domingo, 27 de janeiro de 2019


Amigos – 21
Um primo com muita história



Primo direito do meu pai, filho da irmã mais velha do meu avô, que casou com um jovem tenente de artilharia. Lembro ainda bem do seu pai. Este, general, aposentado, nos seus oitenta anos, grande bigodão amarelecido do tabaco, almoçava muitas vezes aos domingos em casa do meu avô, seu cunhado. Nós, pequenos, tínhamos que ir dar um beijo àquele velho “tio”, magrinho, que ficava estático sentado numa cadeira, e de lá saíamos cheios de cócegas porque o bigode ou nos entrava nas orelhas ou num olho!
O filho, muito amigo do meu pai, sem irmãos e não se dando bem com a mulher, de quem acabou por se afastar de vez, almoçava muitas vezes em nossa casa, e daí me lembrar bem dele, tranquilo, um pouco sobre o gordo, monóculo, sempre atencioso e muito inteligente.
Dizia a minha mãe que ele só gostava de bifes com batatas fritas, e não comia outra coisa. Nós riamo-nos com isso, mas penso ter descoberto a causa desse problema. Antes dele os pais tiveram primeiro um filho que morreu com 6 anos, quando este apareceu tinha apenas 2, e talvez por isso, tudo o que menino queria, era uma ordem que se cumpria. Deve vir daí essa história de só comer os tais bifes.
Engenheiro químico, trabalhava na altura na Fosforeira Portuguesa, sendo um técnico de tal calibre que me lembro do meu pai contar que a empresa lhe mandava o salário a casa para que ele não permanecesse na fábrica, onde a sua capacidade criativa e genial provocava muita confusão nas mentes mais reles. Mas, quando um fósforo não acendia bem... aqui del-rei... chamem o engenheiro Parreira.
Iam buscá-lo a casa e num instante os fósforos voltavam a acender com perfeição!
Depois que o meu pai nos deixou creio que perdi esse primo de vista.
Até um dia, em Luanda, 1958, cruzo-me na rua, perto da entrada de um hotel, com um senhor de monóculo, acompanhado de outro bem mais jovem, e a ficha caiu! Parei, olhei para trás, vi-os entrar no hotel e fui lá. Estava o mais jovem a deixar o senhor na recepção, mas na dúvida perguntei como se chamava o senhor.
- Engenheiro Henrique Parreira.
Era ele, que eu não via desde criança, há uns 16 anos.
- E o que ele faz aqui?
- Viemos a um Congresso de Pescas. E quando o engenheiro Parreira emite uma opinião, ela é unanimemente acatada e aceite sem mais discussão!
Fui até ao balcão, parei a seu lado, ele olhou para mim e diz:
- Ó Chico! Há quantos anos não te vejo!
Ele, na altura com 61 anos, reconhecer-me logo, tocou-me fundo. Dei-lhe um forte abraço. Perguntou por nós, minha mãe e irmãos, o que eu fazia em Angola, etc., e fui-lhe dizendo que ali vivia há quatro anos e que acabara de nascer o meu terceiro filho.
Vivia em Goa, onde já se notabilizara, tendo escrito “A Pesca no distrito de Goa”, publicado na Revista da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar / Ministério do Ultramar. - Lisboa, 1956 e estava em Luanda para o Congresso. Foi jantar ou almoçar a nossa casa, simpático como sempre, e quando o fui levar ao hotel, fez questão que passássemos num lugar de onde se via, lá no alto das barrocas da cidade, para os lados do Cacuaco, um edifício grande que estava abandonado.
-Sabes o que aquilo era?
Não fazia ideia. Contou-me então.
Angola quis também uma fábrica de fósforos, bom negócio e ótimo para os impostos, e ele tinha sido quem fizera todos os planos, escolha do equipamento, enfim tudo quanto era necessário, e montou-se naquele armazém que estás vendo ali.
- No dia que estava prevista a inauguração da fábrica chegou um telegrama de Lisboa, proibindo a sua fabricação. E tudo ficou ao abandono.
Era assim que a Metrópole tratava as suas eufemisticamente chamadas de províncias. O lucro e os impostos tinham que ficar em Portugal. Os impostos eram tão chorudos que era proibido usar isqueiro!
Quem quisesse tinha que ter uma licença especial pagando imposto. 40$00 escudos mais 8$00 de selos colados no verso! Uma VERGONHA.


