Histórias
da Arca do Velho
Rebusca,
varre o pó dos tempos e da memória e, volta que vira, sempre acabam por se encontrar,
bem no fundo da Arca algumas histórias que vivemos, presenciámos ou nos
contaram, nos velhos tempos, nos da Outra Senhora.
Desta
vez vamos passar pelo Alentejo, região que muito me marcou e onde conheci gente
das quais muitas histórias se podem contar. E sem sair da mesma vila ou cidade.
Gente
mais velha do que eu, porque quando por lá andei era um jovem que ainda nem
sequer às sortes tinha ido.
Um
médico, de muito boas famílias e de boas finanças, psiquiatra, alentejano de
grande cepa, quando o conheci vivia em Lisboa, e trabalhava entre outros
lugares já não sei em que hospital psiquiátrico, no antigo Hospital de
Rilhafoles, depois Hospital Miguel Bombarda ou, na altura, no moderno Júlio de
Matos, ambos em Lisboa.
Bem
casado, lembro bem do carro em que ele aparecia, que me deixavam os olhos
vermelhos de, quase, inveja, um Delahaye 1938. Inveja, não, porque não tinha
nem idade, nem nunca tive grana para uma maravilha destas:
Igualzinho, só que de outra cor. Creio que azul.
O
nosso amigo entre os seus serviçais tinha um que era também seu motorista, e
algumas criadas, por uma das quais o motorista se apaixonou, e decidiram
casar. Amável, sempre, o patrão, além de apadrinhar o ato, como presente deixou
que os noivos fossem no seu carro passar a noite de núpcias num hotel.
É
evidente que os noivos estavam apaixonados, mas o motorista, já na estrada,
olhava para a SUA parceira e o excitamento crescia.
Não
aguentou. Onde encontrou um lugarzinho para estacionar, o menos possível à
vista de outros passantes, salta em cima da mulher e começa a função que,
normalmente, seria prevista para quando chegassem ao hotel.
Estavam
no bem-bom quando a polícia vê por ali um carrão, raro e caro, e decide
investigar! Quando chega perto depara com aquela, indecente, cena conjugal, e acaba-lhes
com a farra.
Logo
vê que pelo aspeto dos noivos, eles não poderiam ser os donos daquela máquina.
Documentos? Nada. Levam-nos para a esquadra (delegacia no Brasil) mais próxima,
onde são interrogados.
Explicado
o caso, telefonam ao patrão que confirma que lhes emprestou o carro, e portanto
não havia nada errado!
O
errado foi o ato em si. A pobre da mulher, super envergonhada, chorava, e
parece que não quis mais brincar de marido e mulher. Pelo menos durante
muito tempo!
O
nosso médico era uma pessoa com graça. Até a contar as histórias que lhe tinham
acontecido.
Uma
vez foi passar uns dias de descanso na Coruña. No melhor hotel. Depois do
jantar a mulher foi ao quarto fazer alguma toalete e ele foi para o bar tomar
um café e beber um cognac.
Pediu
o melhor, na altura o Carlos I, da casa Pedro Domecq. O barman
leva-lhe o balão, a lamparina de álcool para o aquecer, tudo como mandam os
preceitos para se apreciar completamente um bom cognac, e quando vê que o balão
está na temperatura certa coloca-lhe dentro a bebida e serve-a.
O
nosso amigo, recostado numa poltrona, leva o balão ao nariz, aspira fundo e...
caiu para o lado.
Foi
um corre-corre naquele bar e hotel. Chamaram a senhora à pressa, mas ele não
levou tempo a recompor-se. Só que não bebeu o tão desejado, e bom, cognac!
Naquela
terra vivia um homem, já velho, que desde há muitos anos, de manhã, mal se
levantava, atravessava a rua, ia à tasca da frente matar o bicho¸ beber
um copo de 2 dl de aguardente. Depois, durante o dia continuava nesta
farra e bebia, quando pouco, 5 litros de vinho e mais uns tantos copos da tal
bagaceira.
85
anos, um dia sentiu-se mal, nem se levantou e chamaram o médico, que conhecia a
ficha do paciente, e a única coisa que pôde fazer foi dizer-lhe:
-
O senhor agora não pode beber mais de 1 litro de vinho por dia e nada de
aguardente.
Resposta
do agonizante (com sotaque):
-
Atão pa beberi tã pouco nã bebo nada!
No dia seguinte apagou!
Eu tive um colega, alto fortão, cavaleiro
tauromáquico, de quem fui muito amigo. Um dia estávamos a comer já não sei o
que, e a beber uns copos – normalmente do tinto – e o dito colega foi abusando
do álcool e já estava a trocar as pernas e as voltas.
Recomendaram que tomasse um Alka-Seltzer, aquela
pastilhona grande efervescente, que tem uma bela atuação em quem já está com os
copos.
- Tome uma coisa destas. Dissolve
em meio copo de água que logo ficas bom.
Todo macho, responde:
- Eu não preciso de tomar com
água. Tomo mesmo direto.
Meteu na boca, engoliu e quando aquilo começou a
efervescer no estômago, o coitado saltava, a sentir-se mal, e nós a vermos que
lhe ia dar uma coisa!
Quando parou, estava estafado, mas a bebedeira
havia passado!
Naquele
café-bar lá da terra, talvez o único daquela magnífica terra, que continua a
ser O Café, havia por cima de uma das portas que davam para a rua um magnífico painel
de azulejos que era frequentemente declamado pelos amantes da bebida!
Sempre
que algum novato ou de outra terra ali aparecia, obrigavam-no a ler, em voz
alta os famosos mandamentos. E depois, arcar com 10 copos de vinho!
