sexta-feira, 31 de maio de 2019


O Vinho de Colares

Pelas faldas norte da serra de Sintra, onde os ventos do Noroeste trazem água e frescura, corre um pequenino rio que teimosamente vai-se desembaraçando para chegar ao mar.
Quantas vezes fui no Elétrico de Sintra para a Praia das Maçãs! Os meus avós tinham uma quinta em Sintra onde eu sempre passei as férias de verão e, já depois deles terem ido, ainda para lá passei uns anos.
Era uma “viagem” magnífica. Aqueles carros abertos, sempre um belo fresquinho, até porque a estrada era, e é marginada por arvoredo, sobretudo belos plátanos que em muito lugar formavam quase um túnel.
Criança, ia com os meus irmãos e alguém a tomar conta de nós, e depois, adolescente em grupo de amigos sintrenses, alguns que, como eu, ainda resistem aos tempos, e muitos que já descansam.
Demorava para percorrer aqueles quase 13 quilómetros uns 45 minutos, era quase british nos seus horários, mas ninguém se queixava pelo tempo que durava o trajeto. Atravessava o que dantes foi Concelho e hoje é só freguesia, Colares. Era um passeio extremamente agradável, tanto na ida para a praia, a descer, como no regresso a subir. O carro elétrico seguia, sempre tranquilo, e às vezes até nos permitia sair um pouco e acompanhá-lo a pé! Brincadeiras de moleque.
A linha margeava a estrada e esta aquele riozinho bonito, estreito, sempre com belíssima água a percorrê-lo, conhecido por alguns como o Rio Galamares, local que fica no caminho para a praia, mas o seu verdadeiro nome é Rio das Maçãs, que deu o nome à praia onde encontra o mar.
Rio conhecido desde... desde ninguém sabe quando, mas já João de Barros no seu livro traduzido do húngaro, a Crónica do Imperador Constantino, de 1522 – que ele diz ser antepassado dos reis de Portugal – nos conta: “Rio muy gracioso que pelo meio destes pomares corre coalhado de muita fruta e flores. E com um ruído suave se mete no mar onde faz a repartição delas, lançando-as por tantas partes, que daí a 6 ou 7 léguas se acham muitas maçãs, peras, marmelos e outros sinais de terra, com que os navegantes se alegram. E saindo dos pomares entram em terra de pão, vinho, azeite e outros géneros de mantimentos e criação de gados, que a fertilidade da terra ali dá.”
Mapa de 1923, onde se vê bem o Rio das Maçãs. A linha azul. Clicar para ampliar.

E terra de pão, bom. Ótimo. No princípio dos anos 40, havia em Colares, quase ao lado da Adega Cooperativa, uma espécie de “tasca” – naqueles tempos era o que havia – onde no regresso da praia sempre parávamos para comprar o pão e levá-lo para o almoço na quinta dos avós, onde, ao domingo  se juntavam 15 a 20 convivas. E que pão....
Terra dos saloios, “çahroi” do tempo dos árabes, nome que lhes ficou porque esse era o nome do imposto que os agricultores tinham que pagar para vender os seus produtos em Lisboa.
Entre muita coisa que os anos me “obrigaram” a guardar, muito lixo e muita coisa interessante, infelizmente não vinho, não porque se teria estragado, e porque o fui entornando goela abaixo, está um pequeno opúsculo, editado em 1938 pela Adega Cooperativa de Colares.


