quarta-feira, 26 de junho de 2019


Viagens e... vigaristas


O senhor Frédéric Mauro, ilustre historiador francês, num trabalho intitulado Les Portugais: Premiers champions de l’Expantion Outre-Mer, de 1988, dá uma puxadinha à brasa para a sua sardinha dizendo que a redescoberta das Ilhas Canárias se deve a dois franceses, em meados do século XIV.
Os distintos que ele refere seriam Gadifer de La Salle e seu companheiro Jean de Béthancourt, que se conheceram quando em 1390 fizeram uma expedição contra Tunis. Lá se terão desentendido e... não foram às Ilhas Afortunadas, citadas já por Plínio no começo do séc. I, mais tarde por Santo Isidoro de Sevilha séc. XV-XVI, mas antes de todos estes por Juba II, rei da Numídia (52-23 a.C) que ouvindo falar dessas afortunadas ilhas, mandou lá uma expedição para verem o que era. Um deserto cheio de cães (canes) e animais estranhos, que acabaram dando nome às ilhas.
Mas quem leva a palma da redescoberta são mesmo os portugueses, com certeza antes de 1336. Em 1339 já figuram em várias cartas náuticas e em 1345 o rei Afonso V escreveu ao Papa Clemente VI informando terem sido os portugueses os primeiros a ali chegarem, reivindicando assim a sua posse. O Papa não quis saber de conversas! 
O que é sabido é que os dois franceses só lá foram em 1402, e ainda há enciclopédias a dizerem que eles foram os primeiros!
Mais adiante o senhor Mauro não afirma, mas deixa a dúvida de que outro francês teria chegado ao Brasil antes dos portugueses.
Consta, numa publicação, francesa, é evidente, de 1785, que em 1488, alguns armadores de Dieppe teriam confiado um navio a Jean Cousin para tentar alcançar as Índias Orientais, e que este, afastando-se das ilhas dos Açores e do mau tempo teria alcançado a embocadura dum grande rio, talvez o Amazonas, de que tomou posse. Diz a tal publicação que com ele iria Alonso Pinzon. Dali seguiram e atingiram o cabo das Tormentas, isto é o Cabo da Boa Esperança.  Aqui estão de volta os franceses a quererem se aproveitar da inocência dos inocentes,  mentindo-lhes, até porque em 1488, foi quando, finalmente, depois de ter descido a costa ocidental de África, Bartolomeu Dias finalmente dobra o Cabo da Boa Esperança, o que jamais alguém teria feito.


As caravelas não só não eram assim como tinham a Cruz de Cristo nas velas. Mas...

