quarta-feira, 22 de agosto de 2018


O Massacre Simele no Iraque
um legado de trauma e negligência britânica

7 de agosto é uma data especial para os assírios, uma nação tão esquecida no nosso mundo moderno, que muita gente ainda ficará desconfiada ao ouvir falar dela. No entanto, os assírios persistiram como um povo distinto após a queda do Império, assim como o país da Assíria — ou Ashur/Atour como os assírios a ele se referem no seu idioma assírio-aramaico.
Este país tornou-se conhecido por nomes diferentes durante séculos após a queda de Nínive, sua capital antiga, em 612 A.C.  O último rei do Império Babilônico — Nabonido — era um assírio do Norte; Assíria Aquemênida era um protetorado chamado "Athura" durante os séculos VI-III a.C.; o Reino da Britânia ganhou destaque nessas terras no século I d.C.; os sassânidas, chamavam o país "Asoristan" do século II em diante. Os assírios tinham realmente perdido o controle de suas terras política e militarmente, mas com isso também a perda de controle sobre sua história escrita — algo que gradualmente se tornou erodida e reclassificada pelo crescente poder político.
Avanço rápido até os dias atuais, é um feito extraordinário que estes povos antigos ainda persistam em suas terras ancestrais após ondas de tremenda violência, invadidos por forças persas, árabes, curdas, turcas e mongóis. Esta violência atingiu o apogeu catastrófico durante os últimos 150 anos, primeiro com os massacres perpetrados pelo guerreiro curdo Bedr Khan Bey em meados do século XIX em Hakkari, Turquia; depois o genocídio assírio (ou Seyfo) nas mãos dos otomanos durante a 1ª guerra mundial  e então o Massacre de Simele em 1933, pelo Iraque.

Simele: A última derrota
Esta última calamidade se abateu sobre um povo que se recuperava após períodos de extrema violência, atacando-os, simbolizava o fim de qualquer acordo político favorável para os assírios na sua terra natal. O encerramento foi dado por uma parte dos exércitos iraquiano e curdo, irregulares, bem como o ex-patrão dos assírios, os britânicos, que forneceram esse exército iraquiano com munições e bombas para os atacarem.
O papel dos britânicos. Durante os anos do Iraque como mandato britânico, reuniram homens de fundo árabe, curdo e assírio e eles pagavam com uma ampla gama de tarefas de combate e guarda de pontos de interesse, para agirem como uma ponte com as comunidades locais. Os assírios, rapidamente se tornaram a esmagadora maioria daqueles homens, por causa de suas habilidades de percepção e recursos, ou devido ao seu passado cristão — um fator que criou tensão entre os seus vizinhos — ou uma combinação de todas essas coisas.
Os assírios treinados pelos seus comandantes britânicos.

Os britânicos estavam cientes dessa tensão e ampliaram-na trazendo os assírios para mais perto de suas operações, dando assim lhes a sensação de serem privilegiados, mas sempre criando indiretamente mais ódio e ressentimento para eles, da parte dos árabes e dos curdos do Iraque. Os horrores que envolveu o povo assírio após o mandato britânico que terminou em 1932, era totalmente previsível - as autoridades quando da independência do Iraque, incluindo o famoso general anti-assírio, Bakr Sidqi, não esconderam suas intenções e sede de sangue.
O patriarca da Igreja do Oriente, Mar Eshai Shimun, escreveu repetidamente às autoridades competentes, incluindo a Liga das Nações, a solicitar o assentamento dos assírios em outros países, dada a crescente tensão entre estes e as autoridades iraquianas. Em 23 de outubro de 1931, ele escreveu à Comissão de Mandato em Mosul advertindo "que se os assírios permanecerem no Iraque, seremos exterminados, enquanto solicitamos que o governo francês aceite assírios no mandatado francês na Síria”. Esta carta incluía as assinaturas de todos os principais maliks e chefes. Dada a resposta medíocre e a iminente independência do estado iraquiano, todos os oficiais e funcionários assírios assinaram um documento voluntariamente renunciando às suas posições com efeitos a partir de 1 de julho de 1932.
Os britânicos tiveram um golpe sério com este ato. Apesar da percepção crescente de que os assírios seriam um grupo indisciplinado, ou uma doença, como a eles se referia o futuro primeiro-ministro iraquiano, Ali Rashid Gaylani, os assírios foram o único grupo no novo Iraque, que não tinha pegado em armas contra o governo, ao contrário dos curdos e árabes. Sua atitude, para garantia de seu futuro, entretanto foi percebida como para irritar os curdos no norte e os árabes xiitas no sul. Deputados iraquianos começaram a fazer discursos com início em 29 de junho de 1933, que incitou o ódio contra os assírios, e que foram publicados no jornal Al-Istiqlal e muitos outros.
Atravessarem a fronteira para a Síria tornou-se cada vez mais atraente para os assírios. No final de julho, centenas de assírios tentaram atravessar a Síria, mas foram desarmados e detidos pelas autoridades de lá. Os franceses tinham prometido reassentamento parcial, mas renegaram e afastaram-se depois que um decreto da Liga das Nações condenou o assentamento como ilegal.
5.000 soldados iraquianos, incluindo aeronaves foram mobilizados para atacar 800 assírios no seu retorno para Fayshkhabour - uma pobre cidade fronteiriça assíria, ainda hoje sem água corrente limpa.
Este confronto terminou com relativamente poucas vítimas, mas enfureceu os iraquianos que rotularam as ações dos franceses como traiçoeiros em permitir que os assírios voltassem armados. Os iraquianos declararam a "ameaça assíria como um crescimento existencial que prejudica a legitimidade de um estado incipiente". Ao longo de agosto mais de 200 artigos anti-assírios foram publicados na imprensa circulando mentiras e manchas contra o povo assírio, para irritar a população civil para contribuir para a carnificina que se aproximava.
A partir de 6 de agosto, circulavam no Iraque rumores que os assírios massacraram soldados do exército iraquiano, explodiram pontes e envenenaram suprimentos de água. O governo iraquiano encorajou estes rumores totalmente infundados, sabendo não haver provas para isso. Os assírios foram então fortemente desarmados em estágios, depois de inicialmente resistirem a qualquer demanda para que o fizessem. A partir de uma perspectiva assíria, a entrega de armas, enquanto cercados por curdos, árabes e outros vizinhos que os tinham massacrado rotineiramente, nunca foi seriamente tomada em consideração.
No entanto, quando confrontados com o grande número de armas que se reuniam contra eles, muitos acabaram por ver o desarmamento como a única maneira de acabar com o pesadelo de uma guerra. Os britânicos observavam o desenvolvimento e pediram que o governo iraquiano, recentemente independente, realojasse Sidqi longe dos territórios do Norte. Foram feitas garantias de que isso seria feito pelas autoridades iraquianas, o que nunca aconteceu.
Em 7 de agosto, Sidqi liderou seu exército para o Norte para começar o que agora representa a primeira ação militar do Iraque como uma nação soberana: o massacre dos homens assírios, das mulheres e crianças.
Uma testemunha ocular desse longo mês de massacre, retransmitido por um oficial da inteligência britânica no Iraque:
"Eu vi e ouvi muitas coisas sobre a Grande Guerra, mas o que eu vi em Simele foi além da imaginação humana."
Os lamentáveis detalhes incluíam o tiroteio em massa contra centenas de homens desarmados; ao mesmo tempo o sequestro de inúmeras mulheres; o corte aberto de seus ventres e colocados em suas cabeças para se divertirem; o empalamento de mulheres grávidas; o estupro de jovens meninas que foram obrigadas a marchar nuas perante comandantes iraquianos; o atropelamento de crianças por carros militares ou o arremessar deles no ar para os perfurarem sobre os pontos de baionetas; de sacerdotes que tiveram a sua genitália desmembrada e recheadas em suas cabeças decepadas; os livros sagrados foram usados para a queima dos massacrados.
Havia um inferno na terra que explorou as profundezas da depravação humana e os assírios foram mais uma vez o objeto desta depravação.
Uma breve cronologia do ano 1933:
• 08 de agosto: o exército iraquiano começou a executar todos os homens assírios capturados nas montanhas Bekher, no Norte de Ninive.
• 08 de agosto: o prefeito de Zakho começou a desarmar os assírios na cidade.
• 09 de agosto: tribos Shammar e Jabour atacaram 60 aldeias assírias ao sul de Dohuk. Os homens capturados foram entregues ao exército iraquiano que os executou.
• 10 de agosto: curdos e árabes saquearam as fazendas assírias ao Sul de Dohuk.
• 11 de agosto: os assírios em Zakho e Simele foram atacados pelo exército iraquiano liderado pelo General Bakr Sidqi. Um grupo de 300 foram massacrados enquanto se abrigavam na delegacia.
• 11 de agosto: outras 40 aldeias assírias atacadas e mais 600 pessoas mortas principalmente por curdos.
• 16 de agosto: a campanha do exército iraquiano para massacrar assírios no Norte terminou, mas continuou por aldeões curdos e tribos.
• 18 de agosto: o exército iraquiano realizou um desfile de vitória e foi recompensado pelo rei Ghazi, filho do Rei Faisal, por massacrar os assírios no Norte. O general Sidqi foi promovido. Os soldados foram recebidos com flores e rosas por civis, bem como uma procissão de ministros e deputados iraquianos que saudaram a sua vitória. Eles também receberam uso gratuito de cabarés locais, restaurantes e ônibus.

