segunda-feira, 7 de janeiro de 2019


Uma Ínclita Geração

Não, não esqueci. Como poderia, mesmo tantos anos passados? Segundo documentos arquivados (quase na Torre do Tombo!) desde o Natal de 1947, quando, gentil, ofereci a uma gatinha um magnífico presente, aquele para que as minhas mais que limitadas posses permitiram: um pequeno, micro calendário para 1948.
Tinha a Bela garota 13 anos e o Chique galã acabado de fazer 16.
Vejam só a beleza do presente (com régua e tudo para se ver a grandeza da oferta)

Os anos correram, os enfeitiçados cresceram, e um dia, a vida profissional consolidada, a minha Mãe, como mandava o cerimonial da época, foi pedir a mão da donzela, que havia já quase sete anos nos havíamos mutuamente escolhido para vivermos juntos o resto das nossas vidas.
Quem pede a mão, os futuros sogros têm a “obrigação” de entregar o “material” todo, e um mês depois nos uníamos na Igreja da Lapa, e mais treze dias passados o “noivo”, já saudoso, triste e acabrunhado, seguia para Angola, só, para reconhecer o terreno, onde iriam começar três meses depois a construir juntos as suas vidas.
Ao receber a mão da linda e apaixonada donzela foi o noivo presenteado com outra mão, desta vez uma boa mão cheia de outros parentes, tios e primos que passaram a fazer parte integrante e duradoura da nova família.
É de alguns deles que hoje vou recordar umas facetas curiosas.
Tios da minha mulher que, desde antes de termos casado me consideravam já como membro quase genético da sua família, e eu os estimei sempre muito.
Quatro irmãos, um deles sogro, e um primo da mesma geração. Tudo gente de magnífica formação e os quatro costados bem assentes em sangue, tradições e conduta na vida.
Todos de grande nível intelectual e de muita simpatia. Não foi só D. João I que deu origem a uma Ínclita Geração. Esta pode, e deve, ser assim tratada. Com o Dom precedendo o primeiro nome próprio, Dom, do latim Dominus, uma distinção feita pelos reis a pessoas da nobreza que se haviam distinguido.
Os quatro irmãos, sem exceção, sofreram com as intrigas miseráveis da PIDE. Eram pessoas da mais alta distinção e muita simplicidade que isso fazia inveja àqueles mentecaptos delatores e pseudo chefes duma polícia secreta.
Comecemos pelo mais velho, o Dom José, o tio Zé.
Estudante fraco, mas apaixonado por música, muito cedo já se exibia como bom violonista, fez parte do Orfeão da Universidade de Coimbra, acabou por se formar em Fisíco-Química, bem tarde, e no Instituro Superior Técnico de Lisboa, passando a lecionar em liceu e colégios, mas a sua vida estava fadada para a música.
Mais tarde surgiu uma hipótese de ser nomeado diretor da Casa da Moeda. Alguém “lá do alto” disse-lhe que o Salazar precisava que ele tivesse o curso de Matemática para ocupar esse lugar.
Num instante cursou Matemática, e em vez de lhe darem a direção da Casa deram um trabalho subalterno na secretaria. (Olha o problema dos irmãos com o salazarismo!)
Foi viver para Leiria e aí juntou uma centena de homens simples, do campo, operários, muitos deles que nem escrever sabiam e criou o Orfeão de Leiria. Masculino. Exibiam-se em festas, na rádio e até na TV, além de viagens que faziam pelo país e até para Espanha. Tão bem cantavam que um dia recebeu da BBC uma carta que lhe comunicava que o Orfeão de Leiria era um dos seis melhores orfeões masculinos que a BBC tinha captado.
Este tio, que recebeu por herança vários títulos de nobreza a que não ligou a mínima importância, era uma pessoa simples, mas com um sentido de humor muito especial, sempre modesto e amável com todos com quem lidava. Mas ao reger o Orfeão... virava uma fera!!! Não admitia a mínima falha, berrava com os cantores, que todos, sem exceção, tinham por ele uma verdadeira veneração.
E gostava muito de inventar histórias “estranhas”! E muita gente as engolia como verdadeiras! Gozava imenso com isso, até com os parceiros do café, lá na cidade.
Um dia foi a Lisboa com a mulher que aproveitava essas raras ocasiões para visitar umas primas, com a cerimónia própria do século XIX! Coisa que o tio Zé, simplesmente detestava. Almoçaram em casa de um dos irmãos, e a seguir ao almoço a tia aprontou-se toda para as visitas às primas, até chapéu na cabeça, e cutucava o marido, porque iam sendo horas de sair de casa. “Zé está na hora de irmos à prima...” Ele, descontraído e ausente, lia o jornal. A tia insistia. De repente ele diz: “Co’a breca! Olha esta notícia; vê o que aconteceu! Um tigre fugiu do jardim zoológico e não o conseguem agarrar!
A tia quis logo saber por onde andava o temível felino. “Parece que está pela Praça de Londres.”
-Que horror. É por aí que temos que passar. Já não vamos a casa das primas.
O tio Zé continuou a ler o jornal!
Lá por Leiria, onde moravam, a casa era nas Cortes, a uma meia dúzia de quilómetros do centro da cidade, pelo que tinha que percorrer uma estradeca de chão, estreita.
O tio Zé conduzia o seu Rover, sempre devagar e sonhando com as suas músicas. À frente surgem duas carroças, uma que ia e outra que vinha.
- “Isto não vai passar. A estrada é muito estreita.”  Mas continuava nos seus 30 ou 40/km por hora, e cada vez mais perto das carroças. “Não vai passar não.”
Não passou. Atirou as duas carroças para fora da estrada, e com a mesma calma de sempre, confirmou: “Eu bem disse que não ia passar!”
Foi um artista, um nobre simples e modesto, uma pessoa que todos adoravam. Por isso, Grande.
O Senhor Dom José Paes de Almeida e Silva (1899-1968)



A seguir veio o Dom João, o tio João, ou o Joãozinho, como lhe chamavam os irmãos. Muito jovem teve tuberculose óssea, o que fez com que ficasse com uma perna bem mais curta do que a outra. Um dos sapatos tinha uma sola grossíssima para compensar um pouco a altura, e sempre necessitou de bengala para se mexer, mas nada disso impediu que se formasse em medicina, na Universidade de Coimbra.
Desde pequeno tocava, muito bem, violino, e mais tarde, como o irmão José, fundou um belo orfeão na terra em que foi viver e que subsiste até hoje.
Logo que formado, em 1926, foi trabalhar em Chão de Couce (cerca de 40 quilómetros a Sul de Coimbra) responsável por dois concelhos, onde era o único médico. Tinha salário do Estado, e fosse o doente rico ou pobre nunca recebeu um centavo pelas consultas. Em 1939, tendo-se manifestado, junto com muito mais médicos contra a política salazarista, foi imediatamente exonerado. Sem dinheiro, era o povo da região que lhe levava legumes, galinhas, etc. que lhe permitiu manter-se, com toda a sua modéstia durante mais de um ano.
Com dois colegas e amigos abriram um hospital e voltou a ter algum dinheiro, mas sempre, sempre, as suas consultas eram gratuitas.
Como acontece com todos os médicos recebia visitas de propagandistas médicos que sempre lhe deixavam uma quantidade de “amostras”, que ele guardava num quarto vazio de sua casa, tudo amontoado no chão. Quando os recebia, abria a porta do quarto e atirava os medicamentos para cima do monte que já lá estava.
Quando em 1973 fui a Portugal, com os filhos, o João, filho, com 11 anos, quis por força ir ver o D. Afonso Henriques! Tivemos que ir a Guimarães mostrar-lhe o castelo e a estátua do 1º Rei, e no caminho, como fomos num carro descapotável, o João ficou meio constipado. Passámos em casa do tio João.
- Joãozito! - chamou-o o tio - abre aquela porta e escolhe lá o remédio que quiseres. É tudo a mesma coisa.
Quando se abriu a porta vimos o chão inundado de remédios num monte com mais de dois palmos de altura!
Uma outra vez o irmão Augusto, juiz de direito, que o foi visitar queixou-se também de alguma coisa. O irmão diz-lhe:
- Augustinho, abra aquela porta e tire o que quiser.
Quando viu o que este escolhera:
- Esses não servem. São para grávidas.
- Se servem para grávidas também servem para mim. Você não sabe nada disto!
A conversa entre todos aqueles irmãos era um espetáculo. Mas eles amavam-se muito.
Quando, no inverno se telefonava para Chão de Couce para ter notícias deste tio solteirão, era uma empregada (que dizem que... parece que...) que atendia o telefone e, com a modéstia da casa e o muito frio da região, o tio João ia sentar-se na cozinha frente ao velho fogão de lenha.
A empregada atendia:
- O senhor D. João está ao lume!
O tio João, um médico como raros, um autêntico João Semana levou a vida toda a receber e visitar doentes sem nada receber deles. Para se deslocar por aqueles campos tinha um triciclo a motor, bem rústico, e que devia ser bastante incómodo. Chovesse ou fizesse sol, lá ia o doutor atender quem quer que fosse.
Um dia a tuberculose chegou-lhe aos pulmões, mas venceu-a.
Quando aos 70 anos se aposentou o povo da região juntou-se e ofereceu-lhe um carro já preparado para ele poder conduzir.
Teria mais de 80 fui com o meu sogro – o Augustinho – visitá-lo. Lá estava no café da terra à nossa espera, ótimo aspeto de saúde, e na farta cabeleira nem um único fio branco! Diz-lhe o irmão:
-  O João! Você pinta o cabelo?
Quase indignado responde:
- Ora essa! Eu era lá capaz de fazer uma coisa dessas!
Grande e muito estimada figura da região, lembrada até hoje, a nobreza que se manifestava na sua modéstia e humildade, sempre ao serviço dos outros, foi Dom João Paes de Almeida e Silva (1900-1991)



