Uma Ínclita Geração
Não, não esqueci. Como poderia, mesmo tantos anos
passados? Segundo documentos arquivados (quase na Torre do Tombo!) desde o
Natal de 1947, quando, gentil, ofereci a uma gatinha um magnífico presente, aquele para que as minhas mais que
limitadas posses permitiram: um pequeno, micro calendário para 1948.
Tinha a Bela garota 13 anos e o Chique galã acabado de
fazer 16.
Vejam só a beleza
do presente (com régua e tudo para se ver a grandeza
da oferta)
Os anos correram, os enfeitiçados cresceram, e um dia,
a vida profissional consolidada, a minha Mãe, como mandava o cerimonial da
época, foi pedir a mão da donzela, que havia já quase sete anos nos havíamos
mutuamente escolhido para vivermos juntos o resto das nossas vidas.
Quem pede a mão, os futuros sogros têm a “obrigação”
de entregar o “material” todo, e um mês depois nos uníamos na Igreja da Lapa, e
mais treze dias passados o “noivo”, já saudoso, triste e acabrunhado, seguia
para Angola, só, para reconhecer o terreno, onde iriam começar três meses
depois a construir juntos as suas vidas.
Ao receber a mão da linda e apaixonada donzela foi o
noivo presenteado com outra mão, desta vez uma
boa mão cheia de outros parentes, tios e primos que passaram a fazer parte
integrante e duradoura da nova família.
É de alguns deles que hoje vou recordar umas facetas
curiosas.
Tios da minha mulher que, desde antes de termos casado
me consideravam já como membro quase genético da sua família, e eu os estimei sempre
muito.
Quatro irmãos, um deles sogro, e um primo da mesma
geração. Tudo gente de magnífica formação e os quatro costados bem assentes em
sangue, tradições e conduta na vida.
Todos de grande nível intelectual e de muita simpatia.
Não foi só D. João I que deu origem a uma Ínclita Geração. Esta pode, e deve,
ser assim tratada. Com o Dom precedendo o primeiro nome próprio, Dom, do latim Dominus, uma distinção feita pelos reis
a pessoas da nobreza que se haviam distinguido.
Os quatro irmãos, sem exceção, sofreram com as
intrigas miseráveis da PIDE. Eram pessoas da mais alta distinção e muita
simplicidade que isso fazia inveja àqueles mentecaptos delatores e pseudo
chefes duma polícia secreta.
Comecemos pelo mais velho, o Dom José, o tio Zé.
Estudante fraco, mas apaixonado por música, muito cedo
já se exibia como bom violonista, fez parte do Orfeão da Universidade de
Coimbra, acabou por se formar em Fisíco-Química, bem tarde, e no Instituro
Superior Técnico de Lisboa, passando a lecionar em liceu e colégios, mas a sua
vida estava fadada para a música.
Mais tarde surgiu uma hipótese de ser nomeado diretor
da Casa da Moeda. Alguém “lá do alto” disse-lhe que o Salazar precisava que ele
tivesse o curso de Matemática para ocupar esse lugar.
Num instante cursou Matemática, e em vez de lhe darem
a direção da Casa deram um trabalho subalterno na secretaria. (Olha o problema
dos irmãos com o salazarismo!)
Foi viver para Leiria e aí juntou uma centena de
homens simples, do campo, operários, muitos deles que nem escrever sabiam e
criou o Orfeão de Leiria. Masculino. Exibiam-se em festas, na rádio e até na
TV, além de viagens que faziam pelo país e até para Espanha. Tão bem cantavam
que um dia recebeu da BBC uma carta que lhe comunicava que o Orfeão de Leiria
era um dos seis melhores orfeões masculinos que a BBC tinha captado.
Este tio, que recebeu por herança vários títulos de
nobreza a que não ligou a mínima importância, era uma pessoa simples, mas com
um sentido de humor muito especial, sempre modesto e amável com todos com quem lidava.
Mas ao reger o Orfeão... virava uma fera!!! Não admitia a mínima falha, berrava
com os cantores, que todos, sem exceção, tinham por ele uma verdadeira veneração.
E gostava muito de inventar histórias “estranhas”! E
muita gente as engolia como verdadeiras! Gozava imenso com isso, até com os
parceiros do café, lá na cidade.
Um dia foi a Lisboa com a mulher que aproveitava essas
raras ocasiões para visitar umas primas, com a cerimónia própria do século XIX!