Uma delícia e uma tristeza. Delícia pela descrição e fotos daqueles tempos – há mais de 80 anos – e uma tristeza por ver que pouco sobra da área plantada de vinha, e daí menos pomada, a melhor de Portugal.
Colares, pitorescamente situada num dos contrafortes da serra, a região ainda é belíssima pela sua exuberante vegetação, é um dos mais admiráveis centros de excursão desta região paradisíaca, como escreveu Jorge de Sena. Região afamada por suas frutas, pêssegos e maçãs, mas sobretudo pelo seu vinho.
Sabe-se que os romanos ali estiveram, e os árabes, haja em seu abono o nome que deixaram aos agricultores de toda aquela região.
Sintra foi conquistada aos mouros em 1147 e logo D. Afonso Henriques lhes proporcionou reduzidos tributos: “Os peões lavrando com um boi pagavam um sexteiro de trigo e cevada; lavrando com dois ou mais um quarteiro por alqueire de mercado; de cinco quináles de vinho e daí para cima davam um puzal. Por tudo o mais que ganhassem eram isentos de tributos.”
(Nota: um sexteiro era igual a ¾ de alqueire ou 1/6 de moio, moio igual a 60 alqueires. Quinal era uma medida de vinho equivalente a 5 almudes. Um almude teria 17 a 25 litros, mas puzal não encontrei o que seria! Mas como todas estas medidas evoluíram muito, não servem, aqui, mais do que uma ideia...)
Nota 2. Lancei um apelo a escritores e historiadores e 5 minutos depois tinha a resposta ao “puzal” = puçal, medida equivalente a 5 almudes. Dunque, igual a “quintal”! Muito obrigado meu querido amigo Dr. José Costa Carvalho)
Neste foral de 1154, Sintra limita com o Rio de Galamares! Só mais tarde começou a ter dois nomes. Rio navegável que entrava no mar por um porto sem areias. Onde?
Em 1255 D. Afonso III, concedeu o primeiro foral a Colares, e fez doação do Reguengo de Colares a Pedro Miguel e sua mulher Maria Estevão, com obrigação de plantarem vinhas. E ainda mandou publicar que quem cortasse  vinha ou derribasse caça era condenado a pagar 300 maravedis.
D. Diniz ajustou com os mouros que possuíssem terras em Colares, e doou a seu filho, infante Pedro Afonso uma adega, diversas vinhas azenhas e outros domínios em Sintra e arredores.
O Livro das Colheitas de D. Afonso IV mostra que em Sintra a produção de vinho era de três modios em Sintra e três nos arredores.
D. Fernando (1367-1383) autorizou a primeira exportação de vinho da região.
Em 1385, logo após a Batalha de Aljubarrota D. João I doou a vila de Colares ao Condestável D. Nuno Álvares Pereira, que ficou na família por séculos..
D. Manuel em 1516 renovou o foral e aumentou os privilégios de que gozavam, com a mercê de não pagarem portagem – o tal saloio – e reduzindo para um quarto o tributo dos frutos.
Tudo isto mostra que o vinho Ramisco tem desde o século XIII a sua “carta de nobreza”!
Havia naquela região dois tipos de vinho a que chamavam de Ramisco mas o verdadeiro é o vinho de areias. Pensam alguns geólogos que a costa, há cerca de mil anos estava muito mais terra adentro do que hoje. Consta até, pelo foral de Afonso III, que em Colares havia um porto de mar, do tempo do romanos, chamado Basa, que tudo leva a supor que hoje seja o Banzão!  
Foram os ventos do N e NO que carregaram a areia que hoje compõe os terrenos onde é, aliás eram, plantadas as vinhas do Ramisco.
E isso é que lhe dá toda a grande qualidade.
É bom não esquecer que foi a única cepa que a filoxera não conseguiu destruir, comendo as raízes. E para compreender um pouco isso vamos ver como se plantava esta vinha.
A profundidade das areias até atingirem o subsolo argiloso, oscila entre 3 e 10 metros. Os agricultores abriam valas de grande profundidade até alcançarem a argila onde espetavam os bacelos até 25 cm. de profundidade e, à medida que estes iam crescendo iam juntando à sua volta um pouco de areia. Demorava uns cinco anos até a cepa estar pronta. O curioso é que as raízes não se desenvolvem pela argila mas através das areias!
Ao abrirem as valas, algumas muito fundas, as cavadores corriam o risco de, com um deslizamento das laterais, ficarem soterrados. Para que isso não acontecesse tinha sempre um homem com um cesto na mão  e, se as paredes ameaçassem cair ele rapidamente atirava o cesto ao cavador que o colocava na cabeça. Assim não só podia respirar como era fácil de o removerem com rapidez!
Em 1938 havia 1690 hectares de vinhedos em chão de areia e 128 em terra rija, com uma produção de 2000 pipas (840.000 litros) e 600 agricultores. Em 1932 na tese que o prof. Gonçalves Pereira apresentou à Universidade de Toulouse diz que a produção atingia 1.276.041 litros de vinho de areias, mais de 50% do que acontecia poucos anos depois! Mas não se pode confiar nos números anteriores à criação da Adega Cooperativa.
Hoje parece que só sobram vinte e pouco hectares de vinho de areias, e não tardam a desaparece! Um crime! E uns 65 em chão rijo, o que... Hoje esses terrenos estão ocupados com construções, loteamentos e outros crimes, o que torna o plantio e cultivo em chão de areias, muito dispendioso.
Assim a produção atual, total de Vinho de Colares não deve ultrapassar os 10.000 litros, o e equivalente a escassas, muito escassas 25 pipas.
O que fica de tudo isto é que o Ramisco, tinto, de areias, é, de longe o melhor vinho de Portugal. Baixa graduação alcóolica mas uma enorme capacidade em envelhecer com grande nobreza e se poder beber com até mais de 20 anos!
Como todas as coisas, é preciso saber bebê-lo como este velho conhecedor e apreciador


Quanto você leitora ou leitor dava para estar agora a beber uns copos com esta figura fantástica? Sentado num banco de pedra e a acompanhar esta maravilha com o pão, bom, da região... já agora com chouriço que sempre vai muito bem como conduto!
Aaahhh! Tempos que já lá vão!

28/5/2019

quinta-feira, 23 de maio de 2019


“António Manuel Couto Viana”

Toda a vida é curta para a vida.
 Agostinho da Silva

Como é bom ler livros bem escritos, até sobre personagem de quem nunca tinha ouvido falar, mas que nos deixa uma imensa lição de vida.
Um livro de mais de 500 páginas, sobre a longa/curta vida de António Manuel Couto Viana, AMCV,
Minhoto de Viana do Castelo, que muito se orgulha deste seu filho, um homem que desde a adolescência se dedicou ao teatro e à poesia, viveu intensamente, publicou mais de quatrocentos títulos, teve uma difícil vida de saúde, a quem, quando com idade já avançada, tiveram que amputar um pé, e poucos anos depois uma perna, sem nunca ter deixado de trabalhar, escrever e manter a mesma serenidade no seu trabalho.
O livro tem um sub título “Conversa a Quatro Mãos”, porque nasce de longas entrevistas entre ele e o escritor e amigo Ricardo de Saavedra. Desta leitura fica uma vontade enorme de continuar a ler obras de AMCV.


