domingo, 28 de julho de 2019




Amigos – 32 a


Antes de qualquer procedimento de caça é preciso ir cumprimentar o chefe da aldeia. Conversar com ele sem pressas, oferecer-lhe alguma coisa, sendo o mais comum um ou dois garrafões de vinho, dizer-lhe ao que se vai, e pedir-lhe que arranje um pisteiro bom.
Chefe, sentado numa quibaca, os restantes homens no chão. Conversa lenta, pausada, dando a sensação de ser assunto que necessita de muito pensar! Isso levou a manhã toda.
Ali ao lado, o rio Cubango, a mais de quinhentos quilômetros da nascente, era já um rio largo, volumoso, apesar da época não ser de chuvas. Por vezes atravessa área pedregosa transformando o seu leito tranquilo numa série de rápidos, que deixam para montante as águas mais paradas formando como um lago, onde as margens se afastam uma ou duas centenas de metros.
Não só o pisteiro como todo o povo mostraram-se desde logo muito interessados em falar sobre os muitos hipopótamos que viviam ali, nesses rápidos. Não era intenção dos caçadores caçar hipopótamos, animal tranquilo, por essa ocasião uma das espécies cuja extinção estava já ameaçada, mas sim elefantes. Todavia um daqueles imensos hipopótamos seria uma magnífica prenda para aquela gente. Ficariam abastecidos de carne por um bom tempo, e por isso tanto interesse em falarem neles. O peso médio dum macho é de duas toneladas e meia. Caçar esta montanha de carne seria a melhor maneira de cair nas graças das gentes daquela sanzala, e o chefe mostrou-se nisso vivamente interessado, porquanto seria sempre ele a proceder à divisão da carne. E quem parte e reparte...
Foi decidido aproveitar o resto da tarde desse primeiro dia para ir procurá-los. Lá estavam, a razoável distância de tiro, parecendo tomar banho em piscina, mais de uma dúzia desses enormes bichos.
A aproximação, cautelosa, mas os caçadores eram seguidos não só pelo pisteiro e por umas dezenas de garotos, que todos queriam ver caçar um bichão, a cautela foi só teórica.
Os animais pressentindo a aproximação de gente vinham à superfície muito rapidamente respirar, não mostrando por mais de escassos segundos a ponta das narinas e os olhos, dificultando assim a hipótese de tiro, que para ser fatal deve atingir uma área muito restrita atrás da orelha. Esperou-se algum tempo para ver se algum mais curioso se expunha melhor, porque também a curiosidade é uma das características destes simpáticos monstros. Não estava fácil, mas assim mesmo arrisquei atirar assim que vi alguma possibilidade de sucesso, com a carabina equipada com óculo. Tiro preciso, o animal sente o impacto da bala, revolve-se na água, ferido e muito agitado, entusiasmando todo o grupo que já antevia comida farta, mergulha e desaparece. O resto da manada sumiu também, submergindo para ir depois aparecer bem longe, em lugar mais abrigado, sem perigo aparente.
Começava o dia a declinar e como já não valia a pena tentar procurar os animais, ficou decidido voltar na manhã seguinte. Se o animal tivesse sido ferido de morte algumas horas mais tarde apareceria a boiar, quando não teria que ser procurado. À noite, à roda do fogo, entre outras conversas, comentou-se a precisão do tiro. Fora bom, e pelo modo como o animal o acusou devia estar morto. De qualquer modo não duraria muito.
Manhã cedo, ainda mal se preparava o matabicho, uma porção de garotos de roda dos caçadores avisava que os cavalo-maria haviam subido o rio. Já os tinham localizado e igualmente alertado. Volta a equipa, sempre acompanhada por uma pequena multidão de garotos, ao local onde tinham atirado na véspera, para começar a procurar o animal. Ninguém queria perder o espetáculo. Se estivesse morto a corrente do rio já o teria arrastado para as pedras dos rápidos. Ali não estava. De acordo com a informação pré matinal, a manada tinha subido o rio e estavam ali, a cerca de mil metros.
- Vamos lá ver se encontramos o ferido.
Para a hipótese de terem que atravessar o rio, tínhamos levado um barco.
O meu amigo tinha uma carabina 9,3 mm com dois gatilhos, um primeiro para soltar a folga do segundo que depois ao mais leve toque dispara, o que dá maior precisão de tiro. Propõe:
- Eu vou para a outra margem, e atira aquele de nós que tiver os animais mais perto!
- Cruzar fogo por cima da água? Tá louco! Nunca.
- Porquê? Qual é o problema?
- Porque a bala faz ricochete na água e nós vamos ficar a atirar um no outro.
- Qual ricochete, qual quê! Eu caço há mais de vinte anos e nunca vi tal coisa. Pelo contrário, a água amortece a bala.
- Eu sei que faz ricochete. Já vi muita bala bater na água e seguir viagem. Portanto se você quer atravessar o rio vai que eu fico aqui à espera.
- Não, senhor. A caçada é sua, e o hipopótamo ferido foi também um tiro seu. Vamos seguir as suas instruções.
- Que fique bem assente: não só não vamos cruzar tiros por cima da água como ninguém vai para o outro lado, porque como sabe o diabo disparou uma tranca, e eu vou atirar deste lado.
- Está certo. Então eu aguardo aqui.
Deixei os companheiros sentados debaixo duma frondosa árvore, e seguido ainda por uns quatro ou cinco garotos fui subindo pela margem do rio para me aproximar da manada. Como na caça todo cuidado na aproximação é pouco acabei correndo com a garotada. Só atrapalhavam. Caminhei com cautela bem junto à água, afundando por vezes os pés na terra encharcada. Por fim lá estavam os bichos, longe, junto à margem oposta, a uns cento e cinquenta metros, o que não aconselhava a atirar, dada a precisão que o tiro requer. Cautelosos como na véspera, continuavam atentos, até porque a garotada os havia alertado, e nesta situação mantêm-se submersos o máximo de tempo possível, e só sobem à superfície para respirar a intervalos de largos minutos, mal aparecendo, tornando assim a espera muito morosa e cansativa. Era necessário esperar com paciência. Num lugar meio escondido, sentei num tranco caído, e para dar mais precisão ao tiro cortei um galho da mesma árvore para servir de apoio ao cano da arma.
Ao fim de uma hora e tanto as cabeças começaram a mostrar-se um pouco mais fora e, mirando com todo o cuidado através do óculo, arrisquei um tiro. Estando quase ao nível da água e atirando a uma distância grande, o ângulo formado com a superfície era mínimo. A bala, blindada, rasou e tocou na água, seguiu, voltou a bater na água um pouco mais adiante, e pensei pena o meu amigo não estar aqui que teria visto o tal ricochete.
Ainda tentei um segundo tiro, sem senso, porque àquela distância e sem ângulo era praticamente impossível atingir um alvo de cinco centímetros de diâmetro, a parte vulnerável do hipopótamo, e matá-lo. Felizmente não parece ter acertado em nenhuma das duas tentativas. Ferir e não matar era pouco digno de um caçador. Desisti e levantei-me para retornar. 
Neste momento chega o outro parceiro, no jeep, lívido:
- Venha depressa. O seu amigo levou um tiro numa perna. E acho que foi um tiro seu.
- Um tiro??? Como? Um tiro meu?
- Sim. O primeiro.
- Não me diga que vocês atravessaram o rio e subiram a outra margem, contrariando o que havíamos combinado?
- Foi. Quando ficámos ali sozinhos, ele disse que essa coisa de ricochete era conversa, e fomo-nos colocar mesmo em frente dos hipopótamos.
- Meu Deus! Atingiu algum osso? Sangra muito?
- Não. Quase não sangra.
Num instante estávamos no local onde os tinha deixado. O ferido sentado no chão debaixo da mesma árvore frondosa, perna estendida, ar de profunda desolação, duas lágrimas na cara magra, ainda por secar. Pisteiro e garotada à volta com ar de espanto.
- Oh! Homem! Que maneira estúpida de aprender que as balas fazem mesmo ricochete na água!
- Pois é. Tem razão.
- Deixe ver a perna.
Calça abaixo. Ferimento milagroso! Por muita sorte foi uma bala blindada, com forte poder de penetração, que não espalha nem estilhaça. Entrou na parte superior da coxa e saiu uns doze centímetros adiante. Não apanhou o fêmur nem a artéria femoral, que naquele local, longe de tudo e de todos, teria sido fatal! Fez um pequeno buraco na entrada, ligeiramente maior na saída, mas a velocidade com que atravessou o músculo deixara o caminho como que cauterizado e sem aparente perigo de infecção. De qualquer modo havia que o levar a um posto de enfermagem para ser visto. O mais perto, perdido no meio daquela imensidão, ficava a cinquenta quilómetros dali.
Quando lá chegamos a perna estava um tanto escura do hematoma causado pela pancada do tiro potente, mas o enfermeiro limitou-se a fazer um pequeno penso na entrada e na saída da bala, passar uma ligadura para segurar os pensos e recomendar uma medicação simples, que faria bom efeito porque o ferido, homem saudável, nunca até aquela altura da sua vida tinha tomado um único comprimido!