Envolvimento britânico e negligência (leia-se covardia).
Os britânicos não estavam apenas totalmente cientes destes horrores, mas ativamente ajudaram o exército iraquiano no seu pedido de mais armamento e bombas para lidar com seu o problema chamado “Assíria”. Eles fizeram isso de acordo com a cláusula 5 do Tratado Anglo-Iraquiano assinado em 1930, e assim os britânicos forneceram ao exército iraquiano mais de 100 bombas para usar contra seus antigos soldados que os haviam servido fielmente através de décadas. Os aviões iraquianos usaram eficazmente bombas britânicas para assassinar indiscriminadamente os aldeões assírios que dependiam da ajuda e das garantias das antigas autoridades do país, em troca do seu serviço.

Batarshah, uma aldeia 15 milhas a noroeste de Simele.
As crateras são evidências dos bombardeios iraquianos.

Esta falha em responder à questão Assíria continuou na 2ª Guerra Mundial, onde os assírios foram mais uma vez convocados para formar seis companhias britânicas de combate. Estes assírios eram às vezes referidos "o mais pequeno aliado" na luta contra as potências do eixo, a que o Iraque tinha resolvido juntar-se. Os assírios juntaram-se aos pára-quedistas e lutaram para defender bases britânicas como a RAF Habbaniya, um lugar-chave na memória de muitos assírios que tinham praticamente crescido ali, fugindo ao genocídio.
A Grã-Bretanha procurou manter o importante fluxo de petróleo do Iraque para apoiar o esforço de guerra aliado e implantou suas próprias forças no Iraque, despachando unidades para manter esse fluxo de combustível - esse conflito tornou-se conhecido como a guerra de curta-vida anglo-iraquiana, em maio 1941 e resultou na vitória britânica e num restabelecimento temporário da autoridade imperial britânica. Mais uma vez, entretanto, os assírios não foram compensados, nem se lhes concederam nenhum estatuto político para os seus sacrifícios.
Este padrão é comum com a Grã-Bretanha e outras potências imperiais ao longo dos séculos, mas neste tempo moderno, o reconhecimento e reparação deve ser feita de outra forma, com o suposto progresso moral e trazida a problema para discussão geral e atender às devidas compensações. A ilusão de interesses convergentes foi utilizada pelos britânicos, a fim de obter o serviço dos assírios, mais uma vez, apenas para promover os seus próprios interesses - interesses em que os assírios não tinham qualquer preocupação. Isso foi traição em termos claros e reais.
A falta de reconhecimento britânico estende-se a tragédias como a campanha Anfal travada por Saddam nos anos 1980. Todas as referências em declarações oficiais do governo britânico oferecem exclusivamente condolências aos curdos, apesar do fato de que centenas de aldeias assírias terem sido alvo e muitas destruídas durante essa campanha bárbara. A tradição de escrever sobre os assírios fora da história continua, mesmo com aqueles que reivindicam uma posição benevolente e elevada na ordem moral do mundo. Este é o apagamento não só do sofrimento assírio presente, do qual a Grã-Bretanha não se prontificou a abordar, mas do trauma passado que persiste nas mentes e corações de todos os sobreviventes afetados que se encontram ansiando por reconhecimento e justiça.
Mais recentemente, o mundo assistiu de forma apática quando o ISIS começou o ataque aos assírios remanescentes na planície de Nínive, no Iraque em 06 de agosto - um evento quase deliberadamente sincronizado com a data da comemoração do dia dos mártires assírios. Novas vidas foram destruídas, obrigados a repetir os passos de seus antecessores e fugir de suas casas numa luta pela sobrevivência, inaugurando novo capítulo de genocídio e negligência. O Iraque nada fez para reconhecer e recompensar as famílias sobreviventes de Simele de 1933, nem ajudar os assírios que estão tentando reconstruir suas vidas no campo de batalha político da província de Nínive.
Então, hoje, como os assírios lamentam e lembram as 6.000 vítimas de Simele e inúmeros outros assírios que tinham sacrificado tudo e foram mortos por serem quem são, muitos outros inevitavelmente comemoram. O ponto em que o assunto está, é um apelo para restabelecer a humanidade e a verdade, sem o qual, os assírios serão constantemente presos em ciclos definidos pelo trauma e apagamento, enquanto os autores ou aqueles que imitam suas tendências violentas continuarão a ascender, livres de repreensão de consciência, em novos ciclos de violência, desinformados pelas conseqüências dos crimes que não foram legalmente, moralmente e historicamente endereçados. Nesta dinâmica, toda a empatia está perdida.
Movendo-se, além do reconhecimento de outros povos e de governos, entretanto os assírios devem perguntar-se não somente como podem apropriadamente recordar e honrar aqueles que perderam, mas como podem esquecer?

Escrito por Max J. Joseph, USA. Tradução: FGA.

19 ago. 18

Um comentário:

  1. Que tristeza e revolta dá ler sobre este povo martirizado.Desconhecia estes factos.

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