quinta-feira, 13 de junho de 2019


Amigos – 28

Em Luanda havia um lar para garotos abandonados ou órfãos, que se chamava “Casa dos Rapazes de Luanda”, fundada em 1947, de que falei no meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”. Ali viviam, alimentados pela caridade e sobras de gente com mais posses, mais de centena e meia de garotos, encontrados nas ruas ou órfãos em condições de grande abandono, orfandade ou simplesmente pobreza, se pobreza é coisa simples.
Nesse tempo esta Casa, era dirigida por um padre, meu xará. Impressionava ver aquela imensidão de garotos, vestidos e alimentados, alegres e tristes, abandonados e recolhidos, sem o calor dos pais, dos avós, dos irmãos, mas com o carinho que os poucos que ali trabalhavam, conseguiam multiplicar para chegar um pouco a cada um.
Aproximando-se o Natal, combinámos passar a noite da Consoada junto daquela garotada. Nós e nossos oito filhos e mais o casal Milu e Alfredo e seus também oito filhos.
A seguir ao jantar, o padre que tinha recolhido uns quantos brinquedos, usados, que os meninos ricos em vez de terem jogado no lixo faziam a boa ação de os dar para os pobres, foi distribui-los. Alguns em bom estado, grande parte... era lixo.
A cena chocou. Achei uma infâmia que na noite de Natal uma criança que pouco ou nada tem na vida, nem a família por perto para a abraçar, recebesse um presente que era mais uma ofensa à sua dignidade de pobre.
Ali mesmo fizemos uma espécie de promessa: aqui não volta a entrar lixo. Lixo é lixo, não é presente para criança, por muito miserável que ela seja.
Um dia disse ao Padre:
- Vamos montar uma “Operação Sótão”. Sei que já se fez isso uma vez, não sei quando, numa cidade de Espanha e recolheram-se montes de coisas úteis, de roupas a móveis, livros, tudo, tudo o que se puder imaginar e que as pessoas guardam, a maioria das vezes para nada, só para os ratos roerem.
- Mas aqui em África não há sótãos, e muita gente nem sabe o que isso significa.
- Trocamos o nome, sei lá... “Operação Limpeza”. O fundamental nisto é a preparação e divulgação.  Pense no assunto e daqui a dias voltamos a falar.
Dias depois já tínhamos algumas das idéias para pôr o plano em funcionamento.
- O meu amigo Fernando, grande fotógrafo, há-de aqui vir fotografar os garotos. Com um bom slogan, vamos projetar essa fotografia nos cinemas. A Rádio Renascença, põe os microfones à nossa disposição. Os jornais com quem falei vão ceder espaço para igualmente se divulgar a mesma fotografia e o slogan.
O Padre quis também participar da organização e, como dois a cavalo no mesmo burro... não dá:
- Padre: o senhor não sabe rezar?
- Essa agora? Então não havia de saber? Que pergunta é essa?
- E o senhor sabe que lá em cima o Patrão ouve e atende a pedidos para fins decentes, sobretudo quando feitos por crianças, não é?
- Sei. E então?
- Então o senhor reza e deixa a organização comigo. Assim vai dar certo. Pede aos garotos que façam também uma oraçãozinha, simples, que vão ser ouvidos.
Fez-se a fotografia, com um monte de garotos, sorridentes, mãos estendidas para o alto. E os seguintes dizeres emoldurando a garotada:
“CASA  DOS  RAPAZES  DE  LUANDA”
O que você já não quer, NÓS  precisamos.
Colabore com a  “OPERAÇÃO LIMPEZA”
Dias ...  a ...  vamos passar à sua porta.