Regresso ao acampamento em silêncio. A caçada estava estragada. Não sendo responsável pelo disparate do amigo, sentia-me mal, e quis saber exatamente como se tinha passado tudo aquilo. O acompanhante fez o relato.
- Ele disse que isso de ricochete na água era conversa! Então atravessámos o rio no barco, e subimos pela outra margem até que avistámos os hipopótamos, e fomo-nos colocar o mais perto possível. Aí uns trinta metros. Escondemo-nos atrás dum muxito, sentados de cócoras. Os animais estavam tão perto que ele carregou a arma, e preparou-se para atirar. Tirou a folga soltando o primeiro gatilho, e apoiou a arma na perna. Logo a seguir ouvimos um tiro, a arma dele sacode, sente uma pancada na perna, que lhe deu a sensação de ser o coice do tiro da sua própria arma e espantado diz:
- Olha, disparou-se a minha arma! - levanta-a e vê o percutor armado.
- E esta? O percutor armado! - abre a culatra e a bala estava lá dentro! - Como é possível? A bala está aqui! Como é que isto disparou?
Nessa altura eu olhei para o lado para tentar descobrir o mistério do tiro que não havia saído da arma dele, e vejo a perna a sangrar.
-Oh! Você levou um tiro na perna, e foi uma bala do Francisco!
O ferido sem acreditar: - Levei um tiro onde?
- Aí na sua perna.
Vê a sua perna ferida, porém continua sem entender o que se passava.
- Vamos embora daqui. Dê-me a mão que eu o ajudo a levantar-se.
- Não é preciso. Estou bem. Não sinto nada.
Levantámo-nos e começámos a andar. Uns poucos metros adiante ele senta-se no chão e com as lágrimas a romperem-lhe dos olhos diz:
- Ai! Que eu vou morrer!
Eu fiquei aflito, mas não me parecia que fosse caso para isso, perguntei-lhe:
- Vai morrer porquê? Foi só um tiro na perna e até sangra pouco!
- É sim. Mas eu já vi antílopes levarem um tiro que a gente pensa que não acertou, continuarem a correr como se nada fosse com eles, e de repente caírem para o lado, mortos! Comigo vai acontecer o mesmo!
Esta descrição fez o riso voltar aqueles rostos tensos. Até o ferido de perna atada teve que rir!
De volta ao acampamento, a vontade de caçar tinha-os abandonado. A ceia, sempre um bom momento de alegria e descontração foi comida em silêncio. Triste. No dia seguinte o doente ficou deitado no acampamento e eu fui só caçar um ou dois antílopes para arranjar comida para eles e aquele povo.
Entretanto o pisteiro já não apareceu naquela manhã. Tinha sumido! Quando perguntamos por ele as respostas eram evasivas que ele não podia ir mais, tinha outras coisas para fazer, etc. Nova conferência com o chefe da aldeia para arranjar outro pisteiro, e este do mesmo jeito, com os mesmos rodeios, não tinha outro capaz, estava ausente, e mais isto e aquilo, etc., a verdade é que ficamos sem guia.
Ainda mais um dia nesse acampamento, para descansar da emoção do acidente, mas como não se podia esperar mais apoio do povo dali, fomos obrigados a ir procurar outro local para continuar a caçada.
Desfaz-se o acampamento, carrega tudo de volta nos carros e aí vão eles, picada fora tentar continuar a caçada que tão mal começara. Percorreram algumas dezenas de quilómetros até outra sanzala, bem longe da primeira.
Mesma cena de início, conversar com o chefe da nova sanzala onde se depararam com as mesmas respostas, não tinha nenhum pisteiro bom, os animais andavam muito longe, a época não era a melhor, etc. etc.
Estranho. Muito estranho. Ninguém mais queria ir caçar com eles. Afinal o que se estaria passando?
Conseguiram a custo saber que naquela região, imensa, se tinha rapidamente espalhado a notícia de que andavam por ali uns brancos que se queriam matar uns aos outros! E como é evidente ninguém queria colaborar com essa guerra!
Para compreender esta atitude é necessário conhecer um pouco a mentalidade daqueles povos simples. Os mais simples, os mais manhosos! Analfabetismo não é sinônimo de burrice.
Quando por qualquer circunstância um homem quer vingar-se de outro, nunca o faz declaradamente. Tem que ser pela calada, sem que jamais possa levantar suspeita. A vingança pode provir de um caso de amor, da perca de uma posição mais influente, de uma acusação publica, até de simples inveja, se inveja pode ser coisa simples.
Sendo a paciência uma das virtudes dos povos simples, a espera não tem pressa porque tempo pouco conta. O momento oportuno sempre acaba por surgir, sobretudo nas reuniões de todos os homens que, em ocasiões especiais, se sentam a noite toda, em círculo, à roda do fogo, discutindo, pouco, e bebendo muito. Bebidas fermentadas, por eles mesmos preparadas, sempre de elevado teor de álcool para estas quizombas, reuniões a que preside o soba acompanhado pelo quimbanda, o feiticeiro e curandeiro e todos os homens da sanzala.
Para consecução desse ato, o vingador precisa da colaboração de um ajudante, a quem todavia não põe ao corrente do que pretende fazer. Escolhe um dos seus amigos, de amizade consolidada, que sem saber vai ser o cúmplice. Entretanto começa por procurar cativar a confiança de quem se quer vingar, tornando-se seu amigo, o mais prestável, mais humilde, mais íntimo, para afastar quaisquer suspeitas entre todos na aldeia, que passam a ver que eles são mesmo amigos.
Com o aproximar do dia da ação, prepara um veneno forte, coisa que não é segredo para ninguém que vive no meio da natureza, e na noite da assembléia acaba se sentando no meio dos dois amigos. A vítima de um lado, o cúmplice do outro, com o objetivo de afastar ainda mais qualquer suspeita. Ele fica entre os dois maiores amigos, o que é natural.
A bebida é servida em cabaças, continuamente, uma só estando na roda de cada vez, que vai passando de mão em mão, sempre num mesmo sentido de rotação. Cada um bebe uns quantos goles e passa ao seguinte. Do lado por onde ela há-de vir senta-se o cúmplice, do outro a vitima. O veneno, bem forte, vai embutido na unha de um polegar. A cabaça com a bebida alcóolica roda a noite toda, passada invariavelmente da esquerda para a direita, só parando quando vazia, para se encher de novo. Numa dessas rodadas a cabaça há-de chegar às mãos do cúmplice só com bebida suficiente para um ou dois beberem. O vingador está atento, e logo que percebe que o momento é chegado, sem que alguém note, o que não é difícil porque o álcool já tolda a maioria deles, não deixa o cúmplice beber, para não perder a oportunidade de receber a cabaça quase vazia. Nessa altura ele bebe um pouco, finge que bebe, enquanto mergulha bem o dedo com o veneno que se vai misturar aos últimos goles da bebida. Feito isto passa a cabaça para o lado, tendo o cuidado de fazer o parceiro beber até a derradeira gota, o que também não é difícil, porque a cabaça já vai quase vazia e todos gostam bem de se embriagar. A festa continua, o álcool vai fechando os olhos de alguns e a mente de todos, mas assim mesmo só pára alta madrugada quando caem os últimos bêbados.
No dia seguinte a ressaca é geral, mais sentida por alguns. A vítima tem uma ressaca muito mais forte, o que a ninguém causa espanto porque há sempre uns a quem a bebida faz pior. Mas a ressaca dele não passa, e ao fim do dia piora. Sente-se mal, com diarréia, febre, fraqueza. Ninguém o mandou beber tanto! Em menos de quarenta e oito horas está morto! O vingador perdeu um amigo! E leva a encenação até ao fim, mostrando-se muito sentido com a falta do amigo!
Foi este mesmo quadro que aquele povo viu naqueles brancos que foram caçar! Muito amigos, mas caçadores com boa pontaria como vai um acertar o outro? De certeza que querem matar-se! Até o tal cúmplice estava presente possivelmente para ajudar a posicionar a vítima no melhor local para levar o tiro! Não puderam convencê-los que entre brancos as coisas não funcionam desse jeito! Não houve maneira.
E esta caçada nas terras do fim do mundo que tinha tudo para ser uma maravilha, acabou por ser um tormento. O objetivo eram os elefantes. Tentaram depois procurá-los, mas sem pisteiro. Andaram muito perto deles, mas nunca em posição de tiro. Ao fim de uma semana foram obrigados a abandonar a região, tristes, tensos, com a perna dolorida ainda, mas sem dar preocupação de maior.
Levámos dessa caçada esta versão de costumes, estranha, mas autêntica.
Foi um grande parceiro. Amigo. Sempre com uma ótima disposição.
O Carlos Vieira da Maia, que perdi de vista quando fui para Moçambique em 71 e mais no pós 25/4.


