O Vinho de Colares
Pelas faldas norte da serra de Sintra, onde os ventos
do Noroeste trazem água e frescura, corre um pequenino rio que teimosamente
vai-se desembaraçando para chegar ao mar.
Quantas vezes fui no Elétrico de Sintra para a Praia
das Maçãs! Os meus avós tinham uma quinta em Sintra onde eu sempre passei as
férias de verão e, já depois deles terem ido, ainda para lá passei uns anos.
Era uma “viagem” magnífica. Aqueles carros abertos,
sempre um belo fresquinho, até porque a estrada era, e é marginada por
arvoredo, sobretudo belos plátanos que em muito lugar formavam quase um túnel.
Criança, ia com os meus irmãos e alguém a tomar conta
de nós, e depois, adolescente em grupo de amigos sintrenses, alguns que, como
eu, ainda resistem aos tempos, e muitos que já descansam.
Demorava para percorrer aqueles quase 13 quilómetros uns
45 minutos, era quase british nos
seus horários, mas ninguém se queixava pelo tempo que durava o trajeto. Atravessava
o que dantes foi Concelho e hoje é só freguesia, Colares. Era um passeio
extremamente agradável, tanto na ida para a praia, a descer, como no regresso a
subir. O carro elétrico seguia, sempre tranquilo, e às vezes até nos permitia
sair um pouco e acompanhá-lo a pé! Brincadeiras de moleque.
A linha margeava a estrada e esta aquele riozinho
bonito, estreito, sempre com belíssima água a percorrê-lo, conhecido por alguns
como o Rio Galamares, local que fica no caminho para a praia, mas o seu verdadeiro
nome é Rio das Maçãs, que deu o nome à praia onde encontra o mar.
Rio conhecido desde... desde ninguém sabe quando, mas
já João de Barros no seu livro traduzido do húngaro, a Crónica do Imperador
Constantino, de 1522 – que ele diz ser antepassado dos reis de Portugal – nos conta:
“Rio muy gracioso que pelo meio destes pomares
corre coalhado de muita fruta e flores. E com um ruído suave se mete no mar
onde faz a repartição delas, lançando-as por tantas partes, que daí a 6 ou 7
léguas se acham muitas maçãs, peras, marmelos e outros sinais de terra, com que
os navegantes se alegram. E saindo dos pomares entram em terra de pão, vinho,
azeite e outros géneros de mantimentos e criação de gados, que a fertilidade da
terra ali dá.”
Mapa de
1923, onde se vê bem o Rio das Maçãs. A linha azul. Clicar para ampliar.
E terra de pão, bom. Ótimo. No princípio dos anos 40,
havia em Colares, quase ao lado da Adega Cooperativa, uma espécie de “tasca” –
naqueles tempos era o que havia – onde no regresso da praia sempre parávamos
para comprar o pão e levá-lo para o almoço na quinta dos avós, onde, ao
domingo se juntavam 15 a 20 convivas. E
que pão....
Terra dos saloios,
“çahroi” do tempo dos árabes, nome que lhes ficou porque esse era o nome do
imposto que os agricultores tinham que pagar para vender os seus produtos em
Lisboa.
Entre muita coisa que os anos me “obrigaram” a guardar,
muito lixo e muita coisa interessante, infelizmente não vinho, não porque se
teria estragado, e porque o fui entornando goela abaixo, está um pequeno
opúsculo, editado em 1938 pela Adega Cooperativa de Colares.
Uma delícia e uma tristeza. Delícia pela descrição e
fotos daqueles tempos – há mais de 80 anos – e uma tristeza por ver que pouco
sobra da área plantada de vinha, e daí menos pomada, a melhor de Portugal.
Colares, pitorescamente situada num dos contrafortes
da serra, a região ainda é belíssima pela sua exuberante vegetação, é um dos
mais admiráveis centros de excursão desta região paradisíaca, como escreveu
Jorge de Sena. Região afamada por suas frutas, pêssegos e maçãs, mas sobretudo
pelo seu vinho.
Sabe-se que os romanos ali estiveram, e os árabes,
haja em seu abono o nome que deixaram aos agricultores de toda aquela região.
Sintra foi conquistada aos mouros em 1147 e logo D. Afonso
Henriques lhes proporcionou reduzidos tributos: “Os peões lavrando com um boi pagavam um sexteiro de trigo e cevada;
lavrando com dois ou mais um quarteiro por alqueire de mercado; de cinco quináles
de vinho e daí para cima davam um puzal. Por tudo o mais que ganhassem eram
isentos de tributos.”
(Nota:
um sexteiro era igual a ¾ de alqueire ou 1/6 de moio, moio igual a 60 alqueires.
Quinal era uma medida de vinho equivalente a 5 almudes. Um almude teria 17 a 25
litros, mas puzal não encontrei o que seria! Mas como todas estas medidas
evoluíram muito, não servem, aqui, mais do que uma ideia...)
Nota 2.
