segunda-feira, 23 de setembro de 2019



Histórias da Baía dos Tigres
Angola


Lá... bem no sul de Angola, perto da foz do rio Cunene, há uma formação de areia, uma duna do deserto, em pleno mar! Durante muitos anos foi ligada a terra, formando uma baía a que se deu o nome de Baía dos Tigres, não porque lá tenha aparecido alguma vez um tigre, mas pela formação das areias do deserto, junto ao mar, sempre batidas por ventos fortes, que acabou separando os grãos da areia conforme o seu peso: claras e escuras dando a sensação de representar a pele dum tigre.

Esta foto não representa bem mas espera-se que dê uma ideia

Toda aquela costa é batida pela rápida corrente de Benguela e seus constantes ventos e por mais de uma vez separou a “península” do continente, transformando-a numa ilha, como está hoje.
Ali apareciam muita vez pinguins e focas e o mar era de uma generosidade incomparável.

Como era                              e como está

Mar muito rico em peixe de primeiríssima qualidade, no tempo colonial a Baía dos Tigres era um lugar cheio de pescadores, algumas pequenas indústrias de secagem e de farinha de peixe, edifícios da administração - que não perdia a oportunidade de sacar uns impostos aos homens do mar - tinha igreja e até pista para aviões, onde regularmente iam os famosos Dragon, que todos ali acabaram  com as rajadas de vento transversal que passava entre as casas.
Estes aviões, magníficos, de construção tubular e forrados de lona, para 7 passageiros, acabaram sendo ali desmantelados e levados em traineiras para... para sucata.
Era razoável a colónia de pescadores que fóra da pesca nada tinham o que fazer, nem para onde ir.
Cerveja... bebia-se bem, não havendo outros atrativos!
Um dia fui visitar aquela comunidade, boa cliente da Cuca. Era sábado. Fui de avião alugado o que causou enorme espanto naquela gente. Coisa rara. Logo uns quantos acorreram a casa do distribuidor da cerveja, que amável, nos recebeu em sua casa, porque todos queriam ver quem seriam os alienígenas!
Após os óbvios cumprimentos e “como andam as coisas” – pergunta de grande profundidade socio-filosófica – a  primeira coisa que o anfitrião fez foi perguntar o que queríamos para almoçar: camarão, mexilhão, caranguejos, santolas do fundo do mar, peixe acabadinho de pescar, enfim, um sem número de iguarias que ainda hoje me fazem crescer água no bico.
E entretanto fluíam já as histórias daquela gente que vivia quase isolada do resto do mundo. Todos tinham alguma coisa para contar, o que não havia era ouvintes! Lembro bem de duas delas.
Toda a ilha estava assente em cima de areia, como está, de modo que mesmo se chovesse muito, o que jamais acontecia, não havia perigo de inundação; as areias absorviam logo tudo. Assim mesmo as casas eram construídas sobre palafitas de cimento para ficaram afastadas da areia.
Um dos “causos”: uns quantos pescadores, nos fins de semana, juntavam-se para jogar cartas. A famosa bisca lambida, ou somente bisca, e há quem lhe chame sueca.
Os jogadores sentavam-se, dentro de casa, à volta duma mesa de jogo, e cada um colocava a seu lado três - 3 - caixas de cerveja de 12 garrafas de 0,6 litros cada o que dava uns 10 litros por caixa.
Durante o jogo ninguém se podia levantar para... “verter águas”, e o passatempo só terminava quando as cervejas estavam todas bebidas!
Solução para ir descarregando aqueles 30 litros que iam bebendo: cada um colocava o seu “vertedouro natural” enfiado numa mangueira com o comprimento suficiente para despejar o líquido fora de casa, naquelas infindas e absorventes areias!
E assim aqueles maduros pescadores jogavam a tarde toda sem se levantarem, quase que nem no fim do jogo, porque os 30 litros bebidos dificultavam demasiado o esforço de se levantarem, a movimentação, e certamente o carteado!
Mas era uma das raras, raríssimas, distrações daquela terra sem distração alguma, e tenho ideia de que isso acontecia quase todos os fins de semana!
Aqueles que por obras valerosas se iam assim do tédio libertando, e cantando espalhavam por toda a parte, porque a tanto os ajudava o seu  engenho e arte... e o álcool.
Outra história contada aos visitantes:
Um dos homens que acorreu para ver quem seriam os estranhos ali chegados, trabalhava numa das pescarias. Sobre o baixote, aí talvez menos de 1,60 m., quis contar também a sua vivência naquele desterro.
Vinha um dia, ainda no continente, de jeep, quando avista, aparentemente dormindo na areia, uma foca. E foca naquela terra que só raras vezes era abastecida de carne, cheirava a bom petisco. Ótimo.
Aproxima-se, pára o carro, deixa-o a trabalhar, e como não carregava nenhuma arma de fogo, lembrou-se de levar a chave de rodas e com ela dar uma marretada na cabeça do bicho que ressonava tranquilo.
Devagar, andando de mansinho por detrás, mas o caminhar na areia sempre faz um barulhinho que as focas conhecem e distinguem desde antes mesmo de terem nascido.
Ao chegar perto, arma já levantada para dar o golpe na pobre bichinha, esta sentiu o perigo, deu um berro e ergueu-se.
O nosso amigo, o preposto caçador, contava então:
- Aproximei-me muito devagar, e quando estava quase a poder dar-lhe a martelada, ela se pôs em pé e foi quando eu vi que era enorme. Aí da minha altura!
Os presentes, todos da terra, que o conheciam bem, quase em uníssono disseram:
- Se era do teu tamanho não era muito grande. Era até pequena.
O “caçador” engoliu o comentário e não gostou que lhe tivessem chamado baixinho. Corou e emburrou!
Foi uma gargalhada geral, quebrada logo de seguida com a chegada dos mariscos que se tinham ido buscar, e com o correr da Cuca que eu, ali representando a Companhia, liberei com generosidade!
A independência de Angola, fez desaparecer toda aquela atividade de pesca. Não ficou ninguém e a povoação entrou em total ruína.
Houve portugueses que conseguiram de lá sair nas suas traineiras e chegar a Portugal. Um feito e tanto.
Hoje lembra aquelas vilas do Oeste americano construídas com a febre do ouro e abandonadas quando este acabou!