O primo regressou a Goa, de lá mandou um bilhete de Boas Festas e depois soube que tinha descansado poucos meses passados.
Há pouco descobri um magnífico livro, Mar Aberto – Viagens dos Portugueses, de uma historiadora e professora da Universidade de Roma, Luciana Stegagno Picchio, onde relata uma oferta enviada pelos produtores de açúcar da ilha da Madeira, ao Papa Leão X, em 1515, que fez um sucesso imenso, tal a qualidade e a quantidade de doces que lá chegaram intactos!
A autora passa pelas histórias do açúcar na Sicília e na Madeira, para chegar ao que os portugueses fizeram pelo mundo, e nota que, ao escrever sobre Storia dello zucchero siciliano, o investigador Carmelo Trasselli, refere que “todas notícias relativas ao açúcar na Madeira foram recolhidas no estudo de Henrique Gomes de Amorim Parreira, no trabalho História do Açúcar em Portugal.  Um estudo profundo de mais de 300 páginas.
Como era de esperar “parti à caça” desse livro e consegui obtê-lo, em fotocópia, na Sociedade de Geografia de Lisboa. In: Estudos de História da Geografia da Expansão Portuguesa. Vol. VII, tomo I, 1952.
São mais de 300 páginas com um interesse constante.
Nos tempos antigos o único edulcorante que era conhecido na Europa era o mel, a que, em alguns casos se lhe atribuiam virtudes especiais porque, misturado com água e deixado fermentar podia embebedar e assim “transformar” homens em videntes! Assim era muito usado em cerimónias religiosas.
O mel era um produto de valor considerável nas exportações de Portugal e, como ainda hoje, muitíssimo apreciado. Em 1552, segundo uma estatística da época havia vinte mulheres que vendiam mel em Lisboa. Alguns anos mais tarde já alguns comerciantes o vendiam na Rua da Ferraria de Haver o Peso, continuação da chamada Rua da Conceição, atrás da Conceição Velha.
A cana sacarina é originária da Índia Oriental, possivelmente no lado sul do Himalaia das margens do Ganges.
As primeiras notícias que chegam à Europa sobre essa planta foram trazidas por alguns generais de Alexandre Magno, que diziam ter visto uns “bambus que produziam mel servindo também para uma bebida inebriante”! Muito pouco chegava à Europa, por preços exorbitantes e só usado em medicina.
O nome que lhe davam, em sânscrito era “çarkarã” que significa pedrinha, porque o açúcar se apresentava de forma granulosa. Passou ao grego como sákchar ou sákcharon, e ao árabe sukkar, que com o pronome as ficou assuccar.
A cana entrou depois na Arábia e no Egito, e foram os árabes que acabaram por levá-la para a Europa. Pouco tempo depois da Conquista, em 712 já estavam a plantar cana, sobretudo na região de Córdova e no século XI também se produzia açúcar na Sicília.
O açúcar da região de Córdova rapidamente atingiu volume considerável e era exportado para África, constituindo uma elevada fonte de rendimento.
Começaram a adicionar-se especiarias, xaropes e frutas em calda, fazendo-se inúmeros doces. O “Calendário de Córdova” do ano de 961, ensina quais os passos a dar para o cultivo da cana e para a fabricação de doces, dizendo, por exemplo, que “em novembro ainda se fabricam confeitos de pêra, maçã e castanha”.
Da palavra phanita ou phani para o caldo concentrado, com que se faziam os doces, os árabes chamaram-lhe fani, ou al-fani, que acabou, em português o “alfenim”.
Não há um conhecimento exato sobre cultura da cana no Algarve, mas já em 1404 D. João I coutava uns terrenos em Quarteira a favor de João de Palma, genovês, para a sua produção. Também consta que se cultivava nos arredores de Coimbra, conforme escreveu um alemão, Lanckman von Falkenstein, que foi a Portugal para acompanhar a filha de D. Duarte que ia casar com o Imperador Frederico III. Há algumas referências mais, mas somente, pouco depois de descoberta a Ilha da Madeira (cuja data se desconhece) começa a colonização em 1425 e logo o Infante Dom Henrique ali incentivou o plantio de cana.
Dizem uns que mandou vir as canas e técnicos da Sicília, outros “estudiosos” afirmam que não teria sido necessário porque já havia esse conhecimento em Portugal, outros ainda que vieram de Granada ou Valência, ou até do norte de África, de Safim, etc.
A verdade é que num instante a cana sacarina se deu tão bem na Madeira que passou o seu açúcar a ser considerado o melhor de toda a Europa, e que valor mais alto conseguia. Como ao Infante “pertencia” um terço da produção, este não descurava tão importante negócio e numa carta enviada a Gonçalves Zarco, que estava no Funchal, insistia: “E que façam canaviais nas outras povoações”.