Para mim que nunca me interessei muito por poesia e raríssimas vezes fui ao teatro (ignorante é assim) o começo do livro, com descrições das peças em que participou como encenador, diretor ou até ator, a enumeração dos atores, não me diziam muita coisa, exceto quando encontrava o nome de alguns que muito bem conheci, como o Raul Solnado, o Álvaro Benamor, o Nicolau Breyner, o Frei Hermano da Câmara, e outros, mas, à medida que ia lendo, saboreando o texto, foi-se afirmando uma profunda admiração por um homem que nunca abdicou do seu amor a Portugal, o seu incansável trabalho feito com paternal dedicação, e por isso “escorraçado” logo nos primeiros dias pós 25 de Abril, tal como aconteceu com o meu também amigo Ruy Alvim.
Logo após o 25 de Abril, quando “chegou a liberdade” deixou de haver censura: proibiram todas as suas peças de teatro e não o deixaram mais trabalhar no teatro, na rádio, na televisão, nos jornais onde fosse res publica, tendo até, “os gloriosos capitães”, metido na prisão um outro poeta e dramaturgo por excesso de liberdades! Viva a democracia.
Antes disso teve que lidar com a censura do chamado Estado Novo, cujos sensores eram de muito baixo nível cultural, sem sensibilidade para o sentido das palavras. Não tinham categoria mental, nem intelectual. Havia muita estupidez na censura em geral. Muita estupidez.
Recomeçou a vida, meses depois, bem devagar, a ter que assinar textos para jornais com outro nome, sem deixar de seguir a sua correta, reta, direita, linha de pensamento, até que foi retomando o seu lugar, mesmo quando alguns “amigos” se tivessem afastado com medo de se re-relacionarem com ele.
Tempos de muita destruição dum país!
Entretanto a sua obra era mais do que reconhecida, com uma imensa quantidade de peças de teatro, muitas delas com segunda, terceira e até quatro edições, a maioria dedicada à juventude, que ele sabia precisar de mais meios de cultura, e que ele mesmo encenou e dirigiu, encenou e dirigiu outras peças de muitos outros autores de todos os tempos, desde os gregos até do seu grande amigo David Mourão Ferreira, foi convidado para criar e ensinar teatro em Macau, onde ficou três anos.
Traduziu, Sófocles, Molière, Calderon de La Barca, Alexandre Dumas, e tantos outros.
Filosofou muito com outros (entre eles Monsenhor Moreira das Neves e António Quadros que também conheci), escreveu e poetou sobre gastronomia - escreveu todos os textos sobre as regiões de Portugal, no famoso livro de cozinha de Maria de Lourdes Modesto – e, por exemplo, o livro “A Mesa à Mesa”, premiado por uma tradicional confraria.
Escreveu sobre Poetas Minhotos e Poetas do Mundo, obra em 3 volumes, com 3 edições.
Os seus ensaios e memórias, a maioria ligada à sua Viana, ao Minho, mostram o seu apego à terra onde nasceu, que tanto amou.
Enfim o grande leque cultural, que expõe em publicações de diversos temas, sem nunca ter querido envolver-se na política, sendo um homem da direita (que ninguém sabe o que significa a não ser pela “geografia” da nova assembleia francesa dos “sans culottes”) porque amava a sua pátria, o seu Portugal,
tendo até feito um trocadilho com um verso de Pessoa, que disse Em vez de Pátria, quero Rosas, AMCV escreveu um livro de poemas Em vez de Rosas, quero Pátria!
Em 1986 escreve o poema “Brado” (in Ponto de Não Regresso)

A nossa pátria jaz em mão fechada e alheia!
É dela já o tractor e o chão arado,
A moeda, a oficina, o pão da ceia...!
Pra não termos futuro, esmagou o passado

Vem com teu ceptro justo, punitivo e clemente!
Vem ser manhã na noite sepulcral!
Vem expulsar de nós a névoa do presente
E acorda Portugal!

Quando, já com a saúde castigada lhe perguntam se para ele o céu existe, responde;
Claro! Pelo menos esforço-me por acreditar que depois das agruras deste mundo, deste quase inferno para onde aos poucos nos atiram, tem que existir algures o paraíso prometido, onde possamos finalmente repousar...”
Aos 87 anos lança mais dois novos títulos de poesia, um seu, “Ainda não” e a tradução dum livro do poeta sevilhano Gustavo Adolfo Bécquer.
Agrava-se-lhe a saúde e é internado no Hospital. Mesmo se sentindo mal revê provas de trabalhos a serem publicados. Não resiste, e vai ao encontro do lugar onde finalmente descansa.
Poeta, ensaísta, ator e encenador teatral deixou uma impressionante e magnífica obra muita ainda inédita. Grande figura das letras e da cultura portuguesa com obras traduzidas para francês, inglês, espanhol e chinês.
Membro da Academia de Ciências de Lisboa, recebeu, entre outros, o Prémio de Poesia Luso-Galaica Valle-Inclan, Prémio Antero de Quental, Prémio Nacional de Poesia, Prémio Fundação Oriente, pelo magnífico trabalho poético que fez sobre o Oriente – como No Oriente do Oriente Prémio Academia de Ciências de Lisboa, e foi condecorado por diversas ordens, entre elas a do Infante Dom Henrique.
“Sou quem fui. / Fui quem quis. / Uma voz uma vez, / A ligar-me à raiz.”
De um seu “Epitáfio”:
“Os versos finais
Podem ser, talvez :
Morreu entre os poetas imortais
O último poeta português.”

Realmente os poetas não morrem.

     António Manuel Couto Viana                       Ricardo de Saavedra                                          

16/05/2019


sábado, 18 de maio de 2019



“Era o Vinho meu Bem...”