Vamos passar para o caçula, Dom Fernando, o tio Fernando, deixando o Dom Augusto para a próxima.
O mais novo dos quatro irmãos, magrinho, formou-se, também em Coimbra, em História.
Durante o tempo de estudante foi um bom desportista, tendo pertencido à equipa da Associação Académica de Coimbra, guarda redes (goleiro) e, junto com o irmão Augusto, participaram e ganharam várias corridas inclusive de estafetas, sempre entusiasta do desporto.
Na vida profissional foi Bibliotecário da Câmara de Lisboa, Conservador do Mosteiro de Mafra onde criou uma Galeria de Arte Sacra, até hoje o elogiada, fundou em Coimbra o Portugal dos Pequenitos, uma cidade miniatura que conta a história de Portugal, e deve ser  visitada por toda a gente, uma das grandes atrações da cidade, Conservador dos Monumentos Nacionais em Leiria., Presidente da Câmara das Caldas da Rainha, etc.
Andou com a casa às costas!
Quando casou, à mulher tinha uma casa de família, antiga, com uma bela quinta, na Lousã e aí acabou por fixar residência, independente das suas obrigações profissionais.
Pesquisador incessante sobre a história, a casa estava carregada de livros, que lia constantemente.
Como os irmãos, tinha um senso de humor bem subtil.
Era obrigado a sempre se deslocar e por isso viajava muito de combóio, mas nunca queria abdicar da 1ª classe. A mulher insistia que ir em 2ª classe era mais barato e chegavam ao mesmo tempo!
Um dia lá foram os dois, carregando umas quantas malas, comprou os bilhetes de 1ª. Entraram na primeira carruagem que lhes parou em frente, entraram, instaram-se, o trem seguiu e quando chegou o “trica-bilhetes”, o revisor, diz-lhes:
- “Os senhores estão enganados. Têm bilhete de 1ª e vão em 2ª.”
Logo a tia: - “Vamos aqui muito bem; não vamos mudar.”
- “Vamos sim.”  
Cavalheiro, o tio Fernando carregou as malas todas até à carruagem da 1ª classe, para o que teve que fazer mais do que uma ida e vinda.
Quando finalmente se assentam nos melhores lugares... chegaram ao destino!
Em outra viagem levavam um farnel para comer no caminho. A tia ao comer qualquer coisa engasgou-se, tossiu e saltou-lhe a dentadura da boca que foi parar no meio corredor.
- “Fernando: pega a minha dentadura, por favor,”
- “Não. Pega você.”
Mas lá foi ele. Agarrou na dentadura colocou por fora da boca, e depois explicou:
- “Assim os outros passageiros viam bem que não era minha!”
Quando Presidente da Câmara das Caldas da Rainha, como é hábito em politiquices, tinha alguns desafetos, um deles, um velho coronel, que reclamava de tudo.
A Câmara achou que era absolutamente necessário construir uns sanitários no ponto final onde chegavam os autocarros (ônibus sem lugar para aliviar... o pessoal vinha sempre muito “apertado”) e o lugar escolhido pela Câmara foi mesmo ao lado da casa do coronel. Que não gostou!
Por vingança, o coronel passou a chamar àquele local “as Capelas Fernandinas” ao que o tio, em vez de se melindrar, sempre achou a maior graça!
Outra pessoa encantadora, alegre, muito culta, o Dom Fernando Paes de Almeida e Silva. (1905-1996)



A continuar na próxima “postagem” com o D. Augusto, o sogro, e outro D. Fernando, primo.

3 jan. 19

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