Soube vagamente por um amigo comum, aí pelos anos 80, que viveria lá para as Beiras. Mas não o consegui localizar. Talvez agora um dos filhos venha a ler isto. Quem dera.
Um grande abraço onde quer que estejas.

10/07/19

quarta-feira, 24 de julho de 2019


Amigos - 32

Um dos agentes da Cuca pelo interior de Angola, comerciante em Vila da Ponte que se chamou Vila Artur de Paiva e hoje é Kuvango, era homem dos seus quarenta anos, baixo, seco e rijo, muito vivo e alegre.
Sendo eu o responsável comercial da Companhia, visitei todos eles, ajudando-os a organizar as suas vendas.
Com este, depois de visitada a sua área, disse-lhe como devia proceder, que em menos de um mês estaria a vender o dobro que vinha fazendo.
Não acreditou, mas cumpriu, e no fim desse primeiro mês telefona-me, muito animado. Tinha mais do que dobrado as vendas. E eu virei uma espécie de Nostradamus, mas sobretudo fizemos uma ótima amizade.
Português, beirão, estava em Angola desde os seus vinte anos. Para ali fora cedo por não querer cumprir o serviço militar! Estava-se em plena Segunda Guerra Mundial.
Logo ali chegado, com algum crédito junto a casas comerciais das cidades principais, foi estabelecer-se região dos ganguelas, perto de Vila da Ponte onde depois se veio a fixar. Por essa época estava a começar a construção do prolongamento da linha férrea de Lubango às minas de ferro da Jamba. Muita gente contratada (!) para essa obra, que era preciso alimentar.
Para obras públicas ou de envergadura importante, em que se empregava bastante mão de obra local, nativa ou não, o governo concedia a experientes caçadores uma licença especial de caçador profissional, que lhes permitia abater peças de caça para fornecer alimentação a esses grupos de trabalho. Eram homens com grande conhecimento das regiões onde atuavam, atiravam muito bem, e sabiam perfeitamente o que podiam e não deviam abater.
O nosso amigo antes de ir para Angola nunca tinha dado um tiro, e admirava profundamente o caçador profissional que ele recebia com frequência na sua modesta casa de comércio, e com quem já tinha saído algumas vezes. Via o outro apontar e com um só tiro sempre abatia alguma peça de caça, façanha que o fascinava. Um dia perdeu o acanhamento:
- Eu gostava muito de experimentar dar um tiro.
- Quando quiser. Vamos lá.
Pega na carabina do amigo faz uma marca numa árvore e dispara. Onde foi parar a bala, ninguém sabe. Ficou um quanto desapontado mas o caçador tranquilizou-o. Ele mesmo no princípio tinha dificuldade em acertar, mas tudo era uma questão de hábito.
O jovem sonhava em ter uma arma e ir à caça. Ao primeiro caixeiro viajante que depois disto por ali passou, comprando gêneros de produção local e recebendo pedidos de encomendas que seriam depois remetidas pelos camionistas, pediu um favor. Deu-lhe dois mil escudos para que lhe comprasse uma carabina. O dinheiro que sobrasse gastasse todo em balas. E ficou à espera, ansioso. Uns seis meses depois o mesmo viajante voltou, e trazia a arma! Que maravilha! Uma .22 Long e uma quantidade grande de caixas com balas.
Animadíssimo mal pôde esperar. Fez uma cruz no muro do pátio da sua casa, enfia uma bala na câmara, afasta-se uns dez metros, dispara, mas o tiro acerta a mais de meio metro do centro! Como era possível? O caçador profissional onde punha o olho punha o tiro e ele nada! Apontou de novo, devagar, e percebeu então porque não acertava. O cano oscilava muito. Tremia. A arma não ficava quieta, e assim ele não conseguia apontar.
- Hummm! É isso. Preciso apoiar o cano.
As janelas da sua casa tinham trancas por dentro. Pega uma delas, com um serrote faz-lhe um corte em V numa das pontas, e vai experimentar de novo. A tranca no chão, o cano apoiado dentro do V, agora sim, a arma ficava quietinha e ele apontava à vontade.
Mal escureceu, chamou um dos empregados de mais confiança a quem entregou uma bateria e um farolim, e não foi preciso andarem muito para que logo surgissem a brilhar dois olhos dum pequeno cabrito do mato. O Dik-Dik (Sylviacapra grimmia), bichinho que pesa uns dez a doze quilos, comendo tranquilo umas verduras na sua própria horta. Aproximam-se a poucos metros, o cabrito despreocupado, não pára de comer.
Farolim apontado, o Maia que tinha levado três balas, mais do que suficiente para o que ele queria - o caçador profissional com cada tiro abatia uma peça - apoia a tranca no chão, assenta o cano da arma na ranhura em V, firme, aponta, dispara, e a bala segue zunindo pela noite. O cabrito, ótimo, cheio de saúde, assustou-se, pestanejou e continuou comendo. Um sinal ao ajudante para que se aproximem um pouco mais. Dez metros, menos ainda. Tranca, arma apoiada, mas a tão curta distância já não era fácil apontar. A tranca era comprida, e dificultava o apontar para baixo. Segundo tiro, e a segunda bala segue correndo atrás da primeira. Atirador mais espantado do que o cabrito!
- Psst! - e novo gesto para que avançassem. Ficaram a uns cinco metros.
Com tranca a pontaria estava mais difícil e o caçador, de fraca estatura, teve que se pôr nas pontas dos pés para tentar mirar o bichinho. Terceiro tiro. Terceira bala a zunir na noite dos ganguelas. O cabrito? Continuava a pastar, ali mesmo na frente deles.
Admirado com a falta de sorte e já sem balas.
- Kuata espingarda!
Entrega a arma ao ajudante faz-lhe sinal que fique quieto e continue a apontar o farol. Passa fora do foco, vai por detrás do pobre cabrito e dá-lhe com a tranca na cabeça! Matou.
O empregado só disse
- Háca! Patrão! - e riu com vontade.
Patrão foi avisando:
- Você não vai contar nada disto. Diz que patrão matou só no terceiro tiro, porque não está habituado neste espingarda. Ouviu?
- Sim siô. Patrão.
Entrados em casa o empregado num instante põe em cima da mesa tudo o que seria o jantar do patrão e sai para o pátio, onde sempre à volta do fogo, se juntava com os restantes empregados mesmo de outras casas comerciais. Pouco depois começam a ouvir-se sonoras e gostosas risadas, e o patrão desconfiado vai ver o que se passa. O seu ajudante na caça, aquele a quem pedira segredo absoluto do modo como apanhara o cabrito, de pé, teatralizava a história gesticulando e enfatizando mais ainda o que de ridículo a situação pedia!