Ruínas! Casas dos antigos funcionários, resquícios da pista de aviação,
e ao fundo a vila dos pescadores, vendo-se chaminés de fábricas.

É uma pena e um enorme desperdício. Mar riquíssimo de peixe, crustáceos – como o tão saudoso como delicioso caranguejo dos fundos, pescado a uns 800 metros de profundidade... huumm... – e marisco, que bem explorado podia dar interessantes divisas para Angola.
Mas... onde estão os angolanos interessados???

15/08/2019

6 comentários:

  1. África devia ser recolonizada!
    Abraços do António

    Muito gostei de ler
    Obg tio Chico🌻
    Ga

    Francisco,
    Há gente por lá que ainda não desistiu de trazer a Baía dos Tigres à vida.Haja esperança!
    Abraço
    APM

    Francisco Amorim,
    Nunca se poderá dizer que a tua vida foi uma mesmice...
    Aquele abraço
    Eduarda.

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  2. Em que anos foram construídas as habitações e os edifícios na Baía dos Tigres, por favor?

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    Respostas
    1. Não tenho ideia. A primeira vez que lá fui, 1958, já era uma povoação há tempos estabelecida, com economia boa proveniente da pesca, aliás a única atividade

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    2. Muito obrigado. Li o livro " A menina do deserto" de Manuela Cerqueira. Fiquei fascinado com aquele retrato de uma vida tão invulgar e contudo, tão cheia de coisas comuns.

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  3. A celebre pescada do Cabo que se consumia em Angola e não só, e era importada da Africa do Sul, vinham os barcos Sul Africanos pescar à Baía dos Tigres.

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  4. Um problema que existia eram as moscas Tínhamos que usar uma mão para comer e outra para enxotar as moscas O falecido Sebastião Coelho do Rádio Clube do Huambo fez reportagens nos anos 50

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