Faz tempo que não bebo um copo junto com aqueles que têm paciência de ler o que vou escrevendo. O chamado beber “virtual”, mas com amizade funciona até muito bem.
Hoje vamos beber um pouco e deixar a água crescer na boca, porque uma das grandes qualidades, ou virtudes?, do vinho é que ele melhora sempre quando bebido com amigos, mais consolida a amizade, e melhor ainda quando acompanha alguma comidinha, seja aquele prato que fazia a vovó, guisado económico, mas de grande qualidade, ou aquelas saudosas tapas castelhanas, ou o terrível e insubstituível bacalhau, ou até algum daqueles pratos, modernos, de grandes chefs (atenção chefs e não chefes!), não daqueles que só enfeitam a porcelana, com uma flor, dois riscos de molhos coloridos, e duas folhinhas dum capim que só eles sabem como se chama e onde se encontra. Segredos de big-chef.
A verdade (coitado do Sidarta Gautama, o grande Buda, que morreu sem ter descoberto a verdade) sobre vinhos e comidinhas boas (algumas) foram-nos uma vez mais apresentadas, por uma linda jornalista, através dum livro magnífico que nos fala duma quantidade de vinhos e os melhores petiscos regionais de Portugal para acompanharem esses vinhos.
Não são os vinhos que acompanham a comida, mas a comida que melhor serve para acompanhar um determinado tipo de vinho. Aquilo a que hoje moderna e sofisticadamente se está a chamar “harmonização”, palavra que me recuso a usar.
Sei que existe harmonia sobretudo quando se fala de música, raramente numa família que costuma ter uma ovelha ranhosa ou mal disposta, mas no vinho...
Só há uma coisa mais que não “harmoniza” com o meu paladar, é ter sempre que encontrar em qualquer vinho aromas de frutos secos ou frescos, amoras, figos, flores e outros vegetais, e há até quem encontre aromas minerais. Eu já quis encontrar esses aromas minerais, cheirei um monte de pedras de diferentes qualidades, que lavava cuidadosamente sob água corrente para não influenciar o aroma básico, cheirei mármore, granito, basalto, quartzo, feldspato e mica, esmeraldas e até um diamante que aluguei para essa finalidade, e, humilde, confesso que, ou o meu nariz não presta ou as pedras não cheiravam a nada.
Não, desisti.
Lembro quando fui trabalhar com cerveja. 1957. Comecei a estagiar na Fábrica do Porto, e uma das coisas que me fizeram logo procurar era onde estava o gosto do lúpulo! Eu, e os meus queridos colegas, irmãos, Alfredo Figueiredo e António Melícias, bem bebíamos um monte de “finos”, mas descobrir o lúpulo... nada. Então fui para o laboratório, fiz uma infusão de lúpulo, concentrada, enchi uns seis ou oito copos com cerveja, tasquei uma boa dose da infusão no primeiro copo, um pouco menos no segundo e por aí adiante até ao último que nada levou. Chamei os colegas para ver se descobríamos o mistério. O primeiro copo era simplesmente intragável! Fomos provando os outros, intervalando com umas bolachas de água e sal para lavar as ofendidas glândulas gustativas e enganar as pituitárias e, Deus seja louvado, acabámos por encontrar o tal gosto do lúpulo no copo virgem, e nunca mais deixámos de perceber e sentir esse paladar.
Creio que vou ter que fazer o mesmo com amoras, figos e flores diversas, mas jamais as misturarei num bom copo de vinho. Quem sabe também com algum calhau!
Deixo isto para os cientistas, chamados enólogos – agora são oenólogos...!!! – e vou tascando uns copos sem me preocupar com essas minudências.
O livro a que me refiro, como não podia deixar de ser, tem referências a alguns desses aromas (belas pituitárias), que não discuto.


Mas apresenta uma coleção de vinhos que considero, à distância de uns 10.000 quilómetros (Portugal-Brasil, Rio), uma covardia! Serão certamente vinhos magníficos, disso não tenho a menor dúvida, mas que, ou aqui chegam por valores absurdos, ou simplesmente não chegam.
O ano passado comprei num supermercado em Lisboa umas garrafas de “Trinca Bolotas”, alentejano arretado, que me custaram, cada, € 6,50 (cerca de R$ 29), pois o preço médio no mercado brasileiro é de R$ 138! Mais de € 30!
Imaginem estar a ler um livro com descrição de vinhos magníficos, umas comidinhas muito bem confeccionadas (às vezes em quantidade... mini, mas enfim) e pensar que tudo isso é uma espécie de “Sonho de uma noite de verão”, como tão bem harmonizou Felix Mendelssohn, e é ótimo de ouvir, com um copo, qualquer, desde que seja bom, ali, à ilharga.
Já pensaram numa entrada de “ervilhas com croquete de morcela e chouriço” de Trás-Os-Montes, acompanhado com um branco Palmeirim de Inglaterra, das castas Arinto, Malvasia Fina, Roupeiro e Moscatel Galego, que só de ler o rótulo ficamos a sonhar com os Doze de Inglaterra, Magriço,  D. Álvaro Gonçalves Coutinho, Camões e até com Almeida Garrett? Lembram?
Eis entra um cavaleiro, que trazia
Armas, cavalo, ao bélico serviço;
Ao Rei e às damas fala e logo se ia
Pera os onze, que este era o grão Magriço;
Abraça os companheiros, como amigos
A quem não falta, certo nos perigos.
«A dama, como ouviu que este era aquele
Que vinha defender seu nome e fama,
Se alegra e veste ali do animal de Hele *......

Ou “uma presa de porco com gnocchi de açorda e creme de ervilhas” servido com um tinto Pera Manca, de Évora, um dos melhores vinhos de Portugal que existe desde o tempo dos romanos? Aquele que o famoso Geraldo Geraldes bebeu junto com os amigos Mendo Soares, Afonso Rodrigues, Martim Nunes e Paio Gomes quando festejaram a conquista daquela cidade aos infiéis!
Faltou um prato com beldroegas? Não, não faltou. Procure no livro que encontra.
Ahhh! Comer e beber assim, misturando belos petiscos com magníficos vinhos, deixando os sonhos da “harmonização” serem levados pela História de Portugal e ainda sabendo que estamos a tratar do físico e do estômago, por bondade e atividade do resveratrol que previne o câncer, melhora a aparência da pele e diminui o colesterol!
Livro muito recomendável, sobretudo aos amigos a quem, infalivelmente, me junto em Lisboa para os encontros super saudosos e gastronómicos, como o Trio Maravilha, os Filósofos, os Paleolíticos e os Neolíticos bem como aos apreciadores paulistas, sobretudo o Tomás, o Zé Guilherme e a Joana, que não falta!
Livro muito bem apresentado, belíssima edição, escrito com muita graça e muita qualidade variada: na escrita, nas receitas e nas apresentações dos vinhos.
Parabéns uma vez mais à Maria João, que não deixou passar em branco, nem em tinto, o meu preferido Ramisco da Adega Regional de Colares, de que sou fã desde... desde que me lembro, e que pode ser apreciado com a gulosa receita que vem na página 233...
Enfim. Covardia estar a relembrar tudo isto e ter que me limitar ao entorno carioca que vamos levando com cautela e alguma dedicação culinária sem jamais faltar nem branco nem tinto!
Saúde !

Uma dica: se não quiserem estar a cozinhar pratos complicados, que tal umas fatias de pão com chouriço que pede logo uns quantos copos do tinto ou do branco... bons.
Três sugestões, por ordem alfabética: ou vão à Assenta buscar o pão, ou a Évora, ou ao Pobral, ali, antes da Ericeira. Tem outras “fontes”, mas estas são garantidas.
Aqui, no Brasil pão bom? É mentira.