Nessa noite o grande segredo ficou sendo do conhecimento de todos os habitantes daquela povoação!
Mas não desistiu. Só deixou foi de levar ajudante para a caça! Durante meses, sem que o ânimo lhe faltasse continuou a caçar, mas sempre sem sucesso, e a sua fama de péssimo matador foi-se consolidando. Aliás nem péssimo era. Não era! Sempre que regressava os vizinhos perguntavam
- Então?! O que caçaste hoje?
Nada. Sempre nada. Até que um dia...
Sempre insistindo, está numa área de capim bem alto e vê, vindo por um trilho, direitas a ele, duas Quissemas ou Burro do Mato ou Côco (Cobus Defassa Penricei). As quissemas são animais com uma altura dorsal de cerca de um metro e vinte, e peso que ultrapassa facilmente os duzentos quilos. Esconde-se atrás de uma árvore ao lado do caminho, carrega a arma e espera. Passa o primeiro animal a uns três metros, e sai o primeiro tiro. Cai uma. A outra fica especada sem saber de que lado estava o perigo, o matador carrega de novo, volta a disparar, e... mata a segunda!
Hurrraaah! Hurrraaah! Quebrara o enguiço. Tinha finalmente caçado! E logo duas quissemas!
Mas, e agora, como levar os bichões, enormes, para casa? Não tinha a menor condição de levar uma só quanto mais duas, e se fosse pedir ajuda, ninguém o ia acreditar. Solução? Simples. Cortou as quatro orelhas, meteu-as nos bolsos, e tentando aparentar tranquilidade que não tinha, volta com ar feliz à povoação, e vai direto a um vizinho, o único que tinha uma carrinha, pedir ajuda para carregar uns animais que tinha morto ali.
- Você? Você nunca matou nada! - e gozava.
Este com ar solene mete a mão no bolso e joga em cima do balcão o documento comprobatório:
- Duas quissemas. Duas. Estão a menos de dois quilómetros daqui.
- Puxa. Querem ver que é mesmo verdade!
Comerciante, mulher e filha conferem as orelhas, que eram verdadeiras. Duas do lado esquerdo e duas do direito, tinham que ser de dois animais. Querem ver que ele caçou mesmo?! A povoação despovoou-se. Todos acorrem ao local indicado, onde as quissemas jaziam. Foi uma festa. Carne para toda a gente. A consagração do caçador que, com esses dois tiros, mesmo disparados à queima roupa, deve ter aprendido como se atirava! Acabou sendo um ótimo caçador, e mais do que isso um estupendo e alegre companheiro de caça, que por fim até passou a saber que as balas fazem ricochete na água!
O interior de Angola, sobretudo o centro e sul é um planalto com altitude média acima dos 1.000 a 1.200 metros, o que lhe proporciona um clima seco, independente da quantidade de chuvas que caem, noites frias, madrugadas geladas formando com facilidade camadas de gelo na água que fica ao relento em tinas ou baldes, e temperaturas que durante o dia ultrapassam os 40º C. Nunca nessas áreas faltava cerveja gelada! Durante a noite ficavam as garrafas expostas ao frio, e de madrugada antes de se sair para a caça guardavam-se em caixas de papelão que por sua vez se embrulhavam em pesados cobertores de papa, indispensáveis para se poder dormir dentro das barracas de campismo, normalmente gélidas, e depois colocadas na melhor sombra das árvores. Ao meio dia, sob um calor de quarenta graus ou mais, os caçadores no regresso ao acampamento, sequiosos, encontrarem no meio do mato, a centenas de quilómetros do que se podia chamar civilização, uma cerveja muito gelada, era o máximo!
Nessas regiões, a saída de madrugada sob um frio que gelava até as idéias, obrigava os caçadores a agasalharem-se com múltiplas peças de roupa quente, cachecol, chapéu, luvas e tudo que pudesse proteger daquele frio imenso em cima de jeeps abertos! Assim que o sol nascia começava o streap tease!  Primeiro o cachecol, depois o blusão pesado, depois as luvas e as lãs, que tudo se ia jogando para a cabine do carro, até que por fim seguiam só em camisa quando não tiravam esta também! Ao lado do condutor ficava um monte de roupa!
Longe eram as chamadas terras do fim do mundo, lá no sul de Angola, região dos cuanhamas, dos ganguelas, dos cussos e de muitos mais, onde uma caçada pressupunha uma estadia mínima de uma semana, sendo necessário levar todo o indispensável equipamento de campismo, primeiros socorros para qualquer emergência, boas reservas de cerveja e vinho para beber e oferecer aos sobas que disponibilizassem pisteiros, que não saíam sem sua autorização, e ainda arroz, batatas, sal, café, conservas, frutas e mais um monte de bicuatas, que incluía cadeiras, mesas, camas de campanha, candeeiros Petromax, sacos de lona especiais para água de beber, que pendurados na frente do carro, com o deslocar deste mantinham a água fresca apesar do sol escaldante, enfim tudo o que uma semana daquelas dava direito. Muitas vezes levava-se cozinheiro que ficava feliz com esta variante da sua vida insossa na cidade. E até um barco, a remos ou com motor de popa quando se previa ter que atravessar algum rio mais largo.
Eram centenas de quilômetros para se atingir o coração da região, onde mais facilmente se podiam encontrar os grandes animais como o elefante. Cruzavam-se no caminho planuras imensas, savanas, chanas ou anharas (pastos úmidos e férteis) cheias de caça diversa, sobretudo antílopes desde a minúscula Seixa aos Nunces, Songos, Quissemas, e até Gnus e as enormes Gungas ou Elandes, e muitas outras espécies, que à noite os faróis dos carros refletindo nos seus olhos pontilhava de luzes. Espetáculo magnífico. Algumas áreas pareciam cidades iluminadas.
Um dos animais que habita nessas anharas é o Cuio ou Lebre Saltadora (Pedetes capensis). Não chega ao dobro do tamanho de uma lebre e lembra um canguru pequeno com membros posteriores muito desenvolvidos, sobre os quais se desloca saltando, e os anteriores muito pequenos de tamanho suficiente só para ajudar a levar a comida à boca. Herbívoro inofensivo, vive durante o dia em tocas, só à noite sai para se alimentar. Seus olhos refletem a luz com imenso brilho, vendo-se, quando se lhes apontam os faróis, uns pontos luminosos moverem-se aos saltos!


No caminho para as tais terras do fim do mundo, um grupo de caçadores de que eu fazia parte, mais o meu amigo, o Arnaldo que foi de motorista e dois jovens, ao atravessar uma dessas chanas ou anharas, já noite, farol ligado varrendo os lados da picada para se gozar o espetáculo, avistam perto do carro um desses cuios.
- Vamos pegá-lo!
De cima do carro continuou-se a farolinar, sem perder o cuio de vista. Os dois rapazes saltaram logo fora, e no meio da noite só se via a estreita faixa que o farol iluminava, correram para pegar o cuio, que com a forte luz a bater-lhe nos olhos saltava também sem saber para onde, mas aproximando-se do carro.
Tropeçavam os garotos em troncos caídos que naquele contraste luz-escuridão não se distinguiam, davam tombos formidáveis, mas o divertimento era superior e por nada deste mundo interrompiam aquela caçada, à mão, sem no entanto alcançarem o animal, que igualmente perdido, conseguia assim mesmo enganá-los.
Eu encostado à traseira do jeep ria com aquele espetáculo. De repente o pobre cuio num dos saltos, cego com a luz, bate na lateral do jeep e cai estonteado. Num instante despi o blusão, cobri o bicho e segurei-o! Estava terminado o pega-pega!
E agora o que fazer com ele? Adaptou-se um engradado com uma das caixas dos mantimentos e o levámos.
Já tarde da noite chegam ao local previsto para acampar, como sempre junto a uma sanzala para que aproveitar a companhia e infra-estrutura daquelas gentes. Descarrega tudo dos carros, arma-se a tenda de campismo, prepara-se uma refeição rápida, deixa-se o cuio no engradado de madeira, e deita-se a turma.
Durante toda a noite o cuio fez um incómodo barulho roendo as tábuas da caixa e esse ruído no meio do profundo silêncio do interior de África era suficiente para não deixar dormir quem tivesse o sono leve!
De manhã constatou-se que o bichinho tinha roído quase uns cinco centímetros duma das tábuas e pouco faltou para ter alcançado a liberdade. O esforço foi meritório e de qualquer modo estava decidido soltá-lo, contra a vontade do povo nativo que queria aproveitar o petisco. Resolveu-se no entanto dar uma chance ao cuio: primeiro dava-se-lhe a liberdade e só quando ele se tivesse distanciado uns cem metros podia alguém começar a correr para o pegar! Foi outra cena.
O cuio, habituado somente a sair de noite, de dia vive escondido em tocas, e por isso vê muito mal. Assim que foi solto começou a correr, sempre aos saltos, ziguezagueando, estonteado. A criançada, só ela autorizada a pegar o animal, esperava ansiosa o sinal da largada para sair atrás. Este dado, uns vinte dispararam numa tremenda algazarra para ver quem o apanhava. Acabaram por pegá-lo, e com o destino numa panela acabou este bichinho simpático.
O grande parceiro, nesta e em outras caçadas foi o Carlos Vieira da Maia.
Continuaremos a falar dele no próximo texto.

domingo, 14 de julho de 2019




Amigos - 31

Para vos falar de um amigo que muito me marcou, é preciso contar algumas histórias de caçadas.
Gerente regional de vendas da Mac-Mahon, a 2M, Coca-Cola e outros, desenvolvia um trabalho a todos os títulos louvável. A sua região crescia em vendas e organização e era pessoa querida de todos os que o conheceram.
Moçambique, Sul do Save, para cima do Chibuto, em Chicualacuala, tentativa de caçar elefantes. O mesmo procedimento ao chegar, conseguir as boas graças do chefe local, por onde se começa a estadia. Como deferência para com os brancos, o chefe, que se sentava num banco ou cadeira, e o resto do povo no chão, manda buscar bancos para os visitantes. Com o parceiro, e grande caçador, homem ainda novo, robusto que nem um carvalho, recusam educadamente a deferência, e sentam-se no chão, o que deixa o chefe entre admirado, sensibilizado e confiante. A oferta habitual, um garrafão de vinho que logo ali se abre e distribui por todos os presentes. Objetivo dos visitantes: caçar um elefante, para o que precisam de um bom pisteiro. E mais. Queriam acampar ao lado da aldeia. Ao fim de um longo papo, tudo estava acordado. Monta-se a barraca de campismo, prepara-se uma refeição simples, para deitar cedo, e antes do nascer do sol lá vão de carro com o pisteiro até onde este entendeu que deviam parar, para dali em diante seguirem a pé, à procura de rasto recente de elefantes.
Silêncio, pisteiro na frente, atento ao mais ínfimo sinal, desapercebido aos caçadores, a quem de vez em quando mostrava, quando mais evidentes: uma pegada em terra úmida, capim pisado e dobrado, excremento fumegando, diversos tamanhos e quantidade de pegadas indicando o número de animais. Uma pegada maior se destaca. Era esta que iriam seguir. De vez em quando outros animais apareciam, mas como não se podia fazer o mínimo ruído eram apreciados só com a vista e deixados em paz. Atravessaram áreas de mata aberta, capim verde e alto. Horas e horas a andar. Numa ligeira elevação do terreno vê-se o capim mexer, o pisteiro estaca, abana a cabeça em sinal negativo mas que mantivessem silêncio. Não eram elefantes. Na sua frente uma pequena manada de antílopes lindos, Nialas ou Inhalas (Tragelaphus angasi) que com o aproximar silencioso dos caçadores se mantiveram em alerta mas imóveis e só correram quando estes estavam quase ao alcance de os tocarem com as mãos! Espetáculo lindo.


Continua a seguir-se o rasto, até que ao cair do dia tiveram que retroceder. Sabiam pelo menos onde começar no dia seguinte.
No regresso ao passarem junto a um charco mataram um Ganso de Esporão (Plectropterus gambensis) uma espécie bem grande, 7 ou 8 kg, próprio de toda a região sudeste da África, que deu um brilhante jantar! Belos bifes do peito, fritos em azeite, hummm, no meio do silêncio, do céu limpo, as estrelas todas lá, algumas cervejas 2M a acompanhar...