Só isto. Os cinemas projetaram o slide, os jornais inseriram a imagem, as rádios locais falaram no assunto, e as pessoas perguntavam-se o que aquilo era.
Marcou-se uma data, uma semana antes da Páscoa, pediram-se a amigos que nos cedessem caminhões para correrem as ruas da cidade a recolher as dádivas, e prepararam-se algumas crianças da Casa junto com filhos nossos e de amigos, mentalizados para receberem tudo, tudo menos lixo.
Chegou o dia. Na Casa, padre e pessoal atarefados à espera ninguém sabia de quê! Na cidade, hora e local aprazados aparecem os caminhões. As crianças animadíssimas com a aventura que iam viver!
- Atenção! Última recomendação: nós não levamos lixo. Só coisas úteis. Aproveitáveis.
E aí vão pela cidade fora uns cinco caminhões, cada um com três crianças, sempre uma menina em cada grupo, de porta em porta. A meio da tarde começam a chegar os carros! As crianças de faces ofegantes, com imenso entusiasmo, todas ao mesmo tempo a quererem contar as suas peripécias! Os carros carregados! Em cima, roupas de cama, de vestir, algumas novas, como camisas e sapatos por estrear, livros aos montes, centenas de discos de música, rádios, toca-discos, geladeiras, fogões, bicicletas, sofás, cómodas, armários, estantes, livros, muitos livros, camas, mesas, ferramentas, máquinas diversas, como furadeiras e outras, até fotográficas, jogos e brinquedos, bolas de todos os tamanhos, etc., etc. Tudo em bom uso. Ninguém esperava que a resposta da população fosse assim. Falta de Fé! As orações das crianças têm força!
Onde guardar tudo aquilo? Era muito mais do que se esperava. O quarto onde os garotos passavam parte do tempo livre, uma espécie de salinha de estar, até àquela altura não tinha mais do que dois bancos. De repente lá estava um belo sofá, várias cadeiras, um rádio, gira discos, duas estantes com montes de discos e livros.
O mestre das oficinas, homem muito hábil consertou todas as geladeiras e ninguém mais bebeu água que não estivesse geladinha!
À tarde telefonou um homem dizendo que tinha uma carrinha Chevrolet, avariada, e ele já não queria mandá-la reparar, mas que a reparação era coisa pequena e até pagava o seu custo. O padre já ia mandar buscar, mas foi advertido:
- Se ele quer mesmo dar, que a venha aqui trazer.
E foi. Três dias depois estava a rodar! Foram máquinas antigas de marcenaria, mas ainda muito boas para apetrechar a oficina de aprendizado, e até uma pequena impressora, duas máquinas de soldar, e muita outra coisa. Tudo isso continuou depois a chegar à Casa dos Rapazes sem que se fosse buscar. Por fim até a oferta de um projetor de cinema de 16mm. sonoro, novo, passando as crianças a ter cinema toda a semana!
A “Operação Limpeza” acabou. Mas deixou uma importante marca na cidade, tão forte, que durante anos continuou a receber telefonemas de pessoas dizendo que tinham isto ou aquilo e perguntando se a Casa queria receber. O saldo final foi espantoso.
Depois da independência a Casa dos Rapazes foi desfeita!
Como é evidente, além da amizade com os garotos, surgiu uma amizade forte com o padre, que fui encontrar mais tarde em Portugal.
Eu seguia no combóio de Cascais para Lisboa, um senhor de barbas aproxima-se e pergunta-me:
- É o senhor Amorim?
­Não reconheci logo o barbudo e respondi:
- Atrás dessas barbas estou a reconhecer alguém, mas estou confuso!
­De repente caiu a ficha:
- Padre Freitas???
- Sim. Só que já não sou padre.
Saímos do combóio e fomos conversar num café. Muita coisa a dizer. Ele deixara o sacerdócio, casara e era professor de teologia duma faculdade. Já não teve mais filhos! Mas chorava a saudade daquelas centenas que lhe passaram pelas mãos.
Um dia veio ao Brasil e estivemos juntos. Voltou para Portugal e uma violenta doença fê-lo sofrer os últimos anos de vida. O meu bom amigo (padre) Francisco Freitas.
(infelizmente não tenho nenhuma foto dele)
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Na Cuca tive alguns administradores de quem guardo saudade e respeito, e especial simpatia.
Lembro, quando estagiei no Porto, do Eng. Seguro Ferreira, bem mais velho do que eu, mas muito atencioso, já em Angola, do famoso José Manuel Martins, que foi uma astro do Sporting entre 1926 e 28, sendo 11 vezes seu capitão, e toda a gente na Cuca o estimava muito por ser sempre bem disposto e ótima companhia, e além de outros daquele que vou agora referir.
Como já contei por diversas vezes que a minha saída da companhia foi causada pelo desentendimento com um administrador, porque, como já disse, desaforo... só levo de pobre.
Apresentei, por escrito a minha demissão, mas em Lisboa, durante um conselho de administração, um dos administradores, propôs que eu fosse nomeado diretor do que veio a chamar-se o Grupo 2, que era composto pelas novas empresas que entretanto a Cuca ia criando, tendo a fábrica de rações que eu montei do zero, sido a primeira.
Desta maneira eu sairia debaixo da alçada do que foi grosso comigo e continuaria no grupo, valorizado.
Mas a minha carta tinha sido já entregue e não houve volta. Paciência.
Saí.
Poucos dias depois esse administrador foi visitar-me onde eu estava a trabalhar. J. Pinto Comercial. Material fotográfico. Foi extremamente simpático, como aliás sempre fora, e era o único administrador que o pessoal da Cuca realmente considerava.
Amável, interessou-se pelo meu novo job e saiu de lá com um belo conjunto de cinema, 8 mm. De volta à companhia, chamou os diretores e chefes de serviço e fez questão de mostrar o eu lhe tinha vendido e que ele nem sabia como usar. Foi, sempre inteligente, uma maneira de mostrar àquela gente o colega que tinham deixado sair. Nunca esqueci essa atitude dele.
Anos depois, já eu estava no Brasil, visitei-o depois em Lisboa, casado de novo com uma simpática, muito simpática, senhora que eu conhecera de solteira. Almocei em sua casa, e soube com tristeza que a doença começara a abalar a sua saúde.
Um dia deixou-nos. E deixou-me uma dívida de gratidão que não consegui saldar, e um exemplo de correção e dignidade. Caetano Sanguinetti Beirão da Veiga.