08/05/2019

quinta-feira, 9 de maio de 2019




O Mestre

Muitos de nós já ouvimos falar de Dédalo, aquele grego, escultor, que matou um sobrinho, fugiu para o Egito e depois para Creta onde criou o famoso labirinto, de onde, quem entrasse, nunca mais conseguia encontrar a saída, e onde guardaram o Minotauro que andava a traçar as cretenses todas! Só Teseu, que era esperto, conseguiu lá entrar e sair, guiado por um fio que amarrou na entrada, e que, depois de matar o Minotauro, lhe mostrou o caminho de volta. O rei Minos, não gostava de Teseu, que namorava a sua filha, e como Dédalo os protegia, condenou este e seu filho Ícaro a ficarem abandonados dentro do labirinto, de onde não sabiam como sair.
Mas de Ícaro quase toda a gente já ouviu falar. Era filho de Dédalo. Este, hábil, decidiu que só dali poderiam sair... voando! E, com penas e cera fizeram umas grandes asas, elevaram-se no ar, e conseguiram dar o fora.
Ícaro, jovem, imprudente, maravilhado com a vista das alturas, foi sempre subindo, contra os conselhos do pai, aproximou-se do sol, a cera derreteu, ele caiu no mar e afogou-se. Dédalo foi fazendo um voo rasteiro e chegou à Sicília.
Se a lenda estiver certa, foi por volta de 1400 antes de Cristo, que aconteceu o primeiro voo e o primeiro desastre aéreo! Sem esquecer que os gregos tiveram o famoso Pégaso, cavalo alado que devia voar tão bem que ficou como símbolo da eternidade e ainda com direito a uma constelação com o seu nome.




Lendas de ensaios de voos vêm desde tempos que se perdem, com figuras de “aviadores” como o ferreiro germânico Wieland, outro ferreiro finlandês, Ilmarinen, o canadense Ayar-Katsi, o chileno Maitschanlé, em África o “piloto” ter-se-á chamado Kibango, na Índia as filhas do rei Indra Deva voavam até ao céu carregando os maridos, o persa Kai-Kaus, e possivelmente outros, em tempos que só a lenda manteve.
Na China usavam os famosos papagaios de papel para se elevarem no ar, o mesmo faziam os japoneses. Estes para espiar os inimigos e traçar a logística da batalha, que pouco mais faziam do que se guerrearem. No começo da nossa era foi Simão, o Mágico, companheiro dos apóstolos que fez um voo desastroso, e até dizem que Maomé viu o anjo Gabriel vir do céu numa mula.
Já na idade média cabe à Península Ibérica um voo. Um árabe, cordovês, Abu-al-Qasim, voou, caiu e morreu, outro árabe em Constantinopla, repetiu a dose. No século XV foi um italiano Giovanni Battista que fez um voo planado aterrou em cima duma igreja e quebrou-se todo, mas sobreviveu.
Depois aparece o génio Leonardo da Vinci, que nunca voou, mas desenhou, com a sua imensa queda para a engenharia, asas para serem usadas por homens e até projetou um princípio que mais tarde se aplicou aos helicópteros.
No século XVIII foram vários os sonhadores: Blanchard, que após vários insucessos deixou o voo mas atravessou a Mancha num balão, em 1808 Degen, em Viena, fabricou uma espécie de paraquedas com fitas de seda, o que hoje seria quase uma asa-delta, em Ulm, Alemanha, Berblinger propôs-se atravessar o Danúbio, mas caiu dentro de água, mais tarde de Groof, sapateiro belga, fabricou duas asas de 11 metros com que se esparramou no chão. Pénaud e Tatin fizeram experiências com aviões miniaturas, já com propulsão própria, e aí começam a aparecer os primeiros “sintomas” de aviões. A seguir Phillips e Otto Lilienthal, possivelmente o pai da Asa Delta, porque já soube aproveitar as correntes de ventos,  Percy e Pilcher ensaiaram planadores, para o que tinham que subir a altas colinas e de lá se lançarem pelo ar até... normalmente aterrarem em quedas graves!


       
Imagens de Otto Lilenthal em 1896

Chegou Otave Chanute que parece ter sido o primeiro com um “mais pesado do que o ar a voar 73 metros. Samuel Pierpoint Langley, em 1896 construiu um outro com o qual voou 1600 metros.
Finalmente os irmãos Wright voam, considerados os pioneiros da aviação, e por muito que isso custe aos brasileiros, três anos antes do primeiro voo de Santos Dumont, sem que isso lhe tire o mérito de ter insistido e conseguido depois voar bem mais.
Ora muito bem: de onde eu fui coligir tantos elementos que até há poucos dias me eram quase completamente desconhecidos, ou totalmente, se retirar desta história Dédalo e Ícaro, e os dois últimos?
Ao grande Mestre da CULTURA, que além disto nos deixou biografias de dezenas de personagens, como Francisco de Assis, Zola, Pasteur, Lincoln, Moisés, George Washington, Van Gogh, Piccard, Robert Owen, Benjamin Franklin, Miguel Angelo, Lamennais, Monaldo Leopardi, Leonardo da Vinci, William Pen, Gandhi, Beethoven, Ferdinand de Lesseps, Livingstone, Fridtjof Nansen, Cervantes, Dostoievsky, Anton Tchekov, Claude Bernard, Confúcio, Sócrates, Narendranath Dutt, conhecido como, Vivekananda, John Ruskin, Angel Canivet, Platão, Thomas More, Fénelon, e muitos mais pequenos-GRANDES, trabalhos de divulgação de cultura, como a Vida das Enguias, e as extraordinárias apreciações sobre Literatura Latina e Literatura Portuguesa, sobre Budismo, Islamismo, Cristianismo, Animais Pré-Históricos, Marte, A Vespa, A Raposa, e um nunca acabar de grandes lições de divulgação de cultura.
Tomei conhecimento da vida e obra deste grande MESTRE, há relativamente pouco tempo, mas não paro de me extasiar perante tamanha capacidade de conhecimentos, do seu método de nos ensinar apresentando-nos exemplos de figuras que por sua constante determinação e objetivo de vida nos deixaram exemplos de ver que, na verdade, está dentro de cada um de nós decidir até onde quer e deve ir.
Lições de vida de quem, tendo nascido pobre ou rico, decidiu seguir o que a sua consciência lhe ditava.
Nos pequenos textos sobre Literatura, Latina e Portuguesa, é de tal forma amplo o seu conhecimento que nos faz doer a alma face à nossa imensa ignorância.
A análise dos autores latinos é um desvendar constante de novas fontes, desde Lívio Andronico, a Névio, Pacúvio, Ácio, Plauto, Terêncio e tantos outros de quem eu, ignorante, jamais tinha ouvido falar, a Cícero, Lucrécio e Catulo (não o da Paixão Cearense!) e Virgílio de que li algumas coisas nas suas Geórgicas, porque ligadas à agricultura (que na altura achei um frete dos pesados!) ou a Eneida que li (traduzido, como é de supor) mais de uma vez, e tantos outros autores. Análise que tem que se ler mais do que uma, duas vezes para fingirmos que ficámos a saber alguma coisa.


