AMIGOS - 37
Mais um irmão de toda a
Vida
Já os nossos pais
eram amigos em solteiros. Crescemos juntos, entrámos juntos para o Liceu, cada
um seguiu a sua vida, mas a magia de África nos uniu ainda mais.
Uma magia que não
tem a ver com a cor da pele dos indivíduos. Quem viveu África esqueceu até da
cor de alguns com quem partilhou vivências inesquecíveis, porque a atmosfera
era outra.
Tanto se dormia
num bom hotel, como no chão, no meio do mato, encostado à cabana de algum
nativo. Não era o mesmo luxo, mas um luxo a que poucos tiveram acesso, na mesma
serenidade e certeza da mesma atenção e confiança, além da boa disposição e
natural acolhimento que os povos nos faziam.
Tudo simples,
alegre, natural. Melhor que os 5 estrelas. Ali, em noites bonitas víamos
miríades delas!
Para recordar um
pouco mais estas vivências, temos de voltar à caça.
1958, outro
visitante, João, solteirão ainda, experiente caçador na Europa, como não era
diretor ou dono de empresa teve que ficar inspecionando
Angola durante seis meses. Tempo mais que suficiente para por ela fatalmente se
apaixonar. Várias e profundas foram até as suas paixões, terrestres e aéreas. Físicas
e psíquicas! Angola é assim, todos tinham que se apaixonar por ela e por algo
mais. Sobrava paixão naquela terra.
Numa das
primeiras caçadas em que participou, equipado com uma caçadeira calibre 12,
dois canos, porque os animais visados eram de pequeno porte, teve o seu momento
de glória. Ninocas conduzindo o jeep que corria num terreno irregular, João em
pé na traseira no meio de dois companheiros, todos ferozmente agarrados à
estrutura tubular que sustenta a capota, retirada e dobrada no fundo do carro,
vê aparecerem no alto de uma pequena colina dois veados! Nome genérico dado às diversas espécies de antílopes de
porte médio, pouco maiores do que uma cabra, e naquele dia, concretamente os Golungos (Tragelaphus scriptus) muito
bonitos, com cerca de noventa centímetros de altura de espádua e uns cinquenta
quilos de peso.
Os dois veados destacando-se imóveis lá no topo,
numa posição quase desafiante, o capim alto, João sem se largar para não cair, o
carro parado, instinto treinado, aponta, sai o primeiro tiro, um veado some,
segundo tiro e o segundo veado some também.
- Hurraaah! Um
duplo aos veados!
Mal tinha acabado
de pronunciar este grito de justificada satisfação e glória, o carro arranca e chegou
a vez do jeep por sua vez cair num buraco e tombar de lado! João, como os
outros cai também, e fica com os canos da arma, felizmente já descarregada,
pressionando-lhe a barriga. Um parceiro por baixo, outro por cima, uma pequena
confusão que logo se resolve, todos a quererem levantar-se o mais rápido
possível. Num instante estão de pé, cada qual procurando certificar-se que nada
mais que uma ou outra pancada ou esfoladela, coisa comum, os tinha atingido.
Todos, exceto o João, que continuava deitado, a gemer!
- O que foi?
Onde te dói? Dá cá a mão que a gente te ajuda a levantar.
Os companheiros preocupados.
João levanta-se
bem devagar, confere com a mesma lentidão a completa integridade do físico e
quando se certifica que nada lhe tinha acontecido, respira fundo.
- Estás
ferido?
- Não. Não.
Graças a Deus.
- Então porque
estavas a gemer?
- Eu estava “à
rasca” naquela posição, os canos da arma enfiados na barriga, sem saber se
tinha quebrado alguma coisa, achei melhor começar logo a gemer, para o que
desse e viesse!...
Gargalhada geral.
Eram uma animação aqueles incidentes!
Foram procurar os
dois veados que deveriam estar caídos a vinte ou trinta metros dali. A elevação
onde foram vistos dava para uma profunda barreira em acentuado desnível, talvez
com cinquenta metros até à base, onde por sorte o jeep não caiu porque o tal
buraco o segurou primeiro! E os dois veados “abatidos” num brilhante duplo de
mestre? Onde estão? Bem os procuraram, mas é de crer que eles se assustaram com
os tiros, fugiram barreira abaixo, sãos e salvos, e até hoje não consta que
tivessem sido encontrados! Um grande duplo aos veados!
Mais uma aventura
de caça que dava muita luta, muita conversa, anos de recordações, muito boa
disposição no regresso a casa, ao fim do dia, quase sempre com aquela paradinha obrigatória no mesmo bar que
ficava a uns dez quilómetros de Luanda, no Cacuaco, uma pequena enseada de
pescadores. Esse bar, misto de casa comercial, tasca, restaurante, etc., era
paragem compulsória para matar sede e fome, e fechar o dia comentando com
tremenda animação aquela e outras caçadas. Os petiscos habituais eram as gambas, o magnífico camarão grande de
Angola, uma delícia, choquinhos en su
tinta, e outras pequenas maravilhas que permitiam que a cerveja ainda
melhor corresse pelas gargantas poeirentas e ressequidas.
A cerveja de
Angola, naqueles tempos era a Cuca,
onde ambos trabalhávamos. E, para quem voltasse daquela zona de caça era quase
obrigado a ir beber Cuca no Cacuaco. A cacafonia ajudava a
divertir os bebedores, atraídos sobretudo pelos petiscos, sem dúvida. Quantas
vezes se chegava ali ainda de dia, só para lavar a garganta, cheia de pó do
mato, e saia-se já noite entrada, bem petiscado e bem bebido. As tais paradinhas! Mas ao chegar a casa ainda havia muito a
fazer: dividir e preparar a carne que se trazia, quando se trazia, limpar e
arrumar as espingardas, e por fim tomar um belo banho!
Como tudo aquilo
era bom...
Em 2002, quando
me aventurei pelos ensaios pinturísticos, fiz-lhe estes dois ensaios de
retratos, um deles lembrando o famoso “duplo”, o outro com uma pacaça no canto,
lembrando as inúmeras vezes que andámos atrás delas.
Em 1961 telefonou-me,
de Lisboa para Luanda, convidando-me para assumir a administração duma empresa
familiar, no Norte de Portugal. Angola era já a minha terra (?), e voltar a
Portugal, mesmo com uma situação que se apresentava promissora estava fora do
meu mundo. Tive, depois de muito lhe agradecer, que rejeitar a oferta.
Trocámos durante
anos razoável correspondência e foi ele quem me incentivou a escrever.
Sobretudo as histórias das caçadas. Comecei a escrever por aí e não parei mais.
Grande amigo,
grande irmão, teve um fim de vida muito sofrido, triste.
Foi-se embora há
poucos dias, e ainda me custa muito falar dele. Deixou um imenso vazio, muita
saudade e o coração ferido pelo que sabíamos que sofrera.
Descansa agora,
meu querido João Cardoso Salgado. Jamais te vou esquecer e, com saudade,
rir das nossas aventuras.
07/08/2019