Amigos – 21
Um primo com muita história
Primo direito do meu
pai, filho da irmã mais velha do meu avô, que casou com um jovem tenente de
artilharia. Lembro ainda bem do seu pai. Este, general, aposentado, nos seus
oitenta anos, grande bigodão amarelecido do tabaco, almoçava muitas vezes aos
domingos em casa do meu avô, seu cunhado. Nós, pequenos, tínhamos que ir dar um
beijo àquele velho “tio”, magrinho, que ficava estático sentado numa cadeira, e
de lá saíamos cheios de cócegas porque o bigode ou nos entrava nas orelhas ou
num olho!
O filho, muito amigo
do meu pai, sem irmãos e não se dando bem com a mulher, de quem acabou por se
afastar de vez, almoçava muitas vezes em nossa casa, e daí me lembrar bem dele,
tranquilo, um pouco sobre o gordo, monóculo, sempre atencioso e muito
inteligente.
Dizia a minha mãe que
ele só gostava de bifes com batatas fritas, e não comia outra coisa. Nós
riamo-nos com isso, mas penso ter descoberto a causa desse problema. Antes dele
os pais tiveram primeiro um filho que morreu com 6 anos, quando este apareceu
tinha apenas 2, e talvez por isso, tudo o que menino queria, era uma ordem que
se cumpria. Deve vir daí essa história de só comer os tais bifes.
Engenheiro químico,
trabalhava na altura na Fosforeira Portuguesa, sendo um técnico de tal calibre
que me lembro do meu pai contar que a empresa lhe mandava o salário a casa para
que ele não permanecesse na fábrica, onde a sua capacidade criativa e genial provocava
muita confusão nas mentes mais reles. Mas, quando um fósforo não acendia bem...
aqui del-rei... chamem o engenheiro
Parreira.
Iam buscá-lo a casa e
num instante os fósforos voltavam a acender com perfeição!
Depois que o meu pai
nos deixou creio que perdi esse primo de vista.
Até um dia, em
Luanda, 1958, cruzo-me na rua, perto da entrada de um hotel, com um senhor de
monóculo, acompanhado de outro bem mais jovem, e a ficha caiu! Parei,
olhei para trás, vi-os entrar no hotel e fui lá. Estava o mais jovem a deixar o
senhor na recepção, mas na dúvida perguntei como se chamava o senhor.
- Engenheiro Henrique Parreira.
Era ele, que eu não
via desde criança, há uns 16 anos.
- E o que ele faz aqui?
- Viemos a um Congresso de Pescas. E quando o
engenheiro Parreira emite uma opinião, ela é unanimemente acatada e aceite sem
mais discussão!
Fui até ao balcão,
parei a seu lado, ele olhou para mim e diz:
- Ó Chico! Há quantos anos não te vejo!
Ele, na altura com 61
anos, reconhecer-me logo, tocou-me fundo. Dei-lhe um forte abraço. Perguntou
por nós, minha mãe e irmãos, o que eu fazia em Angola, etc., e fui-lhe dizendo que
ali vivia há quatro anos e que acabara de nascer o meu terceiro filho.
Vivia em Goa, onde já
se notabilizara, tendo escrito “A Pesca
no distrito de Goa”, publicado na Revista da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar
/ Ministério do Ultramar. - Lisboa, 1956 e estava em Luanda para o Congresso. Foi jantar ou almoçar a nossa
casa, simpático como sempre, e quando o fui levar ao hotel, fez questão que
passássemos num lugar de onde se via, lá no alto das barrocas da cidade, para
os lados do Cacuaco, um edifício grande que estava abandonado.
-Sabes o que aquilo era?
Não fazia ideia.
Contou-me então.
Angola quis também
uma fábrica de fósforos, bom negócio e ótimo para os impostos, e ele tinha sido
quem fizera todos os planos, escolha do equipamento, enfim tudo quanto era
necessário, e montou-se naquele armazém que
estás vendo ali.
- No dia que estava prevista a inauguração da fábrica
chegou um telegrama de Lisboa, proibindo a sua fabricação. E tudo ficou ao
abandono.
Era assim que a Metrópole
tratava as suas eufemisticamente chamadas de províncias. O lucro e os impostos
tinham que ficar em Portugal. Os impostos eram tão chorudos que era proibido
usar isqueiro!
Quem quisesse tinha
que ter uma licença especial pagando imposto. 40$00 escudos mais 8$00 de selos
colados no verso! Uma VERGONHA.
O primo regressou a
Goa, de lá mandou um bilhete de Boas Festas e depois soube que tinha descansado
poucos meses passados.