Com a produção a crescer muito – por volta de 1455 atingia mais 90 toneladas – e sendo o açúcar da Madeira o que mais valia em toda a Europa. Em 1480, dizia-se, os estrangeiros que trabalhavam na Madeira só com açúcar, “carregaram vinte naus de castelo d’avante e quarenta ou cinquenta outros navios”, em 1455 a produção chegava a cerca de 100 toneladas e em 1498 a exportação total atingia 120.000 arrobas, algo como 1.800 toneladas.
Não tardou que alguns agricultores se especializassem em doces, que faziam enorme sucesso na Europa, chegando a carregar mais de uma nau só com confeitaria, direto para as Flandres.
Vale referir que em 1516 foi enviada ao Papa Leão X uma escultura do Sacro Colégio e todos os cardeais em tamanho natural feitos em alfenim e cobertos com pó dourado, que foi oferta do Terceiro Capitão Donatário do Funchal, D. Simão Gonçalves da Câmara, que fez um sucesso enorme, porque, além da novidade, todos os doces, embalados em caixas de madeira, chegaram a Roma em perfeito estado. O Papa e os cardeais tiveram que praticar um pouco “antropofagia doce”!
Da Madeira o açúcar passou aos Açores, com sucesso fraco, mercê da irregularidade das chuvas, a Cabo Verde onde a secura do clima não permitia grande produção e a pouca que lá se cultivava era praticamente toda destinada a fazer aguardente. Em São Tomé a cultura da cana teve uma razoável expansão, mas em meadas do século XVI foi saqueado pelos piratas franceses, em 1574 os escravos revoltaram-se e queimaram todas as plantações e, mesmo recomeçando, em 1641 Maurício de Nassau, para destruir a indústria portuguesa atacou São Tomé, destruiu 61 engenhos e queimou na capital milhares de caixas de açúcar. A maioria dos colonos decidiu abandonar a ilha e passar-se para o Brasil levando toda a aparelhagem possível, para aqui recomeçarem a trabalhar.
Foi no Brasil que essa cultura atingiu níveis nunca antes imaginados. O clima era muito violento para os europeus, que não aguentavam trabalhar de sol a sol no campo, como nas suas terras de origem, e os indígenas habituados a uma vida de liberdade, não se fixavam nas plantações. A única solução se deve aos homens fortes e adaptados a climas quentes, de África. Foram os escravos que praticamente tudo fizeram nas plantações de cana, e o Brasil, se é o que é hoje deve a sua grandeza ao açúcar e este deve-o aos africanos.
O principal centro de distribuição de açúcar na Europa estava nas Flandres.
Com a coroa de Portugal na cabeça dum inimigo da Holanda, levou os holandeses a assaltarem as regiões de produção, na Bahia e Pernambuco, para se apoderarem, sem intermediários, do comércio, riquíssimo, que já faziam nas Flandres. Por aqui estiveram pilhando o trabalho já estabelecido, durante 24 anos. Tiveram até tempo para conquistar Angola para poderem trazer por menor preço os escravos indispensáveis.
Em Angola e Moçambique só nos finais do século XIX é que se encarou, a sério a exploração da cana, chegando a produzir, no tempo colonial 75.000 toneladas. Durante as guerras civis que a seguir enfrentaram, a produção caiu a quase nada, começando agora a recuperar, mas ainda longe, mesmo com técnicas e capitais novos, de atingir o que tinham há quase meio século.
Moçambique com uma produção atual de 450 mil toneladas, nas quatro empresas que funcionam no país, enquanto Angola, só com uma (montada pela Odebrecht naquelas negociatas... estranhas!) ainda não passou de 45 mil. Em 1894 produzira 774.714 quilos e em 1940 78.000 toneladas.
O Brasil continua a ser o maior produtor de açúcar do mundo, exportando entre 25 a 30 milhões de toneladas por ano. Só o Estado de São Paulo tem cerca de 4,5 milhões de hectares de plantação da cana sacarina.
E é no Brasil que existe a melhor definição para o açúcar:
“É AQUELE PRODUTO QUE QUANDO NÃO SE USA DEIXA O CAFÉ AMARGO!”

Vale muito a pena ler o magnífico trabalho de história, onde se encontram detalhes de imenso interesse, e também seria muito útil para a cultura geral, do Brasil e de Portugal, que alguém escrevesse a história deste grande engenheiro Henrique Gomes de Amorim Parreira (1897-1959)


27-jan-19

Um comentário:

  1. Querido primo Francisco não imagina como gostei do que escreveu sobre o meu avô Henrique que não conheci e de que sabia pouco pois tinha fama de ser um bon vivant e de ajudar muito pouco a minha avó .
    A minha mãe raramente falava dele mas parece que tinha imenso charme e adorava fumar charuto! Obrigada e um grande beijinho

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