Coisa que o tio Zé, simplesmente detestava. Almoçaram em casa de um dos irmãos,
e a seguir ao almoço a tia aprontou-se toda para as visitas às primas, até
chapéu na cabeça, e cutucava o marido, porque iam sendo horas de sair de casa. “Zé está na hora de irmos à prima...” Ele,
descontraído e ausente, lia o jornal. A tia insistia. De repente ele diz: “Co’a breca! Olha esta notícia; vê o que
aconteceu! Um tigre fugiu do jardim zoológico e não o conseguem agarrar!
A tia quis logo saber por onde andava o temível
felino. “Parece que está pela Praça de
Londres.”
-Que
horror. É por aí que temos que passar. Já não vamos a casa das primas.
O tio Zé continuou a ler o jornal!
Lá por Leiria, onde moravam, a casa era nas Cortes, a
uma meia dúzia de quilómetros do centro da cidade, pelo que tinha que percorrer
uma estradeca de chão, estreita.
O tio Zé conduzia o seu Rover, sempre devagar e
sonhando com as suas músicas. À frente surgem duas carroças, uma que ia e outra
que vinha.
- “Isto não vai
passar. A estrada é muito estreita.” Mas continuava nos seus 30 ou 40/km por hora,
e cada vez mais perto das carroças. “Não
vai passar não.”
Não passou. Atirou as duas carroças para fora da
estrada, e com a mesma calma de sempre, confirmou: “Eu bem disse que não ia passar!”
Foi um artista, um nobre simples e modesto, uma pessoa
que todos adoravam. Por isso, Grande.
O Senhor Dom
José Paes de Almeida e Silva (1899-1968)
A seguir veio o Dom João, o tio João, ou o Joãozinho,
como lhe chamavam os irmãos. Muito jovem teve tuberculose óssea, o que fez com
que ficasse com uma perna bem mais curta do que a outra. Um dos sapatos tinha
uma sola grossíssima para compensar um pouco a altura, e sempre necessitou de
bengala para se mexer, mas nada disso impediu que se formasse em medicina, na
Universidade de Coimbra.
Desde pequeno tocava, muito bem, violino, e mais
tarde, como o irmão José, fundou um belo orfeão na terra em que foi viver e que
subsiste até hoje.
Logo que formado, em 1926, foi trabalhar em Chão de
Couce (cerca de 40 quilómetros a Sul de Coimbra) responsável por dois
concelhos, onde era o único médico. Tinha salário do Estado, e fosse o doente
rico ou pobre nunca recebeu um centavo pelas consultas. Em 1939, tendo-se
manifestado, junto com muito mais médicos contra a política salazarista, foi
imediatamente exonerado. Sem dinheiro, era o povo da região que lhe levava
legumes, galinhas, etc. que lhe permitiu manter-se, com toda a sua modéstia
durante mais de um ano.
Com dois colegas e amigos abriram um hospital e voltou
a ter algum dinheiro, mas sempre, sempre, as suas consultas eram gratuitas.
Como acontece com todos os médicos recebia visitas de
propagandistas médicos que sempre lhe deixavam uma quantidade de “amostras”,
que ele guardava num quarto vazio de sua casa, tudo amontoado no chão. Quando os
recebia, abria a porta do quarto e atirava os medicamentos para cima do monte
que já lá estava.
Quando em 1973 fui a Portugal, com os filhos, o João,
filho, com 11 anos, quis por força ir ver o D. Afonso Henriques! Tivemos que ir
a Guimarães mostrar-lhe o castelo e a estátua do 1º Rei, e no caminho, como fomos
num carro descapotável, o João ficou meio constipado. Passámos em casa do tio
João.
- Joãozito! -
chamou-o o tio - abre aquela porta e
escolhe lá o remédio que quiseres. É tudo a mesma coisa.
Quando se abriu a porta vimos o chão inundado de remédios num monte com mais de dois palmos de altura!
Quando se abriu a porta vimos o chão inundado de remédios num monte com mais de dois palmos de altura!
Uma outra vez o irmão Augusto, juiz de direito, que o
foi visitar queixou-se também de alguma coisa. O irmão diz-lhe:
- Augustinho,
abra aquela porta e tire o que quiser.
Quando viu o que este escolhera:
- Esses não
servem. São para grávidas.
- Se
servem para grávidas também servem para mim. Você não sabe nada disto!
A conversa entre todos aqueles irmãos era um
espetáculo. Mas eles amavam-se muito.
Quando, no inverno se telefonava para Chão de Couce
para ter notícias deste tio solteirão, era uma empregada (que dizem que...
parece que...) que atendia o telefone e, com a modéstia da casa e o muito frio
da região, o tio João ia sentar-se na cozinha frente ao velho fogão de lenha.
A empregada atendia:
- O senhor D.
João está ao lume!
O tio João, um médico como raros, um autêntico João
Semana levou a vida toda a receber e visitar doentes sem nada receber deles.
