domingo, 29 de setembro de 2019



AMIGOS - 37
Mais um irmão de toda a Vida

Já os nossos pais eram amigos em solteiros. Crescemos juntos, entrámos juntos para o Liceu, cada um seguiu a sua vida, mas a magia de África nos uniu ainda mais.
Uma magia que não tem a ver com a cor da pele dos indivíduos. Quem viveu África esqueceu até da cor de alguns com quem partilhou vivências inesquecíveis, porque a atmosfera era outra.
Tanto se dormia num bom hotel, como no chão, no meio do mato, encostado à cabana de algum nativo. Não era o mesmo luxo, mas um luxo a que poucos tiveram acesso, na mesma serenidade e certeza da mesma atenção e confiança, além da boa disposição e natural acolhimento que os povos nos faziam.
Tudo simples, alegre, natural. Melhor que os 5 estrelas. Ali, em noites bonitas víamos miríades delas!
Para recordar um pouco mais estas vivências, temos de voltar à caça.
1958, outro visitante, João, solteirão ainda, experiente caçador na Europa, como não era diretor ou dono de empresa teve que ficar inspecionando Angola durante seis meses. Tempo mais que suficiente para por ela fatalmente se apaixonar. Várias e profundas foram até as suas paixões, terrestres e aéreas. Físicas e psíquicas! Angola é assim, todos tinham que se apaixonar por ela e por algo mais. Sobrava paixão naquela terra.
Numa das primeiras caçadas em que participou, equipado com uma caçadeira calibre 12, dois canos, porque os animais visados eram de pequeno porte, teve o seu momento de glória. Ninocas conduzindo o jeep que corria num terreno irregular, João em pé na traseira no meio de dois companheiros, todos ferozmente agarrados à estrutura tubular que sustenta a capota, retirada e dobrada no fundo do carro, vê aparecerem no alto de uma pequena colina dois veados! Nome genérico dado às diversas espécies de antílopes de porte médio, pouco maiores do que uma cabra, e naquele dia, concretamente os Golungos (Tragelaphus scriptus) muito bonitos, com cerca de noventa centímetros de altura de espádua e uns cinquenta quilos de peso.



Os dois veados destacando-se imóveis lá no topo, numa posição quase desafiante, o capim alto, João sem se largar para não cair, o carro parado, instinto treinado, aponta, sai o primeiro tiro, um veado some, segundo tiro e o segundo veado some também.
- Hurraaah! Um duplo aos veados!
Mal tinha acabado de pronunciar este grito de justificada satisfação e glória, o carro arranca e chegou a vez do jeep por sua vez cair num buraco e tombar de lado! João, como os outros cai também, e fica com os canos da arma, felizmente já descarregada, pressionando-lhe a barriga. Um parceiro por baixo, outro por cima, uma pequena confusão que logo se resolve, todos a quererem levantar-se o mais rápido possível. Num instante estão de pé, cada qual procurando certificar-se que nada mais que uma ou outra pancada ou esfoladela, coisa comum, os tinha atingido. Todos, exceto o João, que continuava deitado, a gemer!
- O que foi? Onde te dói? Dá cá a mão que a gente te ajuda a levantar.
Os companheiros preocupados.
João levanta-se bem devagar, confere com a mesma lentidão a completa integridade do físico e quando se certifica que nada lhe tinha acontecido, respira fundo.
- Estás ferido?
- Não. Não. Graças a Deus.
- Então porque estavas a gemer?
- Eu estava “à rasca” naquela posição, os canos da arma enfiados na barriga, sem saber se tinha quebrado alguma coisa, achei melhor começar logo a gemer, para o que desse e viesse!...
Gargalhada geral. Eram uma animação aqueles incidentes!
Foram procurar os dois veados que deveriam estar caídos a vinte ou trinta metros dali. A elevação onde foram vistos dava para uma profunda barreira em acentuado desnível, talvez com cinquenta metros até à base, onde por sorte o jeep não caiu porque o tal buraco o segurou primeiro! E os dois veados “abatidos” num brilhante duplo de mestre? Onde estão? Bem os procuraram, mas é de crer que eles se assustaram com os tiros, fugiram barreira abaixo, sãos e salvos, e até hoje não consta que tivessem sido encontrados! Um grande duplo aos veados!
Mais uma aventura de caça que dava muita luta, muita conversa, anos de recordações, muito boa disposição no regresso a casa, ao fim do dia, quase sempre com aquela paradinha obrigatória no mesmo bar que ficava a uns dez quilómetros de Luanda, no Cacuaco, uma pequena enseada de pescadores. Esse bar, misto de casa comercial, tasca, restaurante, etc., era paragem compulsória para matar sede e fome, e fechar o dia comentando com tremenda animação aquela e outras caçadas. Os petiscos habituais eram as gambas, o magnífico camarão grande de Angola, uma delícia, choquinhos en su tinta, e outras pequenas maravilhas que permitiam que a cerveja ainda melhor corresse pelas gargantas poeirentas e ressequidas.
A cerveja de Angola, naqueles tempos era a Cuca, onde ambos trabalhávamos. E, para quem voltasse daquela zona de caça era quase obrigado a ir beber Cuca no Cacuaco. A cacafonia ajudava a divertir os bebedores, atraídos sobretudo pelos petiscos, sem dúvida. Quantas vezes se chegava ali ainda de dia, só para lavar a garganta, cheia de pó do mato, e saia-se já noite entrada, bem petiscado e bem bebido. As tais paradinhas!  Mas ao chegar a casa ainda havia muito a fazer: dividir e preparar a carne que se trazia, quando se trazia, limpar e arrumar as espingardas, e por fim tomar um belo banho!
Como tudo aquilo era bom...


Em 2002, quando me aventurei pelos ensaios pinturísticos, fiz-lhe estes dois ensaios de retratos, um deles lembrando o famoso “duplo”, o outro com uma pacaça no canto, lembrando as inúmeras vezes que andámos atrás delas.
Em 1961 telefonou-me, de Lisboa para Luanda, convidando-me para assumir a administração duma empresa familiar, no Norte de Portugal. Angola era já a minha terra (?), e voltar a Portugal, mesmo com uma situação que se apresentava promissora estava fora do meu mundo. Tive, depois de muito lhe agradecer, que rejeitar a oferta.
Trocámos durante anos razoável correspondência e foi ele quem me incentivou a escrever. Sobretudo as histórias das caçadas. Comecei a escrever por aí e não parei mais.
Grande amigo, grande irmão, teve um fim de vida muito sofrido, triste.
Foi-se embora há poucos dias, e ainda me custa muito falar dele. Deixou um imenso vazio, muita saudade e o coração ferido pelo que sabíamos que sofrera.
Descansa agora, meu querido João Cardoso Salgado. Jamais te vou esquecer e, com saudade, rir das nossas aventuras.

07/08/2019

Um comentário: