Histórias da
Baía dos Tigres
Angola
Lá... bem no sul de Angola,
perto da foz do rio Cunene, há uma formação de areia, uma duna do deserto, em
pleno mar! Durante muitos anos foi ligada a terra, formando uma baía a que se
deu o nome de Baía dos Tigres, não porque lá tenha aparecido alguma vez um
tigre, mas pela formação das areias do deserto, junto ao mar, sempre batidas
por ventos fortes, que acabou separando os grãos da areia conforme o seu peso:
claras e escuras dando a sensação de representar a pele dum tigre.
Esta
foto não representa bem mas espera-se que dê uma ideia
Toda aquela
costa é batida pela rápida corrente de Benguela e seus constantes ventos e por
mais de uma vez separou a “península” do continente, transformando-a numa ilha,
como está hoje.
Ali apareciam muita
vez pinguins e focas e o mar era de uma generosidade incomparável.
Como
era e como
está
Mar muito rico
em peixe de primeiríssima qualidade, no tempo colonial a Baía dos Tigres era um
lugar cheio de pescadores, algumas pequenas indústrias de secagem e de farinha
de peixe, edifícios da administração - que não perdia a oportunidade de sacar
uns impostos aos homens do mar - tinha igreja e até pista para aviões, onde
regularmente iam os famosos Dragon, que todos ali acabaram com as rajadas de vento transversal que
passava entre as casas.
Estes aviões,
magníficos, de construção tubular e forrados de lona, para 7 passageiros,
acabaram sendo ali desmantelados e levados em traineiras para... para sucata.
Era razoável a
colónia de pescadores que fóra da pesca nada tinham o que fazer, nem para onde
ir.
Cerveja...
bebia-se bem, não havendo outros atrativos!
Um dia fui
visitar aquela comunidade, boa cliente da Cuca. Era sábado. Fui
de avião alugado o que causou enorme espanto naquela gente. Coisa rara. Logo
uns quantos acorreram a casa do distribuidor da cerveja, que amável, nos
recebeu em sua casa, porque todos queriam ver quem seriam os alienígenas!
Após os óbvios
cumprimentos e “como andam as coisas” – pergunta de grande profundidade
socio-filosófica – a primeira coisa que
o anfitrião fez foi perguntar o que queríamos para almoçar: camarão, mexilhão,
caranguejos, santolas do fundo do mar, peixe acabadinho de pescar, enfim, um
sem número de iguarias que ainda hoje me fazem crescer água no bico.
E entretanto fluíam
já as histórias daquela gente que vivia quase isolada do resto do mundo. Todos
tinham alguma coisa para contar, o que não havia era ouvintes! Lembro bem de
duas delas.
Toda a ilha
estava assente em cima de areia, como está, de modo que mesmo se chovesse
muito, o que jamais acontecia, não havia perigo de inundação; as areias
absorviam logo tudo. Assim mesmo as casas eram construídas sobre palafitas de
cimento para ficaram afastadas da areia.
Um dos “causos”:
uns quantos pescadores, nos fins de semana, juntavam-se para jogar cartas. A
famosa bisca lambida, ou somente bisca, e há quem lhe chame sueca.
Os jogadores
sentavam-se, dentro de casa, à volta duma mesa de jogo, e cada um colocava a
seu lado três - 3 - caixas de cerveja de 12 garrafas de 0,6 litros cada o que
dava uns 10 litros por caixa.
Durante o jogo
ninguém se podia levantar para... “verter águas”, e o passatempo só terminava
quando as cervejas estavam todas bebidas!
Solução para ir
descarregando aqueles 30 litros que iam bebendo: cada um colocava o seu
“vertedouro natural” enfiado numa mangueira com o comprimento suficiente para
despejar o líquido fora de casa, naquelas infindas e absorventes areias!
E assim aqueles maduros
pescadores jogavam a tarde toda sem se levantarem, quase que nem no fim do jogo,
porque os 30 litros bebidos dificultavam demasiado o esforço de se levantarem, a
movimentação, e certamente o carteado!
Mas era uma das
raras, raríssimas, distrações daquela terra sem distração alguma, e tenho ideia
de que isso acontecia quase todos os fins de semana!