A Literatura Portuguesa, começa com os Cancioneiros, e as lendas compiladas por Alexandre Herculano, compara, depois dos filhos de D. João I, os cronistas  dos séculos XV e XVI, destacando as qualidades de alguns sobre outros e os porquês, e como sempre me interessei por história muitos destes cronistas têm sido objeto de leituras minhas, jamais tendo tido capacidade de os analisar e comparar. Não pode deixar de falar em Fernão Mendes Pinto, tão maltratado durante séculos e hoje reconhecido como um aventureiro moralista, e segue por todos os grandes nomes da nossa literatura, como D. Francisco Manuel de Melo, padre António Vieira e Tomás António Gonzaga, o famoso Bocage, para chegar aos mestres do romantismo, Herculano e Garrett, ao inesgotável Camilo e ao tão admirado santo Antero, como lhe chamava Eça de Queiroz.
E são muitos os autores a serem comentados, renascendo a vontade de serem lidos, sobretudo os do grande período da expansão da literatura portuguesa que foi o século XIX.
Fala-se muito em Fernando Pessoa, descobrem-se com frequência inéditos desta grande figura das letras portuguesas, sempre aparece alguém a lembrar alguns de seus poemas, mas sem dúvida que o ajudou ter-se manifestado contra o Estado Novo, daí o ter sido exponencial a divulgação da sua obra depois da revolução encravada.
George Agostinho da Silva, professor, ensaísta, novelista, poeta, historiador, orador, investigador, tradutor, figura de primeira grandeza na história de Portugal e de todo o mundo, nunca se meteu em política, sofreu as agruras duma polícia de Estado totalmente imbecil, e parece (Deus permita que me engane) ter ficado um tanto restrito a seus alunos e a uma intelectualidade fora do alcance do povo por quem ele tanto se esforçou para levar cultura, numa altura em que o analfabetismo nos jovens e adultos era a maioria em Portugal.
Não cansa ler a sua obra. Mas tem que ser bem mastigada porque é muito profunda.



Sobre política tem uma passagem genial (como tudo que era dele!):
Começa com a marcha de Sidónio sobre Lisboa, e comenta que o marechal tinha mais corpo do que cabeça, se tão bem se tinha entendido nas lutas das Flandres... não mostrou grande vocação para governar países, no que muito o imitaram Mendes Cabeçadas, Filomeno da Câmara e Vicente de Freitas. Quando garantiram a um governo em risco de naufrágio que o melhor era chamar quem conhecesse aritmética prática (nem a racional era precisa), soubesse o que queria, e tivesse, quanto à metafísica, a certeza de que Deus existe, ele próprio, o chamava a salvar a Nação, dando-lhe por armas o desprendimento de si mesmo e o desprezo dos outros, se transportou de Santa Comba e seu minifúndio para o Terreiro do Paço.
Sensacional!
Uma frase lapidar do Mestre:
“O que impede de saber não são nem o tempo nem a inteligência, mas somente a falta de curiosidade.”

