Amigos – 28
Em Luanda
havia um lar para garotos abandonados ou órfãos, que se chamava “Casa dos
Rapazes de Luanda”, fundada em 1947, de que falei no meu livro “Contos
Peregrinos a Preto e Branco”. Ali viviam, alimentados pela caridade e
sobras de gente com mais posses, mais de centena e meia de garotos, encontrados
nas ruas ou órfãos em condições de grande abandono, orfandade ou simplesmente
pobreza, se pobreza é coisa simples.
Nesse tempo
esta Casa, era dirigida por um padre, meu xará. Impressionava ver aquela imensidão
de garotos, vestidos e alimentados, alegres e tristes, abandonados e
recolhidos, sem o calor dos pais, dos avós, dos irmãos, mas com o carinho que
os poucos que ali trabalhavam, conseguiam multiplicar para chegar um pouco a
cada um.
Aproximando-se o Natal,
combinámos passar a noite da Consoada junto daquela garotada. Nós e nossos oito
filhos e mais o casal Milu e Alfredo e seus também oito filhos.
A seguir ao
jantar, o padre que tinha recolhido uns quantos brinquedos, usados, que os
meninos ricos em vez de terem jogado no lixo faziam a boa ação de os dar para os pobres, foi distribui-los. Alguns em bom
estado, grande parte... era lixo.
A cena
chocou. Achei uma infâmia que na noite de Natal uma criança que pouco ou nada
tem na vida, nem a família por perto para a abraçar, recebesse um presente que
era mais uma ofensa à sua dignidade de pobre.
Ali mesmo
fizemos uma espécie de promessa: aqui não volta a entrar lixo. Lixo é lixo, não
é presente para criança, por muito miserável que ela seja.
Um dia
disse ao Padre:
- Vamos montar uma “Operação Sótão”. Sei que já se fez isso uma vez, não
sei quando, numa cidade de Espanha e recolheram-se montes de coisas úteis, de
roupas a móveis, livros, tudo, tudo o que se puder imaginar e que as pessoas
guardam, a maioria das vezes para nada, só para os ratos roerem.
- Mas aqui em África não há sótãos, e muita gente
nem sabe o que isso significa.
- Trocamos o nome, sei lá... “Operação Limpeza”. O
fundamental nisto é a preparação e divulgação.
Pense no assunto e daqui a dias voltamos a falar.
Dias depois
já tínhamos algumas das idéias para pôr o plano em funcionamento.
- O meu amigo Fernando, grande fotógrafo, há-de aqui vir fotografar os garotos.
Com um bom slogan, vamos projetar essa fotografia nos cinemas. A Rádio
Renascença, põe os microfones à nossa disposição. Os jornais com quem falei vão
ceder espaço para igualmente se divulgar a mesma fotografia e o slogan.
O Padre
quis também participar da organização e, como dois a cavalo no mesmo burro...
não dá:
- Padre: o senhor não sabe rezar?
- Essa agora? Então não havia de saber? Que
pergunta é essa?
- E o senhor sabe que lá em cima o Patrão ouve e
atende a pedidos para fins decentes, sobretudo quando feitos por crianças, não
é?
- Sei. E então?
- Então o senhor reza e deixa a organização comigo. Assim vai dar certo.
Pede aos garotos que façam também uma oraçãozinha, simples, que vão ser
ouvidos.
Fez-se a
fotografia, com um monte de garotos, sorridentes, mãos estendidas para o alto.
E os seguintes dizeres emoldurando a garotada:
“CASA DOS
RAPAZES DE LUANDA”
O que você já não quer, NÓS precisamos.
Colabore com a
“OPERAÇÃO LIMPEZA”
Dias ... a
... vamos passar à sua porta.
Só isto. Os
cinemas projetaram o slide, os jornais inseriram a imagem, as rádios locais
falaram no assunto, e as pessoas perguntavam-se o que aquilo era.
Marcou-se uma data, uma
semana antes da Páscoa, pediram-se a amigos que nos cedessem caminhões para
correrem as ruas da cidade a recolher as dádivas, e prepararam-se algumas
crianças da Casa junto com filhos nossos e de amigos, mentalizados para
receberem tudo, tudo menos lixo.
Chegou o
dia. Na Casa, padre e pessoal atarefados à espera ninguém sabia de quê! Na
cidade, hora e local aprazados aparecem os caminhões. As crianças animadíssimas
com a aventura que iam viver!
- Atenção! Última recomendação: nós
não levamos lixo. Só coisas úteis. Aproveitáveis.