Quando se levantaram, de novo antes de começar a clarear o dia, um homem de outra aldeia que dali distava uma a duas horas de caminhada, os aguarda. Soube, talvez por algum tipo especial de telégrafo africano, que andavam por ali caçadores da cidade, e pensou que estes o pudessem ajudar. Depois de pedir autorização ao chefe da sanzala onde estavam acampados, esperou para falar:
- Bom dia, patrão! Patrão pode dar o aspirina?
Um pedido destes, no meio do mato?! E aspirina que tomada só para nada serve! A caixa de pronto socorro levada para estas caçadas incluía somente comprimidos para estacar diarréia ou para prisão de ventre, ligaduras, gazes, água oxigenada, tinturas, agulha e categut para algum ferimento maior, e pouco mais, somente para tapear algum acidente até se chegar onde houvesse posto de saúde ou hospital.
- Uma aspirina? Para quê?
- Filho pequeno muito doente.
- O que tem ele? E que idade?
- Quatro mês. Muita febre e diarréia!
Oh! Diabo! A coisa parecia complicada, mas a cem quilómetros de qualquer socorro, algo teria que se fazer.
Partiu-se em quatro partes um comprimido de adulto para a diarreia, embrulhou-se cada quarto num pedaço de papel, e entregou-se àquele pai:
- Você vai agora e dá este pedaço ao bebé. Quando o sol estiver lá no alto dá outro pedaço. Ao pôr do sol o terceiro, e a meio da noite o último. Amanhã volta aqui e conta como ele está. Entendeu bem?
- Sim siô, patrão. Brigato. - E foi embora.
A caçada prosseguiu. Segue rasto, perde rasto, encontra outro rasto, os elefantes estão perto, agora já foram embora, amanhã a gente encontra, o costume! Outro dia passado. No regresso ao acampamento sempre se deparava com um pequeno animal que servia para abastecer um pouco a barriga de todos.
Nova manhã. Ao saírem da barraca lá está o pai da criança. A diarréia tinha passado, mas a febre não. Nenhum dos caçadores era médico, mas pela descrição talvez fosse alguma coisa do tipo febre intestinal, grave, e não houve coragem de ir caçar sabendo que a criança podia morrer. Metem o homem no jeep andam um monte de quilómetros até à primeira casa comercial. Entram para comprar qualquer coisa, e perguntam à mulher do dono da casa, se tinha alguns medicamentos. Sempre havia na loja alguma coisa para venda, mas daqueles que nada resolvem, como analgésicos e outros quejandos.
- A senhora não tem por aí qualquer antibiótico, mesmo já aberto, que tenha sobrado?
- Tenho ali um resto que dei à minha filha pequena quando ela esteve doente.
Mesmo sem saber o que era,
- Eu compro esse resto.
- Não precisa. O senhor pode levar porque isso a nós já não vai servir.
Comprou-se, além de algum abastecimento extra para o acampamento, e mais combustível, uma colher de café, porque o medicamento era líquido. E novamente se explicou ao pai do bebé como administrá-lo. Uma colher de café mal cheia nos mesmos horários solares. O tanto que sobrava no frasco devia dar ainda para uns dois dias. Era tudo quanto se podia arranjar por ali.
E voltam para a caça. Nesse dia a perseguição proporcionou-lhes um encontro casual com um magnifico exemplar de Kudu (Tragelaphus strepticerus), macho solitário, com uma belíssima armação, que teve o azar de em má hora atravessar a picada em que seguiam. Perdeu-se o respeito ao silêncio da perseguição aos elefantes e atirou-se ao kudu, que morreu ao primeiro tiro. Lindo animal. Volta ao acampamento. Esfolar o bicho, limpá-lo e dividir a carne. O primeiro pedaço, pequeno, para os caçadores, que ficaram com o contra filé, uma delícia, o resto dividido sob o mando do chefe pelas diversas famílias da aldeia. Por fim o pai do bebé, que por ser de outro povoado, só teve a sua parte por interferência dos caçadores, e assim mesmo as tripas e o fígado.


Mais um dia. Ao levantarem-se nova surpresa. Uma galinha de presente! Imagine-se uma galinha de presente no meio do mato! Mas era o que de melhor o pai da criança conseguia para mostrar a sua gratidão. Claro que ao fim do dia levou a galinha de volta! Parece que tinha passado a febre do bebé, e este homem durante os restantes dias que os caçadores por ali andaram nunca deixou de se apresentar de manhã para ser útil de qualquer forma, carregando a arma, ajudando na caçada, sem nunca querer interferir com o trabalho do pisteiro, mas humilíssimo e muito grato.
Nada mais se soube da criança. Mas o melhor dessa caçada, onde mais uma vez não se encontraram os elefantes, foi ter-se feito alguma coisa que a todos deu uma satisfação muito intima. Em África era assim. Dava-se com uma mão, e se a vista não seguia a dádiva, era preciso juntar as duas para receber a paga, tal a simplicidade e generosidade da gratidão.

O Pedro Avillez era o representante do nosso Banco em Johannesburg, e foi um dia a Lourenço Marques tratar de assuntos de serviço. É preciso notar que só depois de 1976 é que as pessoas deixaram de ir a esta cidade para irem ao Maputo. Geograficamente vão ao mesmo lugar mas até os moçambicanos fazem esta distinção!
Aproveitámos um fim de semana para, com o habitual parceiro, ir caçar perdizes, lá para bandas de Zandamela, entre Quissico e Chidenguele, uns 350 quilómetros a norte da capital. Para África é sempre perto, em termos de Europa é sempre longe.
Fomos instaladões no belo carro da representação do Banco, um Mercedes 280, automático, uma delícia, para quem normalmente ia num incómodo jeep para essas farras.
Não levámos cão, nem tínhamos, o que para perdizes é fundamental, mais ainda em terrenos com capim alto, tão alto que por vezes nos dava pelo nariz. Ver, ainda vimos algumas. Atirar, creio que ao todo se fez um tiro ou outro, mas perdiz caçada, mesmo, para levar para casa e fazer aquele magnífico petisco, é que nada. Apanhámos um calor imenso, fartámo-nos de andar no meio do mato sem cachorro e, depois de feita toda aquela viagem e apanhado uma razoável estafa, desistimos, um tanto desiludidos do intento cinegético. Lembro-me do que dizia um meu avô que também andou por África, só a caçar, que quando se sentavam para comentar mesmo quando não se caçava nada: ninguém se feriu, não matámos ninguém, voltámos para casa. Foi uma caçada ótima. Como esta!
Já no regresso, sede não faltava, parámos no primeiro comerciante para beber uma cerveja e comentámos por onde tínhamos andado.
- Essa região está cheia de carraças. Daquela miudinha. A pior. A que provoca a febre da carraça.
- Oh! Diabo!
- Quando chegarem a casa tomem um banho de imersão com um pouco de amoníaco misturado. Saem todas.
De repente já os três começaram a sentir uma coceirinha aqui outra ali! A coceira vem muita vez da nossa cabeça.
Novamente no Mercedão, ar condicionado, a caminho de casa.
Aquela região costeira é uma beleza! O mar forma lagoas interiores ao longo da praia e da estrada que corre um bom tempo mesmo ao seu lado. Estrada deserta. Dia lindo, águas limpíssimas, de um azul que... é uma tristeza estar tão longe!
- E se a gente tomasse já aqui um banho nestas águas maravilhosas? Aproveitamos para procurar e catar as carraças. Se por acaso as trazemos ainda, podem agarrar-se ao estofo do carro e depois vai ser um Deus nos acuda para acabar com elas.
Boa idéia. Despimo-nos inteiramente, começando por uma minuciosa pesquisa nas roupas, incluindo meias e botas. Tudo em perfeito estado de infestação insetívora.
Depois sentadões naquela água morna, limpa, qual imensa banheira, começou a inspeção pelos pés, pernas, virilhas, barriga, sovacos. Nada. Cabeça dentro de água bem escovada com as unhas, não deixava qualquer hipótese às ditas carraças, carrapatos, artrópode miserável, aracnídeo nojento, acarino da família dos ixodídeos, de abdome unido e confundido com o cefalotórax, aberturas traqueais na parte posterior e ventral do corpo, e hipostómio armado de espinhos. Um horror, ainda por cima quando se sabe que as suas larvas são hexápodes.
De fato com este complicado curriculum o nosso cuidado em não deixar um único desses seres viverem como ectoparasitas coceirentos nos nossos corpos, era plenamente justificável.
Por fim sempre há uns locais do nosso corpo que só enxergamos com a nossa própria vista se nos munirmos de conveniente espelho, objeto que normalmente não se leva para uma caçada às perdizes. Não é necessário indicar qual é essa parte do corpo, mas para que não fiquem dúvidas quanto à veracidade desta descrição, é bom que se esclareça que se trata da região anal.
Para aí se procurarem os tais animais com o hipóstomo armado de espinhos, a única solução foi cada um virar o traseiro para outro, que tinha que pôr o seu olho bem no olho do analisado. Como era necessário que ambos curvassem o corpo, um para expor amplamente o possível local de abrigo dos sobreditos artrópodes, e o outro para melhor o inspecionar... O ridículo da cena é indescritível!
Mas a bem da verdade há que deixar consignado que nem um só dos três deixou de inspecionar e ter sido convenientemente inspecionado!
O banho foi uma delícia. Não apetecia sair dali, mas houve que ir embora, depois de agredida a natureza com um espetáculo de olho por olho, um tanto, não pornográfico, mas no mínimo, indecoroso.
Acabámos chegando a casa, sãos e salvos e limpos.
Por via das dúvidas, eu tomei o tal banho com amoníaco!
O outro parceiro e um grande caçador, homem de muito caráter e amigo, meu impecável colaborador na fábrica de cervejas. Fizemos muito trabalho em conjunto e várias caçadas.
Um dia chegou o azar. Um desastre horrível com um elefante e o meu amigo não resistiu.
O Luis Alvim Cardoso, deixou-me tão chocado, que decidi que nunca mais caçaria. E assim aconteceu.