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Na vida acontecem-nos coisas inesperadas, mas que se tornam marcos a jamais esquecer.
Saído de Angola, os primeiros tempos no Brasil foram assaz complicados. Um curriculum bem recheado, uma série de promessas dum éden profissional, promessas jamais concretizadas, quase que nem ensaiadas, um pouco dinheiro a sumir com vertiginosa rapidez, hospedagem em hotéis de terceira, enfim, um corre-corre atrás dum terreno em que pudesse usar a minha enxada de experiências.
Não sei já como surgiu, em São Paulo, um contato com uma firma especializada em projetos e equipamentos para olarias, para a produção de telhas e tijolos, onde fui muito bem recebido pelo proprietário, um engenheiro italiano, grande técnico em argilas e olarias, altão, simpático, tendo-se criado logo uma empatia especial.
Lembro de ter ido jantar a sua casa. Italiana. Para antipasto uma belíssima macarronada, que repeti! E quando então chega o prato principal tive que declinar. Aquela pasta tinha sido já um jantar ótimo!
Passei uns dias a seu lado, visitámos a oficina, alguns clientes, e recebo então uma proposta tentadora: como, ele me disse, eu valia bem mais do que qualquer dos funcionários que ali trabalhavam, tinha que me pagar bem mais. Mas isso assim de entrada iria causar mau estar, e a proposta era simples: da conta dele ia-me dando o dinheiro que eu precisasse e no fim dum mês já os outros teriam visto o que eu valia e o assunto ficava resolvido.
Entretanto, sozinho neste imenso país, a família ainda à espera em Portugal, as horas fora do trabalho eram ocupadas a ler os jornais. E isso foi a causa do meu desespero: um assassinato aqui, outro além, o sequestro duma criança, o assalto a diversas residências, e outras “atrações” daquela imensa capital, levaram-me a pensar que não era lugar para trazer a família, com sete filhos, tendo o mais novo cinco anos.
Em boa verdade, tive medo de ficar em São Paulo, e fiz a maior estupidez da minha vida indo para o Rio.
Um ano e meio depois regresso a São Paulo, não sei já porque não voltei a discutir trabalhar com ele, mas como precisei de abrir uma firma para vender os produtos que eu entretanto “inventara”, foi ele que convidei para ser meu sócio sem que tivesse que investir um só centavo.
Pouco tempo depois soube do desastre que se tinha abatido sobre o ele. A firma estava para falir!
A mulher, que geria as finanças, mancomunada com o gerente de vendas, atraiçoando o marido, nas finanças e nas camas, tinham montado uma arapuca miserável: a firma pagava antecipadamente as comissões sobre vendas, que se verificaram fictícias! Assim arruinaram o negócio, divorciaram-se e o meu amigo e sócio... sumiu.
Triste, parece que terá voltado para Itália, para a sua L’Aquila, nos Abruzos dos Apeninos.
Nunca mais o vi nem soube do seu paradeiro, mas ainda hoje lembro com saudade aquele italiano, grandão, simpático, competente, amigo.
Un abbraccio dopo quasi mezzo secolo, Umberto Sebastiani.