E aí vão
pela cidade fora uns cinco caminhões, cada um com três crianças, sempre uma
menina em cada grupo, de porta em porta. A meio da tarde começam a chegar os
carros! As crianças de faces ofegantes, com imenso entusiasmo, todas ao mesmo tempo
a quererem contar as suas peripécias! Os carros carregados! Em cima, roupas de
cama, de vestir, algumas novas, como camisas e sapatos por estrear, livros aos
montes, centenas de discos de música, rádios, toca-discos, geladeiras, fogões,
bicicletas, sofás, cómodas, armários, estantes, livros, muitos livros, camas,
mesas, ferramentas, máquinas diversas, como furadeiras e outras, até
fotográficas, jogos e brinquedos, bolas de todos os tamanhos, etc., etc. Tudo
em bom uso. Ninguém esperava que a resposta da população fosse assim. Falta de
Fé! As orações das crianças têm força!
Onde
guardar tudo aquilo? Era muito mais do que se esperava. O quarto onde os
garotos passavam parte do tempo livre, uma espécie de salinha de estar, até
àquela altura não tinha mais do que dois bancos. De repente lá estava um belo
sofá, várias cadeiras, um rádio, gira discos, duas estantes com montes de
discos e livros.
O mestre
das oficinas, homem muito hábil consertou todas as geladeiras e ninguém mais
bebeu água que não estivesse geladinha!
À tarde
telefonou um homem dizendo que tinha uma carrinha Chevrolet, avariada, e ele já
não queria mandá-la reparar, mas que a reparação era coisa pequena e até pagava
o seu custo. O padre já ia mandar buscar, mas foi advertido:
- Se ele quer mesmo dar, que a venha aqui trazer.
E foi. Três
dias depois estava a rodar! Foram máquinas antigas de marcenaria, mas ainda
muito boas para apetrechar a oficina de aprendizado, e até uma pequena
impressora, duas máquinas de soldar, e muita outra coisa. Tudo isso continuou
depois a chegar à Casa dos Rapazes sem que se fosse buscar. Por fim até a
oferta de um projetor de cinema de 16mm. sonoro, novo, passando as crianças a
ter cinema toda a semana!
A “Operação
Limpeza” acabou. Mas deixou uma importante marca na cidade, tão forte, que
durante anos continuou a receber telefonemas de pessoas dizendo que tinham isto
ou aquilo e perguntando se a Casa queria receber. O saldo final foi espantoso.
Depois da
independência a Casa dos Rapazes foi desfeita!
Como é
evidente, além da amizade com os garotos, surgiu uma amizade forte com o padre,
que fui encontrar mais tarde em Portugal.
Eu seguia
no combóio de Cascais para Lisboa, um senhor de barbas aproxima-se e
pergunta-me:
- É o senhor Amorim?
Não
reconheci logo o barbudo e respondi:
- Atrás dessas barbas estou a reconhecer alguém,
mas estou confuso!
De repente caiu a ficha:
- Padre Freitas???
- Sim. Só que já não sou padre.
Saímos do
combóio e fomos conversar num café. Muita coisa a dizer. Ele deixara o
sacerdócio, casara e era professor de teologia duma faculdade. Já não teve mais
filhos! Mas chorava a saudade daquelas centenas que lhe passaram pelas mãos.
Um dia veio
ao Brasil e estivemos juntos. Voltou para Portugal e uma violenta doença fê-lo
sofrer os últimos anos de vida. O meu bom amigo (padre) Francisco Freitas.
(infelizmente
não tenho nenhuma foto dele)
# # # # #
Na Cuca tive alguns administradores de quem
guardo saudade e respeito, e especial simpatia.
Lembro, quando
estagiei no Porto, do Eng. Seguro
Ferreira, bem mais velho do que eu, mas muito atencioso, já em Angola, do
famoso José Manuel Martins, que foi
uma astro do Sporting entre 1926 e 28, sendo 11 vezes seu capitão, e toda a
gente na Cuca o estimava muito por
ser sempre bem disposto e ótima companhia, e além de outros daquele que vou
agora referir.
Como já
contei por diversas vezes que a minha saída da companhia foi causada pelo
desentendimento com um administrador, porque, como já disse, desaforo... só levo
de pobre.
Apresentei,
por escrito a minha demissão, mas em Lisboa, durante um conselho de
administração, um dos administradores, propôs que eu fosse nomeado diretor do
que veio a chamar-se o Grupo 2, que era composto pelas novas empresas que
entretanto a Cuca ia criando, tendo a
fábrica de rações que eu montei do zero, sido a primeira.
