segunda-feira, 23 de julho de 2018



PROLEGÓMENOS e AMIGOS – 7


Foi por acaso que comecei por agrupar alguns amigos por “corporações”, como surgiram na Idade Média a partir do século XII, para me facilitar o tentar não esquecer algum.
Hoje vamos “navegar” um pouco com alguns deles. Poseidon e Neptuno, de comum acordo autorizam os navegantes a vir até nós.
Homens do mar, da Marinha de Guerra, comercial e de recreio. Um pequeno apontamento de cada um, que já não estão entre nós, e por isso mesmo, falar deles, por pouco que seja, é não deixar que se afastem da nossa memória.
A maior riqueza que uma pessoa pode possuir enquanto peregrina por este mundo de cobiça, inveja e desgraça é a família e os amigos que desta fazem parte inseparável.
Talvez o maior dom que eu tenha recebido foi a capacidade de fazer amigos! Agora, que a idade vai demasiado avançada, quando nos parece que os dias, meses e anos se sucedem cada vez com mais rapidez do que quando éramos jovens, recordar esses amigos são momentos de grande satisfação, mesmo que a tristeza de saber que nos deixaram há mais de quarto de século não nos largue.
Morre a carne; “do pó viemos e ao pó voltaremos”. O espírito é eterno. Falando deles, com eles, essa eternidade torna-se real.

Vamos começar com os “guerreiros do mar”!
Éramos jovens. Eu sempre com os bolsos vazios, precisava fazer quase milagres para me deslocar a Santo Amaro de Oeiras, a 20 quilómetros de Lisboa, onde vivia a gatinha! Hoje, 20 quilómetros são “a porta ao lado”, mas naquele tempo... era uma viagem. São passados uns 70 anos. Ninguém vai acreditar, mas como tenho por hábito não mentir, cada um pense o que lhe aprouver.
Combóio de e para Lisboa, elétrico de casa para a Estação e volta, por pouco que fosse, para quem não tinha quase nada era uma senhora ginástica.
Ali perto morava um casal amigo dos futuros sogros e dos meus pais, que tinha um só filho, um pouco mais novo do que eu, muito simpático, alegre, tranquilo, amável. E os seus pais tinham sempre a porta de casa aberta para este andarilho!
Lembro muito da mãe dele, que sabia das minhas andanças, e muita vez me convidou para jantar com eles e até lá ficar a dormir para não ter que tornar a desembolsar aquela “enorme quantia” para voltar no dia seguinte.
Convivemos muito até que um dia, “amarrei” a gatinha, casámos e quase desaparecemos nas infindáveis savanas e florestas da África!
Ele seguiu a carreira da Marinha, e foi em Luanda que passámos a ter novamente mais contato, quando a Fragata de que era imediato dava uma folga ao pessoal. Eu, terráqueo luandense, nessa altura era possuidor duma viatura especial, que servia quase que ininterrupta e exclusivamente para emprestar aos militares que, do mar ou do interior, iam passar uns dias na capital. Um até cumpriu um ano na cidade, deslocando, glorioso, nesse inolvidável meio de transporte!
Esse “carrão”, um Morris Minor, sem capota, de 1932, forte motor de 600 cc, fazia a alegria desses amigos que ficavam independentes. O contrato de empréstimo era simples: devolver como leva; se avariar nas mãos de terceiros... consertem. Nunca avariou!
Olhem a belezura! (1963...? com o João Matos Chaves e César Silveira Machado)

Os navegantes chegavam a Luanda e a primeira coisa que faziam era telefonar a perguntar se o carro estava disponível. Passado pouco chegavam lá a casa o Imediato e o Comandante (cujo nome esqueci) e o bólido seguia com eles, felizes da vida.
Depois... acabou a comissão em Angola, e dificilmente nos encontrávamos nas raras idas minhas a Portugal.
Aposentou-se como Mar e Guerra e foi já quase no fim da sua vida que tornei a estar com ele, um pouco entristecido.

O meu querido amigo Eurico Burguete. E sempre saudades dos seus pais.