Aqueles que
por obras valerosas se iam assim do tédio libertando, e cantando espalhavam por
toda a parte, porque a tanto os ajudava o seu engenho e arte... e o álcool.
Outra história
contada aos visitantes:
Um dos homens
que acorreu para ver quem seriam os estranhos ali chegados, trabalhava numa das
pescarias. Sobre o baixote, aí talvez menos de 1,60 m., quis contar também a
sua vivência naquele desterro.
Vinha um dia,
ainda no continente, de jeep, quando avista, aparentemente dormindo na areia,
uma foca. E foca naquela terra que só raras vezes era abastecida de carne,
cheirava a bom petisco. Ótimo.
Aproxima-se, pára
o carro, deixa-o a trabalhar, e como não carregava nenhuma arma de fogo,
lembrou-se de levar a chave de rodas e com ela dar uma marretada na cabeça do
bicho que ressonava tranquilo.
Devagar, andando
de mansinho por detrás, mas o caminhar na areia sempre faz um barulhinho que as
focas conhecem e distinguem desde antes mesmo de terem nascido.
Ao chegar perto,
arma já levantada para dar o golpe na pobre bichinha, esta sentiu o perigo, deu
um berro e ergueu-se.
O nosso amigo, o
preposto caçador, contava então:
- Aproximei-me
muito devagar, e quando estava quase a poder dar-lhe a martelada, ela se pôs em
pé e foi quando eu vi que era enorme. Aí da minha altura!
Os presentes,
todos da terra, que o conheciam bem, quase em uníssono disseram:
- Se era do
teu tamanho não era muito grande. Era até pequena.
O “caçador”
engoliu o comentário e não gostou que lhe tivessem chamado baixinho. Corou e emburrou!
Foi uma
gargalhada geral, quebrada logo de seguida com a chegada dos mariscos que se
tinham ido buscar, e com o correr da Cuca que eu, ali
representando a Companhia, liberei com generosidade!
A independência
de Angola, fez desaparecer toda aquela atividade de pesca. Não ficou ninguém e
a povoação entrou em total ruína.
Houve
portugueses que conseguiram de lá sair nas suas traineiras e chegar a Portugal.
Um feito e tanto.
Hoje lembra
aquelas vilas do Oeste americano construídas com a febre do ouro e abandonadas
quando este acabou!
Ruínas!
Casas dos antigos funcionários, resquícios da pista de aviação,
e
ao fundo a vila dos pescadores, vendo-se chaminés de fábricas.
É uma pena e um
enorme desperdício. Mar riquíssimo de peixe, crustáceos – como o tão saudoso
como delicioso caranguejo dos fundos, pescado a uns 800 metros de
profundidade... huumm... – e marisco, que bem explorado podia dar interessantes
divisas para Angola.
Mas... onde
estão os angolanos interessados???
15/08/2019
África devia ser recolonizada!
ResponderExcluirAbraços do António
Muito gostei de ler
Obg tio Chico🌻
Ga
Francisco,
Há gente por lá que ainda não desistiu de trazer a Baía dos Tigres à vida.Haja esperança!
Abraço
APM
Francisco Amorim,
Nunca se poderá dizer que a tua vida foi uma mesmice...
Aquele abraço
Eduarda.
Em que anos foram construídas as habitações e os edifícios na Baía dos Tigres, por favor?
ResponderExcluirNão tenho ideia. A primeira vez que lá fui, 1958, já era uma povoação há tempos estabelecida, com economia boa proveniente da pesca, aliás a única atividade
ExcluirMuito obrigado. Li o livro " A menina do deserto" de Manuela Cerqueira. Fiquei fascinado com aquele retrato de uma vida tão invulgar e contudo, tão cheia de coisas comuns.
ExcluirA celebre pescada do Cabo que se consumia em Angola e não só, e era importada da Africa do Sul, vinham os barcos Sul Africanos pescar à Baía dos Tigres.
ResponderExcluirUm problema que existia eram as moscas Tínhamos que usar uma mão para comer e outra para enxotar as moscas O falecido Sebastião Coelho do Rádio Clube do Huambo fez reportagens nos anos 50
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