Desta
maneira eu sairia debaixo da alçada do que foi grosso comigo e continuaria no
grupo, valorizado.
Mas a minha
carta tinha sido já entregue e não houve volta. Paciência.
Saí.
Poucos dias
depois esse administrador foi visitar-me onde eu estava a trabalhar. J. Pinto
Comercial. Material fotográfico. Foi extremamente simpático, como aliás sempre
fora, e era o único administrador que o pessoal da Cuca realmente considerava.
Amável,
interessou-se pelo meu novo job e
saiu de lá com um belo conjunto de cinema, 8 mm. De volta à companhia, chamou
os diretores e chefes de serviço e fez questão de mostrar o eu lhe tinha vendido e que ele
nem sabia como usar. Foi, sempre inteligente, uma maneira de mostrar àquela
gente o colega que tinham deixado sair. Nunca
esqueci essa atitude dele.
Anos
depois, já eu estava no Brasil, visitei-o depois em Lisboa, casado de novo com
uma simpática, muito simpática, senhora que eu conhecera de solteira. Almocei
em sua casa, e soube com tristeza que a doença começara a abalar a sua saúde.
Um dia
deixou-nos. E deixou-me uma dívida de gratidão que não consegui saldar, e um
exemplo de correção e dignidade. Caetano
Sanguinetti Beirão da Veiga.
# # # # #
Na vida
acontecem-nos coisas inesperadas, mas que se tornam marcos a jamais esquecer.
Saído de
Angola, os primeiros tempos no Brasil foram assaz complicados. Um curriculum
bem recheado, uma série de promessas dum éden
profissional, promessas jamais concretizadas, quase que nem ensaiadas, um pouco
dinheiro a sumir com vertiginosa rapidez, hospedagem em hotéis de terceira,
enfim, um corre-corre atrás dum terreno em que pudesse usar a minha enxada de
experiências.
Não sei já
como surgiu, em São Paulo, um contato com uma firma especializada em projetos e
equipamentos para olarias, para a produção de telhas e tijolos, onde fui muito
bem recebido pelo proprietário, um engenheiro italiano, grande técnico em
argilas e olarias, altão, simpático, tendo-se criado logo uma empatia especial.
Lembro de
ter ido jantar a sua casa. Italiana. Para antipasto
uma belíssima macarronada, que repeti! E quando então chega o prato principal
tive que declinar. Aquela pasta tinha sido já um jantar ótimo!
Passei uns
dias a seu lado, visitámos a oficina, alguns clientes, e recebo então uma
proposta tentadora: como, ele me disse, eu valia bem mais do que qualquer dos
funcionários que ali trabalhavam, tinha que me pagar bem mais. Mas isso assim
de entrada iria causar mau estar, e a proposta era simples: da conta dele ia-me
dando o dinheiro que eu precisasse e no fim dum mês já os outros teriam visto o
que eu valia e o assunto ficava resolvido.
Entretanto,
sozinho neste imenso país, a família ainda à espera em Portugal, as horas fora
do trabalho eram ocupadas a ler os jornais. E isso foi a causa do meu
desespero: um assassinato aqui, outro
além, o sequestro duma criança, o assalto a diversas residências, e outras
“atrações” daquela imensa capital, levaram-me a pensar que não era lugar para
trazer a família, com sete filhos, tendo o mais novo cinco anos.
Em boa verdade,
tive medo de ficar em São Paulo, e fiz a maior estupidez da minha vida indo
para o Rio.
Um ano e
meio depois regresso a São Paulo, não sei já porque não voltei a discutir
trabalhar com ele, mas como precisei de abrir uma firma para vender os produtos
que eu entretanto “inventara”, foi ele que convidei para ser meu sócio sem que
tivesse que investir um só centavo.
Pouco tempo
depois soube do desastre que se tinha abatido sobre o ele. A firma estava para
falir!
A mulher,
que geria as finanças, mancomunada com o gerente de vendas, atraiçoando o
marido, nas finanças e nas camas, tinham montado uma arapuca miserável: a firma
pagava antecipadamente as comissões sobre vendas, que se verificaram fictícias!
Assim arruinaram o negócio, divorciaram-se e o meu amigo e sócio... sumiu.
Triste,
parece que terá voltado para Itália, para a sua L’Aquila, nos Abruzos dos
Apeninos.
