isso surgiram uns pequenos bustos, uma
dúzia de centímetros de altura, que o meu pai terá obtido na Exposição Colonial
do Porto em 1934.
Quando desembrulhei o primeiro deles o Joaquim,
arregalou os olhos, fez um ar de espanto acompanhado do clássico Ha! Ha!,
segurou numa das estatuetas, olhou, remirou e disse:
- Handá.
- O quê?
- Handá,
Chipungo
Recém chegado, eu, não fazia a menor idéia do que ele
queria dizer com Handá, mas por via
das dúvidas escrevi logo no pé do busto o que ouvi.
Desembrulhei outro. O mesmo espanto, a mesma rápida
análise:
- Quilengues.
Etnia Handá- Quipungo Etnia
Quilengues Musso *
E mais um, Cubal,
e ainda um busto feminino que escrevi como me pareceu ouvir, Ganguera. Ganguela.
Só não reconheceu de onde seria uma outra cabeça de
mulher, nem eu, que nada sei de etnografia, nem de um homem que mais tarde não
foi difícil identificar como timorense.
Etnia Cuvale Mulher Nhanheca-Humbe
Vim mais tarde a descobrir (?) que a mulher deve ser Ambó-Cuanhama
e o homem um timorense.
Ambó – Cuanhama Timorense
Bom a conversa está muito boa, mas e o diploma? Cadê o
diploma?
É verdade. Depois de me certificar que não o
encontrava, conclui que só o Joaquim saberia do seu desaparecimento, visto ser
a única pessoa que tinha a chave de nossa casa, quando tomou conta dela todos
os dias sem falhar um único, durante cerca de dois meses, desde que cheguei a
Benguela sozinho até que voltei re-casado
após o regresso da África do Sul, donde nunca, nunca, tirou uma migalha, e
além de mim e da jovem esposa só ele entrava no quarto que tinha espalhado no
chão um monte de coisas, como louças, livros, bibelôs, etc. Não só não
tínhamos móveis suficientes onde os guardar, como aguardaram a vinda da dona da
casa para arrumar o que pudesse e a seu gosto.
Ali, algures, no chão, por cima daquela tralha,
daquela, bagulhada, tinha sido guardado o diploma.
O Joaquim quando lhe falei nisso fez-se vermelho (é
verdade, sim, os pretos também coram, lá por terem a pele escura, vê-se muito
bem) e quase jurou que não tinha visto o bendito diploma.
- Joaquim! Eu quero esse diploma aqui, amanhã!
No amanhã o
diploma estava lá! Um pouco amarrotado com a viagem de ida e volta até casa do Joaquim,
claro, mas... o lacre e as fitinhas não regressaram!
Aquelas fitinhas e o lacre foram mais fortes do que a
resistência do Joaquim contra tentações! Pratos, copos e outros quejandos ele
conhecia bem, havia visto muitos toda a sua vida, mas um papel com aquele
enfeite bonito...
Resultado: não se emoldurou o diploma, não voltei a
falar nele ao pobre homem que caíra naquela terrível
tentação, guardei-o, amarrotado e sujo por muito tempo porque a história me
enternecia, e por culpa agora das nossas muitas outras viagens o diploma...
sumiu!
Ficou a saudade. Grande Joaquim! Saravá Joaquim!
N.- A história do Joaquim (ou António?) está no meu
livro “Se as Minhas Imbambas Falassem”, 2000.
*Um dos casos mais interessantes das etnias e da
ocupação de Angola deu-se precisamente em Quilengues. É sabido que a maioria do
povo angola é de origem Bantu (um disparate de palavra visto que Bantu vem
de ntu” (homem) e “ba” (plural) o que significa em língua daquela região, Ocidente
de África, todos somos Bantu!
Mas houve, séculos, ou muitos milénios atrás, também migrações
da região nordeste de África, dos povos hamitas ou camitas, cujos caracteres
antropomórficos são distintos dos Bantu: cabeça mais alongada (dolicocéfalos),
lábios menores, outra cultura, etc.
Em Quilengues se juntaram com seus gados e desde sempre
convivem, bantus Quilengues-Humbe, e
hamitas Quilengues-Muso, sem que jamais houvesse entre eles casamentos. E mais,
as suas habitações também diferem: hamitas retangulares e bantus circulares.
Se o meu amigo José Redinha, grande etnólogo de
Angola, lesse isto, certamente mandaria puxar as minhas orelhas. Algo não
estaria muito correto. Mas é do que me consigo recordar.
Um abraço lá ... para o alto, José Redinha, meu amigo.
08/08/2019
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