05/05/2019




sábado, 4 de maio de 2019




Benfiquista doente, sofredor pelo rádio (!), sonos agitados, eficiente e respeitado inspetor bancário, magnífico apetite, animado parceiro nos saudosos finos no Baleizão, e nas carteadas de bridge, antigo jogador internacional da equipa de vôlei de Portugal, belo e animado parceiro. Um metro e noventa de simpatia e amizade que vinha de longe.
Este, é só um primeiro retrato a la minuto, seco, não consegue mostrar quem e como era este amigo.
Como fanático de futebol, melhor dizendo, do Benfica, aos domingos era imperioso sentar-se ao lado do rádio e ouvir o relato do desafio que o seu clube enfrentava. E sofria se fosse um adversário mais valorizado. Até com os fracotes a sua atenção não desgrudava. Por fim, se vitorioso, uma Cuca bem geladinha dava o caso por encerrado.
Creio que isso lhe fazia até mal ao sistema cardiovascular!
Aquele metro noventa, secos, sem barriga, causava espanto, porque o apetite, sobretudo quando duma jantarada em casa de amigos, o que era relativamente frequente na “velha e dolente Luanda”, exibia-se sem quaisquer rodeios, e dava gosto aos restantes convivas vê-lo saborear uma magnífica bacaulhazada, quase em disputa com outro amigo de voracidade semelhante.
Ar feliz, dava gosto ouvir as suas risadas; contagiosas.
Parte integrante do grupo mais chegado que tínhamos em Luanda, não havia jantar ou fadistice em nossa casa onde ele e, evidente, a sua baixinha, faltassem.
Mas ele, e nós, nos esbaldávamos bem era numas saídas, quase religiosamente semanais, para nos encontrarmos ao fim do dia no famoso e bem antigo Baleizão (que Deus haja), ali, no Largo Infante Dom Henrique, mais conhecido pelo Largo do Baleizão, onde se bebia a melhor, ou uma das melhores cervejas a copo de Luanda. Os finos ou chopes. Juntávamos uns quantos amigos, ocupávamos uma mesa debaixo de uma das árvores, e ficávamos tomando uns e mais copos até que fossem horas de jantar. Conversávamos, normalmente ríamo-nos bastante.
As cervejarias mais frequentadas eram o Baleizão, que fazia sorvetes, picolés - desde há tanto tempo que em Angola, para a criançada um picolé era chamado de Baleizão - o Hotel Europa e a Cervejaria Suíça. Dependia de quem na ocasião estava tirando melhor a cerveja, e sobretudo quem tinha os melhores e mais variados aperitivos. O despique entre as cervejarias estava no saber tirar um fino com categoria (regulagem da pressão, temperatura, copos bem lavados e gelados, etc.) e na invenção dos aperitivos, os tira-gosto, que tinham que ser bons e muito baratos, uma vez que eram oferta da casa. Baratos e salgados ou picantes para levarem os fregueses a beberem mais e mais cerveja. E bebiam. Aperitivo tinha de tudo: dobradinha guisada, camarão sete barbas cozido, pedacinhos de pão frito, tudo com tanto jindungo que além de deixar a goela ardida, fogo que os finos logo procuravam apagar, deixava ardendo também as beiças e tudo à sua volta. Mas como eram bons! Além disto ainda havia os tradicionais tremoços, jinguba, caju torrado na hora, raspas de bacalhau cru, pedacinhos de torresmos, quifufutila às vezes com um pouco de jindungo misturada (!) e tudo o mais que a capacidade criativa dos donos dos bares fosse capaz de preparar. Quando havia alguma fome extra, o Baleizão arranjava umas sanduíches de presunto cru servido num pão ótimo e aquecido no forno, a estalar... hummm! Eram uma delícia.
Foram grandes vivências. E essas ninguém nos tira.
Aos domingos, nos primeiros tempos da nossa estadia em Luanda, havia um trecho na praia da Ilha, do lado do mar, que um grupo já mais antigo ocupava há anos, e onde tinham colocado dois postes onde amarravam uma rede, para voleibolar um pouco naquele calor. O campo, marcado no chão com o calcanhar, que logo desaparecia com os “atletas” correndo atrás da bola, muita animada discussão se tinha sido ou não ponto, e o nosso “internacional” era quem pontificava porque ser o único que sabia as regras todas. E impunha-as! Nós os leigos e inábeis jogadores o que queríamos era aquecer um pouco e depois correr e mergulhar naquelas águas magníficas. E mais: tanto jogavam um ou dois de cada lado como seis ou sete, porque estavam sempre entrando e saindo para ir mergulhar.
Quando nos conhecemos? Não sei, mas éramos solteiros ainda. De tão longe que o primeiro filho dele nasceu em Luanda, dez dias antes do nosso número três, e quem lá esteve ao lado a consolar a jovem parturiente, foi a minha sogra!
Em Angola as portas viviam quase sem fechadura. Lembro que este benfiquista, não sei já em que ocasião – devia estar a mudar de casa, e a família em Portugal – esteve algum tempo a viver lá em nossa casa, também não sei bem como, porque só filhos nossos foram até oito e espaço de sobra não havia muito. Mas, à boa moda angolana sempre havia lugar para mais um ou... dois.
Bem mais tarde, quando depois do 25/abril regressámos de Moçambique e a nossa casa estava ainda ocupada com um inquilino, fomos nós que nos albergámos na casa dele que na altura estava até vazia.
Inspetor, estimado e conceituado no mesmo banco onde eu também acabei as minhas atividades profissionais em África, vivemos nesse período uma imensa incerteza e preocupação com o futuro.
O banco em Portugal caminhava para a bancarrota e os portugas não queriam lá os retornados. Resultado, o Brasil foi quem nos acolheu.
De inspetor bancário, nível de diretoria, começou por vender sapatos. Bem sei que eram os melhores sapatos da época, com clientes certos e bons, mas certamente foi uma grande paulada, que ele enfrentou de cabeça levantada e muita classe.
Algum tempo depois a vida começou a correr-lhe melhor, mas, fumante inveterado, o tabaco não lhe perdoou, como acabou também por fazer com um irmão dele. E começam os problemas, graves, de saúde a manifestarem-se.
Volta e meia, sustos grandes na família e nos amigos, que o iam ver no hospital.
Uma das vezes, fui lá com o Zé Perestrello. Estava na UTI, cheio de tubos e complexas ligações a máquinas. Estava... bem, perfeitamente consciente, o caso grave e/ou difícil, controlado, e nós, os visitantes começámos na brincadeira com ele.
Tanta parvoada devemos ter dito que o paciente ria a gargalhada! O barulho chamou a atenção duma enfermeira que a primeira coisa que fez foi pôr-nos dali para fora.
Melhorou talvez mais depressa.
Os problemas repetiam-se. Muitas vezes fui a sua casa para lhe contar qualquer coisa que o fizesse sair do estado de abatimento que foi tomando conta dele. E insistir que largasse o maldito tabaco, coisa que, teimoso, nunca fez.
Regressou a Portugal, e um dia, cedo demais, teve o descanso que merecia.
Amigo de muitos anos, muita brincadeira e muita risada, o Fernando Fezas Vital. Saravá!