Nunca mais
o vi nem soube do seu paradeiro, mas ainda hoje lembro com saudade aquele
italiano, grandão, simpático, competente, amigo.
Un abbraccio
dopo quasi mezzo secolo, Umberto
Sebastiani.
# # # # #
Nas minhas
andanças por este mundo de sobrevivência encontrei gente de toda a qualidade.
Já esqueci os medíocres, recordo como anedota os vigaristas e os maus
pagadores, mas guardo com saudade alguns que, de clientes viraram amigos.
Um deles,
homem culto, jogador de tênis, inteligente, com doutoramento na Sorbonne, tendo
feito parte de um dos governos do Estado de São Paulo, afável e sempre de ótima
disposição, um dia me encomendou uma instalação de som e vídeo em sua casa.
Casado com uma senhora de quem virei também a falar, advogada que fez parte da
comissão que preparou a Constituição de 1988 no que dizia respeito aos assuntos
da mulher, recebia-me em sua casa como uma amigo, tendo por diversas vezes lá
almoçado e até jantado com eles, o que retribui, com muito prazer, em nossa
casa.
O autêntico
sósia do Omar Sharif! Tão parecido que um dia em Nova York decidiu ir jantar ao
restaurante onde ele sabia que o ator costuma frequentar. À entrada foi logo
muito cumprimentado, veio o gerente que levou para a “sua” mesa e que depois
lhe faz a clássica pergunta:
- O de sempre, senhor Sharif ?
A resposta
foi simples:
- Sim, o de sempre!
Não sabia de todo o que ia beber, mas cumpriu
o seu papel de perfeito sósia!
Era sócio,
principal, duma empresa de informática que nessa altura trabalhava, e bem, o
sistema MUMPS que havia implantado em alguns hospitais, muitos dos quais o
utilizam até hoje.
A certa
altura eu fui para Portugal tentar por lá continuar a vida, o que se verificou
ter sido um tremendo falhanço, e este amigo, propôs-me levar esse sistema para
Portugal onde a informatização dos hospitais simplesmente não existia.
A
“linguagem MUMPS” era, e é, paradoxalmente complicada e simples, sobretudo para
mim que nada entendo o que existe na “barriga” dos computadores. Ele
forneceu-me toda a documentação disponível e em Lisboa surgiu um pseudo
luso-brasileiro que disse conhecer o assunto. Quase um ano a trabalhar comigo, eu cego no assunto a
ser explorado por quem nada sabia, e essa hipótese de entrar nos hospitais, que
eu entretanto visitara e esperavam ansiosos pelos programas... acabou morrendo,
e eu com vontade de torcer o pescoço ao vigarista.
Um dia o
nosso amigo apareceu lá por Lisboa. Pensou em pôr algum dinheiro fora do Brasil
e abriu uma conta num banco em Portugal... em nome da minha mulher, tal a
confiança que havia entre nós!
Levámo-lo a
dar uma volta por Sintra e um dia fomos almoçar a um antigo e ótimo restaurante,
que se chama o “31 da Armada”! Como neste passeios ouviu uma frase bem
portuguesa que, quando se quer mencionar alguém que nada vale e muito quer
aparecer, chamam-lhe “carapau de
corrida”!
O nosso
amigo por fim já baralhando tudo e chamava-lhes então: “o carapau da Armada”!
O negócio
não funcionou mas a amizade perdurou.
Nenhum
negócio em que tentei por lá ficar não prosperou. Voltámos para o Brasil, e
estive ainda algumas vezes com ele em São Paulo.
Chamou-se
esse amigo Guilherme Dutra da Fonseca.
Fev/2019
Francisco Amorim eu gosto muito, mas mesmo muito da sua forma de escrever, comentar o mundo e ainda do seu carater ( que vislumbro na sua escrita, ao falar dos amigos com tanta ternura, da casa dos meninos de Luanda, do padre ou nos inteligentes comentários sobre a politica do mundo e os seus dirigentes . A idade e tudo o que passou vivendo em três continentes certamente ajudaram-no muito a ver o mundo com grande realidade… Se não se importa a minha sobrinha Mariana Marques Guedes ( filha da minha irmã Joana ) muito querida e que é atriz e dá aulas ( estudou em Londres) pediu-me para lhe enviar o seu Blog porque gostava de o ver. Não se importa ? Pessoalmente acho que o seu Blog faz parte da NOSSA História, na maneira de descrições de vida . Quando poder, escreva sobre a vida em Angola, passeios, lugares, etc. como descreveu a casa dos rapazes de Luanda. Obrigado Ana
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