Um
dos habituais frequentadores, como toda a gente dali, era um senhor que tinha
um problema na coluna, e o coitado andava bastante torcido. Pois aquela gente
até às custas dele queriam tirar sarro e mandavam-no ler os mandamentos que
estavam em posição elevada, obrigando o homem a torcer-se todo para ler. Por
fim já entrava a recitar. Tanta vez o tinham obrigado a ler que os tinha
decorado! Já não precisava de se torcer!
Um
tradicional proprietário dali, com casa em Lisboa e na vila, em certas épocas do
ano ia todos os dias para a herdade e levava um ajudante.
Tinha
um velho carrinho de 2 lugares conversível, aí dos anos 30, que nunca avariava.
Pois
este senhor, pai de amigos meus, bebia, SEMPRE, 5 litros de vinho ao almoço! E
quando se metia no carro, sabendo que via tudo em duplicado, seguia estrada
fora com uma das mãos a tapar um olho. Nunca teve um acidente, nem andava a
mais de 30 ou 40 kms/hora.
Quando
ia para a herdade parava no bar e mandava o ajudante ir lá dentro buscar um
garrafão de vinho, o tal de 5 litros, para o almoço, que preparavam lá no
campo.
O
almocinho pronto, abrem o garrafão que não levava rótulo algum e.. para grande
espanto, no bar tinham-se enganado e entregue um garrafão de água!
Olha os velhos garrafões! Como consumi disto!!!
O
nosso amigo fica furioso, manda o ajudante, a pé, à vila, reclamar e trocar o
garrafão e ele ficou sentado à espera da volta para almoçar.
Comeram
tudo frio, do vinho não ficou pinga, e regressaram no carro, um dos olhos
tapados.
Havia
lá na terra, onde eram quase todos primos, dois com exatamente o mesmo nome.
Ambos de saudáveis finanças, um engenheiro agrónomo e o outro regente agrícola.
O
regente era um sujeito meio caladão enquanto o primo era de uma boa disposição
contagiante.
Circulava
por lá um pobre, meio louco, que vivia do que lhe davam. Um pobre diabo que só
perdia a cabeça quando lhe chamavam um nome, alcunha que lhe tinham posto
(apelido), e nessas ocasiões insultava tudo e todos. Depois acalmava e voltava
a ser o pobre e triste louco.
Pois
o tal primo, gozador, encontra-o na rua e diz-lhe que vá a sua casa, um
palacete muito bonito, que a mulher tem umas roupas para lhe dar. O pobre ficou
contente e para lá vai.
A
mulher tinha sido avisada de que o “n”, não lembro já que alcunha o desgraçado
teria, iria aparecer, mas que ela primeiro perguntasse se ele era mesmo o tal.
Tudo
bem. O pobre bate à porta, a dona da casa sabendo quem era foi recebê-lo e
pergunta-lhe se ele é o “n”.
O
que foste fazer! O louco perde a cabeça, insulta a senhora, grita barafusta e
foi embora.
Quando
o marido voltou a casa perguntou se ele tinha lá estado!
Noutra
ocasião quando o casal se foi deitar ele contou que andavam uns bandoleiros na
região e já tinham assaltado umas casas. Só não disse que tinha colocado em
baixo da cama umas bombinhas de carnaval que dão um forte estouro quando
rebentam.
De
repente começam as bombas a estourar e a pobre da senhora convenceu-se que
estavam a ser assaltados!
Além
de ser rico e trabalhar em Lisboa como agrônomo, era também criador de touros bravos,
que fornecia para as touradas.
Um
dia convidou o grande, o maior toureiro português, Manuel dos Santos, para ir
lá ver o gado. (Eu até estive em casa dele, no almoço que ofereceu ao
toureiro.)
Depois
do almoço fomos para a praça de touros para ele mostrar alguns dos seus garraios,
e para os tentar tinha lá um ou dois bandarilheiros.
Queria
mostrar ao mestre Manuel dos Santos a índole dos animais.
Praça
de touros pequena, com lotação para duas mil e poucas pessoas, construída em
1918, que continua, até hoje de pé e a funcionar.
A
certa altura ele chama-me para ir com ele até à porta por onde saíam os touros,
e fazer uma partida a todos os que estavam atrás da barreira, isto é, soltar um
dos garraios por dentro da trincheira em vez de lhe abrir a porta para a arena.
Mas
este sujeito fazia tudo na brincadeira, e... mal feito. O garraio vira-se para
mim, deu uma forte marrada na porta que eu segurava, e fui eu o primeiro a
saltar para a arena para me livrar duma boa surra.
Todos
riram muito, saltaram para a arena e o único que saiu esfolado com a
brincadeira fui eu.
Foi
ao lado desta Praça de Touros que vi um dia um circo, modesto, daqueles
itinerantes, com duas ou três carroças, mas de que recordo, entre diversas
fases dum sempre interessante espetáculo, quando o palhaço pobre a certa
altura com aqueles olhos muito pintados como se estivesse a chorar, se senta na
borda da arena, prende um serrote entre os joelhos e com um arco de violino
tocou, no serrote, de forma magnífica, As Czardas de Monti. Sensacional.
Vão
muitos anos passados por cima de todas estas histórias. Talvez uns 70. Mas é um
prazer relembrar tantas aventuras, todas autênticas.
Não
menciono o nome dos “autores” de tudo isto, mas ainda sei, perfeitamente, quem
era cada um deles e os recordo com saudade.
Que
estejam, todos, no Grande Descanso.
18/08/2019
Acho muita graça. Gostei muito de ler. Sempre a escrever bem e com uma maneira agradável. Bj Ana
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