Nunca mais nada soube da sua simpática família. Se alguém souber, gostaria que me comunicassem.

09/07/2018

domingo, 7 de julho de 2019



Amigos - 30

Hoje vamos à caça. Caçar foi, durante muitos dos anos que passei em África, o que mais seduzia. Por outro lado, se sempre havia alguma espécie de remorso por se matar o animal, por outro não se caçava mais do que se podia depois comer, e, essa comida, fosse de rolas, perdizes, pintadas, patos, lebres ou coelhos, antílopes ou pacaças, era uma delícia. E daí esquecer o “mal” que se fazia pelo tão bem que sabia.
Vou começar por uma caçadinha em Portugal com um dos mais antigos amigos com quem quem cacei.
Alentejo, aí pelos anos 50. Em casa dum amigo e colega. Saímos para dar uma volta aos coelhos, terra lavradaseca, cor entre o cinza e o bege, lá vamos os dois andando. De repente estaco, fico imóvel e olho para baixo: tinha um coelho todo encolhido bem entre os meus pés! Não podia atirar, com é óbvio, Dei um toque no traseiro do bichinho que teve a infelicidade de correr e acabou na panela.
Esse amigo foi entretanto trabalhar para São Tomé, onde ficou desde 1952 até 75, administrava uma roça, com uma casa senhorial que nada ficava a dever a qualquer Ritz do planeta, e onde fiquei esplendidamente instalado.

O tipo de casa “humilde” onde fiquei! Aqui com o ainda meu parente, 
Humberto Gomes de Amorim,
quando em 1954 (e não 58) passei em São Tomé a caminho de angola

Eu estava na Cuca, 1963, em Luanda e fui a São Tomé para lançar a cerveja de barril, os famosos finos, de lá, chopes de cá. Dei “um curso” de Tiradores de Cerveja, em que o colega quis participar – com muita habilidade! – e nos intervalos andou comigo a mostrar-me uma boa parte da Ilha, as plantações de cacau, onde se viam antúrios e orquídeas por todo o ledo, um inebriante cheiro de canela, uma vegetação luxuriante, uma Ilha que me marcou bastante.
O meu colega, e muito amigo, o  Júlio Cunha Rego foi sempre muito amável.
Depois que fomos corridos de África ainda nos encontrámos em saudosos almoços de colegas, em Évora. Depois... eu no Brasil, longe de todos...
Nesta foto, com os “alunos” do Curso de Tiradores de Cerveja está ele na frente, no meio, tendo na mão uma pasta (muito bonita, por acaso!) com as instruções eu atrás, à minha direita o Libório que era o técnico da Cuca e à esquerda o nosso representante na Ilha. Os outros, donos de bares que iniciaram a venda da cerveja em barril, cujos nomes... já lá vão 56 anos!

§              §              §              §              §

Um dos meus primeiros parceiros de caça, de quem falei um tanto no livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”, onde descrevo caçadas incríveis que, mesmo que eu viva mais 500 anos jamais vou esquecer, era um sujeito duma alegria contagiante, um parceiro sensacional e um ótimo caçador. Com ele as histórias permanecem vivas na memória e são muitas. Vou escolher uma tirada daquele meu livro (esgotado !!!).
Quando se tratava de caça grossa, normalmente pacaças, o pisteiro era fundamental. Sebastião, o nosso habitual pisteiro era um companheirão formidável. Sempre alegre, já avô, consciente, sabia que seguir pacaças feridas dentro da mata era temeridade a evitar. Mas chega sempre o dia em que o inevitável acontece.
Depois de algum tempo de procura, o encontro com a manada, capim seco muito alto mal dava para ver as costas das pacaças correndo, o jeep avança e de cima sai um tiro que derruba um dos animais. Quando o carro se aproxima e pára, aquele reúne forças, levanta-se de novo e foge para dentro da mata sem que alguém volte a atirar, por falta de visibilidade.
O Ninocas, o mais maluco e alegre de todos os parceiros de caça, com uma carabina FN 9,3, uma arma possante, corre para a entrada da mata e aí estaca. O Sebastião aventurou-se um pouco mais, e entrou uma dezena de metros. Ele era o pisteiro, quem tinha de indicar o caminho! Ninocas um pouco atrás, arma pronta a atirar. De repente a pacaça, ferida e à espera de se vingar estava atenta, avança, pega o Sebastião, e sai lá de dentro correndo, com o Sebastião agarrado à cabeça dela e gritando:
- Aiué! Aiué! Não atira, patrão. Não atira, patrão!
Se o patrão atirasse podia atingi-lo, claro! e todos ficaram aterrados sem nada poder fazer para acudir ao nosso Sebastião. Felizmente a pacaça depois de galopar um pouco fora da mata, deve ter-se assustado ao deparar com o jeep na sua frente, bruscamente estaca e retrocede. Com esta parada foi o Sebastião sacudido da cabeça do bicho e safou-se! Ao passar de novo pelo caçador este desfechou-lhe um outro tiro a poucos metros de distância que a fez cair de vez. O Sebastião estava lívido, mas nada de ferimento. Uma sorte louca. O resto do dia foi de grande risada com o não atira patrão, mas maior foi ainda a risada quando ao fim do dia de volta à sanzala para aí passar a noite. Mal chega, corre para a mulher e diz-lhe:
- Mulhé, eu moria! Mulhé, eu moria! Quero tudo bêbado! Eu moria mesmo!
Imagine-se como foi aquele serão! Não faltou carne nem bebida! Sebastião foi dignamente elevado à dignidade de Grande Forcado.
Infelizmente não tenho nem uma foto do grande Nelson Peixoto, o Ninocas, nem do velho e tão amigo Sebastião, mas guardo grande saudade deles.
Voltei a encontrá-lo em Luanda, de onde não quis sair, quando ali fui em 1991. Caçadas... já eram. Vivia numa modesta casa, com uma simpática companheira angolana que nos preparou um almoço principesco: lagostas e as famosérrimas gambas daquela terra.
Sobrevivia do “esquema”, o termo usado naquele tempo quando tudo era difícil e caríssimo de encontrar, sobretudo alimentos e bebidas, mas à boa moda de Angola o povo encontrou maneira de sobreviver, em terríveis condições comprando e vendendo de tudo a todos!
O Ninocas criou um esquema inteligente. Mandava vir do sul, sobretudo de Moçamedes, alimentos frescos, como legumes, batata e outros e trocava-os na fábrica de cigarros pelo preço da tabela dos mesmos. Só que no mercado negro, único lugar onde se encontravam, custavam “n” vezes mais, o que lhe dava para viver na sua simplicidade!
Como eu trabalhava com uma empresa internacional pediu-me para ver se lhe arranjava uma barcaça de desembarque, da II Guerra, porque poderia então multiplicar o seu negócio carregando no Sul e descarregá-la em Luanda em qualquer praia sem necessitar de lugar no cais sempre cheio e sempre em greve!
Foi difícil conseguir algo que lhe servisse, uma das razões seria o altíssimo custo do transporte para Angola. Ainda trocámos alguma correspondência, nessa altura por fax e um dia... não tive mais retorno.
Soube bem mais tarde que o meu querido amigo, o Ninocas tinha ido descansar!
Bem merecia.
§              §              §              §              §