Lancei um apelo a escritores e historiadores e 5 minutos depois tinha a
resposta ao “puzal” = puçal, medida equivalente a 5 almudes. Dunque,
igual a “quintal”! Muito obrigado meu querido amigo Dr. José Costa Carvalho)
Neste foral de 1154, Sintra limita com o Rio de
Galamares! Só mais tarde começou a ter dois nomes. Rio navegável que entrava no
mar por um porto sem areias. Onde?
Em 1255 D. Afonso III, concedeu o primeiro foral a
Colares, e fez doação do Reguengo de Colares a Pedro Miguel e sua mulher Maria
Estevão, com obrigação de plantarem vinhas. E ainda mandou publicar que quem
cortasse vinha ou derribasse caça era
condenado a pagar 300 maravedis.
D. Diniz ajustou com os mouros que possuíssem terras
em Colares, e doou a seu filho, infante Pedro Afonso uma adega, diversas vinhas
azenhas e outros domínios em Sintra e arredores.
O Livro das Colheitas de D. Afonso IV mostra que em Sintra
a produção de vinho era de três modios em Sintra e três nos arredores.
D. Fernando (1367-1383) autorizou a primeira
exportação de vinho da região.
Em 1385, logo após a Batalha de Aljubarrota D. João I doou
a vila de Colares ao Condestável D. Nuno Álvares Pereira, que ficou na família
por séculos..
D. Manuel em 1516 renovou o foral e aumentou os
privilégios de que gozavam, com a mercê de não pagarem portagem – o tal saloio
– e reduzindo para um quarto o tributo dos frutos.
Tudo isto mostra que o vinho Ramisco tem desde o século XIII a sua “carta de nobreza”!
Havia naquela região dois tipos de vinho a que
chamavam de Ramisco mas o verdadeiro
é o vinho de areias. Pensam alguns geólogos que a costa, há cerca de mil anos
estava muito mais terra adentro do que hoje. Consta até, pelo foral de Afonso
III, que em Colares havia um porto de mar, do tempo do romanos, chamado Basa,
que tudo leva a supor que hoje seja o Banzão!
Foram os ventos do N e NO que carregaram a areia que
hoje compõe os terrenos onde é, aliás eram, plantadas as vinhas do Ramisco.
E isso é que lhe dá toda a grande qualidade.
É bom não esquecer que foi a única cepa que a filoxera
não conseguiu destruir, comendo as raízes. E para compreender um pouco isso
vamos ver como se plantava esta vinha.
A profundidade das areias até atingirem o subsolo
argiloso, oscila entre 3 e 10 metros. Os agricultores abriam valas de grande
profundidade até alcançarem a argila onde espetavam os bacelos até 25 cm. de profundidade
e, à medida que estes iam crescendo iam juntando à sua volta um pouco de areia.
Demorava uns cinco anos até a cepa estar pronta. O curioso é que as raízes não
se desenvolvem pela argila mas através das areias!
Ao abrirem as valas, algumas muito fundas, as
cavadores corriam o risco de, com um deslizamento das laterais, ficarem
soterrados. Para que isso não acontecesse tinha sempre um homem com um cesto na
mão e, se as paredes ameaçassem cair ele
rapidamente atirava o cesto ao cavador que o colocava na cabeça. Assim não só
podia respirar como era fácil de o removerem com rapidez!
Em 1938 havia 1690 hectares de vinhedos em chão de
areia e 128 em terra rija, com uma produção de 2000 pipas (840.000 litros) e
600 agricultores. Em 1932 na tese que o prof. Gonçalves Pereira apresentou à
Universidade de Toulouse diz que a produção atingia 1.276.041 litros de vinho
de areias, mais de 50% do que acontecia poucos anos depois! Mas não se pode
confiar nos números anteriores à criação da Adega Cooperativa.
Hoje parece que só sobram vinte e pouco hectares de
vinho de areias, e não tardam a desaparece! Um crime! E uns 65 em chão rijo, o
que... Hoje esses terrenos estão ocupados com construções, loteamentos e outros
crimes, o que torna o plantio e cultivo em chão de areias, muito dispendioso.
Assim a produção atual, total de Vinho de Colares não
deve ultrapassar os 10.000 litros, o e equivalente a escassas, muito escassas
25 pipas.
O que fica de tudo isto é que o Ramisco, tinto, de areias, é, de longe o melhor vinho de Portugal.
Baixa graduação alcóolica mas uma enorme capacidade em envelhecer com grande
nobreza e se poder beber com até mais de 20 anos!
Como todas as coisas, é preciso saber bebê-lo como
este velho conhecedor e apreciador
Quanto você leitora ou leitor dava para estar agora a
beber uns copos com esta figura fantástica? Sentado num banco de pedra e a
acompanhar esta maravilha com o pão, bom, da região... já agora com chouriço
que sempre vai muito bem como conduto!
Aaahhh! Tempos que já lá vão!
28/5/2019