Há pouco descobri um
magnífico livro, Mar Aberto – Viagens dos
Portugueses, de uma historiadora e professora da Universidade de Roma,
Luciana Stegagno Picchio, onde relata
uma oferta enviada pelos produtores de açúcar da ilha da Madeira, ao Papa Leão
X, em 1515, que fez um sucesso imenso, tal a qualidade e a quantidade de doces
que lá chegaram intactos!
A autora passa pelas
histórias do açúcar na Sicília e na Madeira, para chegar ao que os portugueses
fizeram pelo mundo, e nota que, ao escrever sobre Storia dello zucchero siciliano, o investigador Carmelo Trasselli,
refere que “todas notícias relativas ao
açúcar na Madeira foram recolhidas no estudo de Henrique Gomes de Amorim Parreira, no trabalho História do Açúcar em Portugal. Um estudo profundo de mais de 300 páginas.
Como era de esperar
“parti à caça” desse livro e consegui obtê-lo, em fotocópia, na Sociedade de
Geografia de Lisboa. In: Estudos de História da
Geografia da Expansão Portuguesa. Vol. VII, tomo I, 1952.
São mais de 300
páginas com um interesse constante.
Nos tempos antigos o
único edulcorante que era conhecido na Europa era o mel, a que, em alguns casos
se lhe atribuiam virtudes especiais porque, misturado com água e deixado
fermentar podia embebedar e assim “transformar” homens em videntes! Assim era
muito usado em cerimónias religiosas.
O mel era um produto
de valor considerável nas exportações de Portugal e, como ainda hoje,
muitíssimo apreciado. Em 1552, segundo uma estatística da época havia vinte
mulheres que vendiam mel em Lisboa. Alguns anos mais tarde já alguns comerciantes
o vendiam na Rua da Ferraria de Haver o Peso, continuação da chamada Rua da
Conceição, atrás da Conceição Velha.
A cana sacarina é
originária da Índia Oriental, possivelmente no lado sul do Himalaia das margens
do Ganges.
As primeiras notícias
que chegam à Europa sobre essa planta foram trazidas por alguns generais de
Alexandre Magno, que diziam ter visto uns “bambus que produziam mel servindo
também para uma bebida inebriante”! Muito pouco chegava à Europa, por preços
exorbitantes e só usado em medicina.
O nome que lhe davam,
em sânscrito era “çarkarã” que
significa pedrinha, porque o açúcar se apresentava de forma granulosa. Passou
ao grego como sákchar ou sákcharon, e ao árabe sukkar, que com o pronome as ficou assuccar.
A cana entrou depois
na Arábia e no Egito, e foram os árabes que acabaram por levá-la para a Europa.
Pouco tempo depois da Conquista, em 712 já estavam a plantar cana, sobretudo na
região de Córdova e no século XI também se produzia açúcar na Sicília.
O açúcar da região de
Córdova rapidamente atingiu volume considerável e era exportado para África,
constituindo uma elevada fonte de rendimento.
Começaram a
adicionar-se especiarias, xaropes e frutas em calda, fazendo-se inúmeros doces.
O “Calendário de Córdova” do ano de 961, ensina quais os passos a dar para o
cultivo da cana e para a fabricação de doces, dizendo, por exemplo, que “em novembro ainda se fabricam confeitos de
pêra, maçã e castanha”.
Da palavra phanita ou phani para o caldo concentrado, com que se faziam os doces, os
árabes chamaram-lhe fani, ou al-fani, que acabou, em português o
“alfenim”.
Não há um
conhecimento exato sobre cultura da cana no Algarve, mas já em 1404 D. João I
coutava uns terrenos em Quarteira a favor de João de Palma, genovês, para a sua
produção. Também consta que se cultivava nos arredores de Coimbra, conforme
escreveu um alemão, Lanckman von Falkenstein, que foi a Portugal para
acompanhar a filha de D. Duarte que ia casar com o Imperador Frederico III. Há
algumas referências mais, mas somente, pouco depois de descoberta a Ilha da
Madeira (cuja data se desconhece) começa a colonização em 1425 e logo o Infante
Dom Henrique ali incentivou o plantio de cana.
Dizem uns que mandou
vir as canas e técnicos da Sicília, outros “estudiosos” afirmam que não teria
sido necessário porque já havia esse conhecimento em Portugal, outros ainda que
vieram de Granada ou Valência, ou até do norte de África, de Safim, etc.
A verdade é que num
instante a cana sacarina se deu tão bem na Madeira que passou o seu açúcar a
ser considerado o melhor de toda a Europa, e que valor mais alto conseguia. Como
ao Infante “pertencia” um terço da produção, este não descurava tão importante
negócio e numa carta enviada a Gonçalves Zarco, que estava no Funchal,
insistia: “E que façam canaviais nas
outras povoações”.