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Ainda há pouco, a propósito de livros, escrevi um pouco sobre um outro amigo, mas creio ter-me debruçado mais sobre o que ele escreveu do que sobre alguns detalhes que fomos vivendo juntos e que foram cimentando a nossa amizade.
Creio que nos conhecemos aí por 1962, em Luanda, quando o mandaram para Angola cumprir o serviço militar, já formado em direito e talvez no início da sua carreira diplomática no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Aliás por esse tempo apareceram em Angola amigos de infância que eu não via há muitos anos, e onde foi possível recuperar antigas amizades.
A nossa casa tinha sempre a porta aberta, com um gastronómico ritual todas as quartas feiras, quando fazíamos o “almoço dos solteiros”, onde apareciam civis que tinham mandado a família à “metrópole”, e um ou mais “guerreiros” que vinham partilhar conosco, e até outros, antes desconhecidos, com quem fizemos amizade, muitos dos quais, pós 25/4 não vimos mais. 
Para esses almoços nunca sabíamos quantos vinham, Entre um e mais de meia dúzia! Alguns novos vinham pela mão de camaradas já nossos amigos. O nosso “diplomata” apareceu poucas vezes, mas também o encontrávamos em casa de colegas seus, nossos amigos de infância.
Depois de sairmos de Angola vim encontrá-lo como Consul Geral no Rio de Janeiro, e os contatos foram mais frequentes, incluindo quando ele e a querida Senhora Consulesa foram passar um fim de semana numa fazenda onde eu penei quase um ano!
Mais uns anos longe uns dos outros, uns raros e casuais encontros, até que em 1991 fui eu que passei uns dias na residência dos senhores embaixadores, em Bona. Eu que sou pouco ou nada de ir ao cinema tive uma recepção especial: a senhora Embaixatriz tinha comprado bilhetes para irmos à segunda sessão ver o “Jurassic Park”, o que, para quem já chegava cansado da viagem, ouvir o ronco descomunal do “Tirano Rex”... foi dose! O que me valeu foi ter dormido nos intervalos dos roncos!
No dia seguinte levou-me para uma recepção na Embaixada de Espanha. Eu tinha ido à Alemanha para visitar uma Feira de máquinas e não levava roupa “decente”! Abriu o guarda roupa e lá encontramos um casaco que me serviu!
Infelizmente quando esteve na Santa Sé não consegui coordenar uma ida a Roma sem que a sua casa estivesse cheia de hóspedes!
Depois de tudo isto, do correr dos anos, só me restaram os encontros que tenho promovido com os velhos amigos quando vou a Lisboa.
E aí, os abraços, pesando anos de amizade e milhares de quilômetros de saudade, mitigavam um pouco o que não pudemos viver mais perto uns dos outros.
O último em que estivemos juntos foi em 2012. Depois perdi, perdemos todos, este amigo que foi uma pessoa a todos os títulos excecional António Pinto da França.
Aqui, jovem de 30 anos, acompanhado da mulher, quando na Indonésia desempenhou uma difícil função diplomática com imensa categoria, até hoje lembrado e homenageado.


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Não sei já onde nos conhecemos. A ideia mais antiga vem de 1946 quando moravam numa casa, em Lisboa, que ficava bem atrás da nossa, na rua seguinte, avenida Visconde Valmor.
Muitos anos depois, um quarto de século, fui encontrá-lo em Lourenço Marques, onde creio que até terá nascido. Se não ali, algures em Moçambique, onde seu pai, o famoso médico e a maior voz do fado de Coimbra, António Menano, viveu praticamente toda a sua vida profissional.
O filho era um dos mais hábeis relações públicas que conheci, uma simpatia contagiante, e uma alegria que jamais acabava.
Ao mesmo tempo um belíssimo e ótimo parceiro no golfe.
Teve um dia que ir à (ex)Rodésia, tratar dum assunto delicado, para o que necessitava de ali se encontrar com o ministro das Finanças.
Foi com tempo, para no sábado jogar o seu golfe. Só, naquela terra, no clube de golfe foi logo convidado para acompanhar dois jogadores. O correto entre golfistas é (ou era?) simplesmente se cumprimentarem dizendo somente o primeiro nome e nada de sobrenomes ou cargos.
O jogo correu muito bem, sempre um papo descontraído, e no fim um whisky no bar. Aí, perguntado ao que ia fazer na Rodésia, explicou que tinha que se encontrar com o tal ministro para... não sei o que. O parceiro, amável perguntou-lhe onde estava hospedado, disse que ia ver o que conseguia e que na manhã seguinte, segunda feira, lhe telefonava.
Segunda de manhã toca o telefone no quarto: “O senhor ministro... manda avisá-lo que o pode receber pelas 10 horas!”
Tiro na mosca. Lá vai o estrangeiro à hora combinada e quando é introduzido no gabinete de Sua Excia. dá de cara com o seu parceiro do golfe!
Missão resolvida. Rapidinho e perfeitamente.
Muitas vezes nos encontrámos em Lourenço Marques, umas vezes no golfe ou a beber uns copos algures.
Até que chegou o malfadado dia 21 de Outubro de 1974. Grande era já a confusão naquela terra. A meio da tarde passam no centro da cidade alguns jipes com soldados comandos, que desprezados e maltratados correm as ruas dando tiros para o ar.
Essa história, que eu vivi bem por dentro, conto-a em detalhe no meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”.
A população aterroriza-se. Não se sabe se é guerra entre brancos e pretos, se o que é. Os pretos fogem dizendo que os brancos os querem matar e fazem barricadas em todas as saídas da cidade.
Os que aí tentaram passar, sem que fossem moradores dessas zonas periféricas, e mesmo sendo, foram mortos. A maioria à paulada e catanada.
O meu amigo ouve aquilo na rádio e decide ir levar o seu cozinheiro a casa. Ao chegar à barricada pára atrás de outro carro, com três brancos dentro que apavorados fecham as janelas. Abrem-lhes as portas, puxam-nos para fora e derrubam os três. Mortos.
Grita para o cozinheiro:
- Abre as janelas todas. Depressa.
Ele faz o mesmo e abre a porta para sair, logo rodeado por uma turba de indivíduos carregando e ameaçando com paus e catanas. Explica que vai levar o amigo a casa, mas eles dizem que ali ninguém passa, e as ameaças aumentam.
Valeu-lhe ser um homem alto. Talvez mais de metro e noventa. Uma voz sai do meio da turba enlouquecida:
- “É o senhor Xico. Eu conheço-o bem. Deixem-no passar!”
Não deixaram. O cozinheiro que fosse a pé para casa e ele que retornasse para a cidade.
Tão nervoso e abatido ficou que ao virar a primeira esquina e sem ver mais aquela zona de massacre, encostou o carro. Não conseguia dirigi-lo.
Só nos voltámos a encontrar uma vez, em Lisboa, onde com mais uns Coca-Cola nos juntámos para jantar.
Grande abraço, lá onde estiveres, Francisco Paulo Viterbo Menano, amigo Xico Menano.



Fev.19