Pouca imaginação teve o senhor Desmarquets, que escreveu essas Memoires, porque se limitou, três séculos depois do desacontecido, a copiar o que tinha sido feito pelos portugueses.
Hoje essa história é considerada uma fábula, mesmo em França. Aliás não há qualquer referência a viagens deste gajo, o tal Jean Cousin, antes do livro de Desmarquets. Vigarista.
Houve, sim, dois Jean Cousin, no séc. XVI em França, ambos pintores, reconhecidos. Mas não navegavam. Só pintavam.
Os portugueses assim que chegaram ao Brasil empreenderam a exploração da madeira corante, o Pau Brasil e até mesmo de cana. Tempo dos 'capitães-donatários' que dividiram o território brasileiro, e o porto de Antuérpia assumiu-se como um centro de redistribuição das especiarias do Oriente no norte da Europa, sob a produção das fábricas e transportes portugueses.
E os franceses? Não tomaram parte oficial das descobertas marítimas dos séculos XV e o início do XVI. A primeira expedição através do Atlântico Sul, organizada a partir de Dieppe por Verrazano, data de 1523: é pior do que os espanhóis, em 1492.
Não voltemos à lenda da descoberta da Guiné pelos normandos (outra estúpida “invenção a la française”!), ou do descobrimento do Brasil por Jean Cousin.
Piratas ou comerciantes franceses decidem ir logo para o Brasil. Mas quando? De acordo com a cópia de uma carta conhecida por um alemão e referindo-se a um barco de volta a este país em um 12 de outubro, os nativos garantiram aos portugueses que viam aparecer de tempo em tempo barcos montados por pessoas vestidas como eles, mas quase todos com uma barba vermelha. "Por estes sinais, os português entenderam que seriam franceses. Mas não sabemos em que ano essas coisas aconteceram, provavelmente no início do século XVI.”
Mais interessante é a história de Paulmier de Gonneville, marinheiro de Honfleur que, em 1505, conta para o Almirantado de Rouen, a aventura de que foi ator e testemunha:
«Este capitão de Honfleur tinha sido seduzido, durante a sua estadia em Lisboa, "pela beleza e riqueza das mercadorias e outras raridades" trazidas de Calecute e tinha decidido visitar as Índias, para o que "contratou dois portugueses bem pagos que depois foram devolvidos". Organizou em Honfleur, uma esperançosa parceria de nove pessoas para equipar um navio de cento e vinte toneladas e 60 homens, que zarpou em 24 de junho de 1503. A viagem foi tranquila até 9 de novembro quando se levantou uma forte tempestade. O barco foi até às proximidades dumas ilhas (que ele chama de Tristão da Cunha, mas que ainda não tinham sido descobertas!) é depois desviado para e noroeste até  "uma grande terra" onde ancorou a 5 de janeiro de 1504, em um rio semelhante ao Orn (?). Foi no Brasil que ele tocou, talvez em torno de 26° graus de latitude sul (Joinville? Paranaguá?). Os normandos passaram seis meses no país e excursionaram para o interior até dois dias de caminho da costa. O velho rei Arosca impressionado pela nova gente, o navio e artilharia e pelas conversa que conseguiram estabelecer com os visitantes, além de alguns presentes que recebeu e o bom tratamento dispensado, pensou até que tivessem "descido anjos do céu".
Em troca de ferramentas e outros objetos de pequeno valor, deram-lhes comida e quase cem quintais de "peles, plumas e raízes para tingir..." o que "na França teria valido bom preço". No dia da Páscoa, ergueram com pompa, na presença de “um grande povo dos índios", uma "Cruz de madeira de trinta e cinco pés e melhor, bem pintada", gravados de um lado os nomes do Papa, do rei da França e do Almirante e do outro um dístico latino que contém a data do ano em forma de linha do tempo"
Gonneville então retornou à França, trazendo com ele Essomericq, filho do rei Arosca. O rapaz casou com uma rica parente de Gonneville e teve descendência. Um século e meio depois, seu descendente, Abbé Jean Paulmier, pediu para ser enviado ao Brasil para converter os índios. Gonneville acreditava ter tido antecessores, de Dieppe, Saint-Malin e outros Normandos ou Bretões, que durante anos já estavam de olho na madeira para tingir de vermelho (o tal Pau Brasil), no algodão, macacos, papagaios "e outras commodities". A algumas regiões do Brasil teriam chegado primeiro, talvez o Honfleurois Jehan Denys pilotado pelo Rouennais Gamart ou Camart em torno de 1519, ou pelo Dieppois Jean Parmentier, em 1520. Os jesuítas portugueses afirmaram que os franceses chegaram ao Brasil em 1504. Mas como, em qualquer caso, há uma boa chance de outro português preceder Cabral, a disputa sobre a verdadeira descoberta do Brasil é insolúvel. Um ponto irrefutável no entanto é a “descoberta oficial” de Cabral, em 1500, apesar de ter sido escondida a descoberta de Duarte Pacheco Pereira, quando em 1498, o Venturoso “o envia além, na grandeza do mar Oceano para descobrir terras ocidentais do Atlântico, onde encontrou uma grande terra firme com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela”!
Tem cara de foz do Amazonas, não tem?
Além disso uma armada sob o comando de André Gonçalves ou Gaspar de Lemos saiu de Lisboa em 1501 para percorrer a costa brasileira, levando a bordo Américo Vespúcio que a foi descrevendo. O seu relato acaba em Cananeia, por ser o limite estabelecido em Tordesillas, mas por uma carta que deixou sabe-se que a armada chegou até ao Rio da Prata, 36° Latitude Sul, deixando o senhor Paulmier em segundo ou terceiro lugar!
Do lado inglês é no século XV, no porto de Bristol, bem situado no sudoeste do país, que eles se lançam para o Oeste. Os marinheiros não conseguem alcançar a Terra-Nova, como se chegou a pensar, mas adquiriram grande experiência sobre ventos e correntes do Atlântico Norte.
A descoberta da Terra-Nova é ainda questão de problemas. Sabemos que em meados do século XV Afonso V assinou um tratado com o rei inglês, Eduardo IV, que autorizava os portugueses a pescarem bacalhau nas costas inglesas, que iam até... onde?
Parece que Diogo de Teive, nascido na ilha da Madeira, fez duas viagens para Norte junto à Terra-Nova onde não desembarcou mas de que trouxe notícia dessa ilha. No regresso da primeira viagem, em 1452, descobriu as ilhas açorianas das Flores e Corvo.
Também John Scolvus, dinamarquês ou polonês, comandando uma armada financiada por Christian I da Dinamarca, para ir à Groelândia (1473-1476), terá atingido a costa de Lavrador, e ainda consta que de um dos navios seria capitão João Vaz Corte-Real.
John Scolvus ou John Kolno, pode não ter descoberto nada, mas... era um bonito rapaz, como se vê no seu retrato pintado por Artur Szyk no séc. XIX ou XX. O que me faz inveja é o chapéu. E notem outro detalhe demasiado curioso: o navio arvora a bandeira dinamarquesa, mas nas velas a Cruz de Cristo! Seria o navio comandado por Corte Real? A Ordem de Cristo teria chegado à Dinamarca? Estranho, né?



Muito estranho será também uma declaração de João III de Portugal ao declarar que, em 1499, a Terra-Nova e os pesqueiros de bacalhau não estavam ainda descobertos. Se não estavam descobertos como ele se atreveu a citar os dois lugares? O famoso secretismo português... um tanto idiota!
O venturoso rei Manuel I mandou então em 1500-1502 os irmãos Corte Real lá para aquelas bandas, e descobriram, outra vez, a Terra de Lavrador e percorreram o litoral da Terra-Nova, ficando-lhes assim o mérito dos primeiros exploradores da Ilha.
  


A seguir, só em 1508 é que lá foi um francês, Jean Denys.
No meio disto Giovanni Cabot também andou por àquelas bandas em 1497, o que dá para discutir se foi ele ou o John Scolvus (com um Corte Real) quem primeiro chegou à América, bem do Norte.
Também Estevão Gomes (meu antepassado?) deixou o seu nome ligado à América do Norte, logo a sul da Terra do Bacalhaus, em 1528.


Nebulosas que o tempo encobre e talvez nunca se venha a saber ao certo como foi.
Mas que era tudo homens machos, destemidos, eram. E o conforto, mais a comidinha e um frio de quebrar os dentes, dentro daquelas cascas de noz... Deus me livre.

(Amplie todos os mapas para ver melhor)

10/06/2019







Um comentário:

  1. Ola, li este seu artigo no voicenews.ca de hoje. Não poderia deixar de comentar que achei muito interessante!
    []s

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