Com a produção a
crescer muito – por volta de 1455 atingia mais 90 toneladas – e sendo o açúcar
da Madeira o que mais valia em toda a Europa. Em 1480, dizia-se, os
estrangeiros que trabalhavam na Madeira só com açúcar, “carregaram vinte naus de castelo d’avante e quarenta ou cinquenta
outros navios”, em 1455 a produção chegava a cerca de 100 toneladas e em
1498 a exportação total atingia 120.000 arrobas, algo como 1.800 toneladas.
Não tardou que alguns agricultores se especializassem
em doces, que faziam enorme sucesso na Europa, chegando a carregar mais de uma
nau só com confeitaria, direto para as Flandres.
Vale referir que em
1516 foi enviada ao Papa Leão X uma escultura do Sacro Colégio e todos os
cardeais em tamanho natural feitos em alfenim e
cobertos com pó dourado, que foi oferta do Terceiro Capitão Donatário do
Funchal, D. Simão Gonçalves da Câmara, que fez um sucesso enorme, porque, além
da novidade, todos os doces, embalados em caixas de madeira, chegaram a Roma em
perfeito estado. O Papa e os cardeais tiveram que praticar um pouco
“antropofagia doce”!
Da Madeira o açúcar
passou aos Açores, com sucesso fraco, mercê da irregularidade das chuvas, a
Cabo Verde onde a secura do clima não permitia grande produção e a pouca que lá
se cultivava era praticamente toda destinada a fazer aguardente. Em São Tomé a
cultura da cana teve uma razoável expansão, mas em meadas do século XVI foi
saqueado pelos piratas franceses, em 1574 os escravos revoltaram-se e queimaram
todas as plantações e, mesmo recomeçando, em 1641 Maurício de Nassau, para
destruir a indústria portuguesa atacou São Tomé, destruiu 61 engenhos e queimou
na capital milhares de caixas de açúcar. A maioria dos colonos decidiu
abandonar a ilha e passar-se para o Brasil levando toda a aparelhagem possível,
para aqui recomeçarem a trabalhar.
Foi no Brasil que
essa cultura atingiu níveis nunca antes imaginados. O clima era muito violento
para os europeus, que não aguentavam trabalhar de sol a sol no campo, como nas
suas terras de origem, e os indígenas habituados a uma vida de liberdade, não
se fixavam nas plantações. A única solução se deve aos homens fortes e adaptados
a climas quentes, de África. Foram os escravos que praticamente tudo fizeram
nas plantações de cana, e o Brasil, se é o que é hoje deve a sua grandeza ao
açúcar e este deve-o aos africanos.
O principal centro de
distribuição de açúcar na Europa estava nas Flandres.
Com a coroa de
Portugal na cabeça dum inimigo da Holanda, levou os holandeses a assaltarem as
regiões de produção, na Bahia e Pernambuco, para se apoderarem, sem
intermediários, do comércio, riquíssimo, que já faziam nas Flandres. Por aqui
estiveram pilhando o trabalho já estabelecido, durante 24 anos. Tiveram até
tempo para conquistar Angola para poderem trazer por menor preço os escravos
indispensáveis.
Em Angola e
Moçambique só nos finais do século XIX é que se encarou, a sério a exploração
da cana, chegando a produzir, no tempo colonial 75.000 toneladas. Durante as
guerras civis que a seguir enfrentaram, a produção caiu a quase nada, começando
agora a recuperar, mas ainda longe, mesmo com técnicas e capitais novos, de
atingir o que tinham há quase meio século.
Moçambique com uma
produção atual de 450 mil toneladas, nas quatro empresas que funcionam no país,
enquanto Angola, só com uma (montada pela Odebrecht naquelas negociatas...
estranhas!) ainda não passou de 45 mil. Em 1894 produzira 774.714 quilos e em
1940 78.000 toneladas.
O Brasil continua a
ser o maior produtor de açúcar do mundo, exportando entre 25 a 30 milhões de
toneladas por ano. Só o Estado de São Paulo tem cerca de 4,5 milhões de
hectares de plantação da cana sacarina.
E é no Brasil que existe
a melhor definição para o açúcar:
“É AQUELE PRODUTO QUE QUANDO NÃO SE USA DEIXA O CAFÉ
AMARGO!”
Vale muito a pena ler
o magnífico trabalho de história, onde se encontram detalhes de imenso
interesse, e também seria muito útil para a cultura geral, do Brasil e de
Portugal, que alguém escrevesse a história deste grande engenheiro Henrique Gomes de Amorim Parreira (1897-1959)
27-jan-19
Querido primo Francisco não imagina como gostei do que escreveu sobre o meu avô Henrique que não conheci e de que sabia pouco pois tinha fama de ser um bon vivant e de ajudar muito pouco a minha avó .
ResponderExcluirA minha mãe raramente falava dele mas parece que tinha imenso charme e adorava fumar charuto! Obrigada e um grande beijinho