Para se deslocar por aqueles campos tinha um triciclo a motor, bem rústico, e
que devia ser bastante incómodo. Chovesse ou fizesse sol, lá ia o doutor
atender quem quer que fosse.
Um dia a tuberculose chegou-lhe aos pulmões, mas
venceu-a.
Quando aos 70 anos se aposentou o povo da região juntou-se
e ofereceu-lhe um carro já preparado para ele poder conduzir.
Teria mais de 80 fui com o meu sogro – o Augustinho –
visitá-lo. Lá estava no café da terra à nossa espera, ótimo aspeto de saúde, e
na farta cabeleira nem um único fio branco! Diz-lhe o irmão:
- O João! Você pinta o cabelo?
Quase indignado responde:
- Ora essa! Eu
era lá capaz de fazer uma coisa dessas!
Grande e muito estimada figura da região, lembrada até
hoje, a nobreza que se manifestava na sua modéstia e humildade, sempre ao serviço
dos outros, foi Dom João Paes de Almeida
e Silva (1900-1991)
Vamos passar para o caçula, Dom Fernando, o tio
Fernando, deixando o Dom Augusto para a próxima.
O mais novo dos quatro irmãos, magrinho, formou-se,
também em Coimbra, em História.
Durante o tempo de estudante foi um bom desportista,
tendo pertencido à equipa da Associação Académica de Coimbra, guarda redes
(goleiro) e, junto com o irmão Augusto, participaram e ganharam várias corridas
inclusive de estafetas, sempre entusiasta do desporto.
Na vida profissional foi Bibliotecário da Câmara de
Lisboa, Conservador do Mosteiro de Mafra onde criou uma Galeria de Arte Sacra,
até hoje o elogiada, fundou em Coimbra o Portugal dos Pequenitos, uma cidade
miniatura que conta a história de Portugal, e deve ser visitada por toda a gente, uma das grandes
atrações da cidade, Conservador dos Monumentos Nacionais em Leiria., Presidente
da Câmara das Caldas da Rainha, etc.
Andou com a casa às costas!
Quando casou, à mulher tinha uma casa de família, antiga,
com uma bela quinta, na Lousã e aí acabou por fixar residência, independente
das suas obrigações profissionais.
Pesquisador incessante sobre a história, a casa estava
carregada de livros, que lia constantemente.
Como os irmãos, tinha um senso de humor bem subtil.
Era obrigado a sempre se deslocar e por isso viajava
muito de combóio, mas nunca queria abdicar da 1ª classe. A mulher insistia que
ir em 2ª classe era mais barato e chegavam ao mesmo tempo!
Um dia lá foram os dois, carregando umas quantas
malas, comprou os bilhetes de 1ª. Entraram na primeira carruagem que lhes parou
em frente, entraram, instaram-se, o trem seguiu e quando chegou o
“trica-bilhetes”, o revisor, diz-lhes:
- “Os senhores
estão enganados. Têm bilhete de 1ª e vão em 2ª.”
Logo a tia: - “Vamos
aqui muito bem; não vamos mudar.”
- “Vamos
sim.”
Cavalheiro, o tio Fernando carregou as malas todas até
à carruagem da 1ª classe, para o que teve que fazer mais do que uma ida e
vinda.
Quando finalmente se assentam nos melhores lugares...
chegaram ao destino!
Em outra viagem levavam um farnel para comer no
caminho. A tia ao comer qualquer coisa engasgou-se, tossiu e saltou-lhe a
dentadura da boca que foi parar no meio corredor.
- “Fernando:
pega a minha dentadura, por favor,”
- “Não.
Pega você.”
Mas lá foi ele. Agarrou na dentadura colocou por fora
da boca, e depois explicou:
- “Assim os
outros passageiros viam bem que não era minha!”
Quando Presidente da Câmara das Caldas da Rainha, como
é hábito em politiquices, tinha alguns desafetos, um deles, um velho coronel,
que reclamava de tudo.
A Câmara achou que era absolutamente necessário
construir uns sanitários no ponto final onde chegavam os autocarros (ônibus sem
lugar para aliviar... o pessoal vinha sempre muito “apertado”) e o lugar
escolhido pela Câmara foi mesmo ao lado da casa do coronel. Que não gostou!
Por vingança, o coronel passou a chamar àquele local
“as Capelas Fernandinas” ao que o tio, em vez de se melindrar, sempre achou a
maior graça!
Outra pessoa encantadora, alegre, muito culta, o Dom Fernando Paes de Almeida e Silva. (1905-1996)
A continuar na próxima “postagem” com o D. Augusto, o
sogro, e outro D. Fernando, primo.
3 jan. 19
Muito grato por estas crónicas fantásticas .
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