Outro parceiro de caça, em que quase sempre se incluía o Zé Neto e o Zé Batista Borges, era quase meu vizinho. Uma mão cheia de filhos, que eu tratava como sobrinhos queridos, sobretudo o mais velho, e um bom atirador na caça.
Volta e meia, ao andar por aqueles matos, lugares muitas vezes isolados, parecendo perdidos no meios de nada lá se encontrava uma casa de comércio, modesta, um português emigrado que das tripas fazia coração para sobreviver, mas onde sempre se encontrava, pelo menos, uma cerveja fresquinha para nos ajudar a suportar aquelas andanças ao sol, ao calor e à muita poeira que saía das picadas.
Quando eu entrava nessas casas a primeira coisa que eu fazia era dar uma olhada al derredor para ver se encontrava algo que me interessasse e por ali estivesse esquecido. Comprei umas quantas recordações e não só, nessas minhas averiguações.
Um dia, logo de entrada vislumbrei no alto dumas prateleiras umas quantas garrafas de vinho tinto Romeiras, cheias de pó que denunciavam um pouco a sua antiguidade. Era vinho de custo mais elevado que não daria para beber todos os dias. E perguntei ao comerciante:
- Há quanto tempo tem aquelas garrafas ali?
Não me lembro da resposta mas voltei:
- E quanto custa cada uma?
- Posso fazer por “x”.
- Quantas tem?
Tenho uma vaga ideia que seriam umas oito ou dez.
- Vou levar todas.
O meu parceiro da caçada, quis logo que eu dividisse com ele o achado arqueológico! Tive que lhe dizer que se tivesse querido que fizesse o mesmo do que eu.
Ficou um pouco chateado, mas acabou tudo bem quando lhe dei uma para ele beber ao jantar, quando chegasse a casa.
Pois é, o meu amigo Martim Dornellas Cisneiros um dia teve um grave problema de saúde, foi evacuado para Portugal e nunca mais o vi.
Num passeio no velho e famoso “Argus”

Um grande abraço, Martim. De vez em quando bebo outro copo por nós os dois, lembrando aquelas garrafas! E as caçadas.

§              §              §              §              §

Já escrevi várias vezes que comecei a minha vida em África, por Benguela, em 1954, casado, as únicas pessoas que conhecia eram os meus colegas da Lusolanda, empresa onde fui trabalhar com as máquinas agrícolas da Massey-Harris.
Semana toda de trabalho e ao domingo um pouco de praia, naquela maravilha que é a praia Morena com o seu porta-aviões  e as suas casuarinas.


A jovem esposa, com a barriga a crescer, sentava-se na areia, o nosso cão ao lado, e eu ia jogar um pouco de futebol (?) com os colegas para logo que começasse a suar entrar naquele mar que só seve ter igual lá no Éden!
De repente olho para trás e vejo uma senhora que se aproxima da minha mulher e estabelece animada conversa.
Pensei que seria para pedir dinheiro para qualquer caridade e fingi que não via. Mas logo estava a ser chamado.
Essa senhora tinha dois filhos em Portugal, um a estudar em Coimbra e outro de férias tinha arranjado um namorico com a minha cunhada, com quem veio a casar.
Foram os filhos que escreveram à mãe, a dizer-lhe que estava ali um casal novinho, etc.. para que desse um amparo social. E deu
Logo nesse dia levou-nos para jantar em sua casa. O marido não tinha paciência para visitas, cerimónias e outras coisas, e nós logo fomos avisados de que ele, assim que acabasse de jantar se ia meter na cama. Tudo bem.

Natural de Moçamedes, com 15 anos faleceu o seu pai deixando viúva e cinco filhos. Este jovem tomou nas costas o encargo de sustentar a família e foi trabalhar. Toda a vida foi um incansável batalhador.
Acabámos o tal jantar e o senhor sentou-se na sala, numa animadíssima conversa comigo que foi até à meia noite. Jamais isso tinha acontecido, e logo fomos adotados por aquele tão simpático casal.
A senhora adotou a minha mulher que passou a frequentar a elite benguelense onde as senhoras jogavam cartas.
E ele que soube eu gostava de caçar, fez o que também nunca fazia: sábado à tarde desafiava-me para ir com ele dar uma volta pelos arredores da cidade, para ver se caçávamos alguma coisa. Um coelho ou outro, talvez um pequeno antílope, mas a maioria das vezes só caçámos o magnífico pôr do sol dos morros que sobranceiam Benguela.
Vão muitos anos passados, mas os amigos o tempo não apaga da memória.
Passámos a chamar-lhes Mãe Amália e Pai Simeão Madeira de Abreu, nesta fotografia ainda mais novo do que quando o conheci.



Quando me despedi da Lusolanda e resolvemos voltar a Portugal, e levar os nossos poucos trastes, ele, que tinha uma grande empresa de madeiras com marcenaria, fez questão de embalar essa nossa mobília em madeira de lei, Jirassonde, madeira vermelho escura, muito bonita, que exsuda uma resina cor de sangue, (Omulilosonde - chora sangue!), Pterocarpus angolensis, de que depois mandei fazer uma cama e uma cómoda para o quarto do nosso primeiro filho.  Infelizmente a madeira teria precisado de secar pelo menos dois a três anos e, apesar dos móveis terem ficado bonitos, empenaram o suficiente para serem mais tarde abandonados!
Teve um fim triste o Pai Simeão. Quando de repente se viu em pré falência ficou desiquilibrado e teve que ser internado, em Luanda, na psiquiatria.
Ainda o visitei algumas vezes lá. Muito triste, magro, desligado da vida, um dia fechou os olhos. Lembro-o com frequência, saudade e muito carinho.

Jun/2019