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Nas minhas andanças por este mundo de sobrevivência encontrei gente de toda a qualidade. Já esqueci os medíocres, recordo como anedota os vigaristas e os maus pagadores, mas guardo com saudade alguns que, de clientes viraram amigos.
Um deles, homem culto, jogador de tênis, inteligente, com doutoramento na Sorbonne, tendo feito parte de um dos governos do Estado de São Paulo, afável e sempre de ótima disposição, um dia me encomendou uma instalação de som e vídeo em sua casa. Casado com uma senhora de quem virei também a falar, advogada que fez parte da comissão que preparou a Constituição de 1988 no que dizia respeito aos assuntos da mulher, recebia-me em sua casa como uma amigo, tendo por diversas vezes lá almoçado e até jantado com eles, o que retribui, com muito prazer, em nossa casa.
O autêntico sósia do Omar Sharif! Tão parecido que um dia em Nova York decidiu ir jantar ao restaurante onde ele sabia que o ator costuma frequentar. À entrada foi logo muito cumprimentado, veio o gerente que levou para a “sua” mesa e que depois lhe faz a clássica pergunta:
- O de sempre, senhor Sharif ?
A resposta foi simples:
- Sim, o de sempre!
 Não sabia de todo o que ia beber, mas cumpriu o seu papel de perfeito sósia!
Era sócio, principal, duma empresa de informática que nessa altura trabalhava, e bem, o sistema MUMPS que havia implantado em alguns hospitais, muitos dos quais o utilizam até hoje.
A certa altura eu fui para Portugal tentar por lá continuar a vida, o que se verificou ter sido um tremendo falhanço, e este amigo, propôs-me levar esse sistema para Portugal onde a informatização dos hospitais simplesmente não existia.
A “linguagem MUMPS” era, e é, paradoxalmente complicada e simples, sobretudo para mim que nada entendo o que existe na “barriga” dos computadores. Ele forneceu-me toda a documentação disponível e em Lisboa surgiu um pseudo luso-brasileiro que disse conhecer o assunto. Quase um ano a trabalhar comigo, eu cego no assunto a ser explorado por quem nada sabia, e essa hipótese de entrar nos hospitais, que eu entretanto visitara e esperavam ansiosos pelos programas... acabou morrendo, e eu com vontade de torcer o pescoço ao vigarista.
Um dia o nosso amigo apareceu lá por Lisboa. Pensou em pôr algum dinheiro fora do Brasil e abriu uma conta num banco em Portugal... em nome da minha mulher, tal a confiança que havia entre nós!
Levámo-lo a dar uma volta por Sintra e um dia fomos almoçar a um antigo e ótimo restaurante, que se chama o “31 da Armada”! Como neste passeios ouviu uma frase bem portuguesa que, quando se quer mencionar alguém que nada vale e muito quer aparecer, chamam-lhe “carapau de corrida”!
O nosso amigo por fim já baralhando tudo e chamava-lhes então: “o carapau da Armada”!
O negócio não funcionou mas a amizade perdurou.
Nenhum negócio em que tentei por lá ficar não prosperou. Voltámos para o Brasil, e estive ainda algumas vezes com ele em São Paulo.
Chamou-se esse amigo Guilherme Dutra da Fonseca.


Fev/2019

Um comentário:

  1. Francisco Amorim eu gosto muito, mas mesmo muito da sua forma de escrever, comentar o mundo e ainda do seu carater ( que vislumbro na sua escrita, ao falar dos amigos com tanta ternura, da casa dos meninos de Luanda, do padre ou nos inteligentes comentários sobre a politica do mundo e os seus dirigentes . A idade e tudo o que passou vivendo em três continentes certamente ajudaram-no muito a ver o mundo com grande realidade… Se não se importa a minha sobrinha Mariana Marques Guedes ( filha da minha irmã Joana ) muito querida e que é atriz e dá aulas ( estudou em Londres) pediu-me para lhe enviar o seu Blog porque gostava de o ver. Não se importa ? Pessoalmente acho que o seu Blog faz parte da NOSSA História, na maneira de descrições de vida . Quando poder, escreva sobre a vida em Angola, passeios, lugares, etc. como descreveu a casa dos rapazes de Luanda. Obrigado Ana

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