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Outro dos marinheiros “fardados”, que igualmente terminou a carreira como Mar e Guerra, amigo com quem convivemos não só em Luanda, mas também no longínquo Lourenço Marques.
Jovem, aos 25 anos, atleta de pentatlo, representou Portugal nas Olimpíadas de Helsínquia em 1952. Ainda lembro de o ver um dia, em Luanda atirar-se ao mar, que estava de calemas, para ir salvar um homem que se estava a afogar. Sempre pronto com grande calma e presença de espírito.
Foi a ele que recorri quando decidi obter a carta de “Patrão de Alto Mar” (no Brasil é Capitão Amador), uma vez que tinha já em Angola a de Patrão de Costa (Mestre Amador), porque o sonho de um dia entrar por esses mares e correr novas terras e gentes, me atormentava desde criança!
Naquele tempo, 1971, a navegação não tinha muita diferença da utilizada por Pedro Álvares Cabral ou Vasco da Gama. Não havia GPS e estava fora de questão um radar, que só navios de maior porte usavam. Quando muito um rádio ADF por onde se podia, perto da costa calcular uma posição desde que... se reconhecessem os sinais emitidos por emissoras de rádio, e assim fazer uma “triangulação”! Mas o indispensável era o velho sextante, e depois uma série de consultas de tabelas, contas com trigonometria à mistura, enfim, uma complexa e delicada trabalheira.
O nosso Mar e Guerra, há muito fora desses cálculos, apresentou-me um jovem tenente há pouco saído da Escola Naval, que me pediu uma semana, porque já não se lembrava bem como era o arcaico procedimento!
Bom, lá me deu umas aulas até me apresentar ao Capitão do Porto que me fez o exame! Fui aprovado, com dificuldade... e nunca me servi desse documento!
Depois de aposentado, e já em Portugal nos encontrámos com alguma assiduidade e volta e meia recordávamos esse aprendizado, e por fim, já muito doente consegui visita-lo algumas vezes!
Era uma pessoa simples, amigo, muito, do seu amigo, o António Jonet.


(Desculpem a péssima foto! Já estava muito doente)

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Outro irmão do Tó (António), uns bons anos mais novo, seguiu também a carreira da Marinha. Esteve em Angola, casado e alguns filhos. Foi ajudante do Almirante, comandou as comunicações, passou um ano no Norte, mas o que contou para a nossa amizade foram os dez anos passados em Luanda. Foi também daí que criámos aquela amizade que só aquelas terras souberam dar.
Regressa a Portugal em 1969, e começa a apresentar complicados problemas de saúde, passando à reserva.
De entrada sem mais nada para fazer, nem qualquer outro trabalho à vista passou um mau bocado, mas não tardou muito a ser convidado para a vida civil, onde deu mostras do seu saber e ficou até quase ao fim do seu tempo.
Em Portugal, não deixámos a amizade esquecida, e sempre fazíamos parte dum grupo de amigos cimentados pela intensa vivência em África.
Alegre, bom amigo teve um fim sofrido, até que descansou.
Não esqueço nunca o Jorge Jonet e a família.


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Creio que já um dia contei este pequeno episódio da minha iniciação na vela: um querido amigo, como irmão desde a nossa adolescência, sempre fez parte da nossa família. Quando nós, os irmãos de sangue nos juntávamos, quando eu aparecia por Lisboa, este irmão estava sempre presente.
Gostava de mar e tinha um Sharpie 6 metros (?), de uma vela só, boca aberta, enfim um barquinho bem simpático para navegar em solo, ou com mais um ou dois “convidados, pela baía de Cascais e arredores.
Um dia lá fui eu, de convidado, teria talvez uns 14 anos. “Inocente”, a certa altura levantei-me, e o piloto não perdeu a ocasião: decidiu cambar (virar de repente com vento pela ré), a retranca vira com violência e o convidado foi jogado na água! Muito se riu o “velho marinheiro”!
Esta brincadeira serviu, durante muitos anos, para nos lembrar tempos há muito passados. E foi o meu início como marinheiro.
Uns anos depois o Luis foi meu padrinho de casamento e mais tarde padrinho do meu filho Luis. Era o meu muito querido irmão mais velho, e a mulher, Maria de las Mercedes, madrinha da Joana. Luis Quintella.


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Vamos agora à navegação comercial, chamada mercante.
Os melhores, e ótimos, navios que havia em Portugal eram o Santa Maria (que foi sequestrado e deu origem ao início da guerra colonial) e o Vera Cruz.
Quando Portugal começou a enviar tropas para Angola o “Vera Cruz” foi o transporte escolhido. Levava para baixo e para cima milhares de militares de cada vez.
Durante uns anos inspetor da companhia em Luanda, casado com uma muito querida prima minha, apesar da diferença de idade, foi um dos meus mais presentes amigos.
Depois foi comandar o “Vera Cruz”. Chegava a Luanda, despejava quase toda a tropa e muita vez ainda, com o navio quase vazio, seguia até ao Lobito deixar mais uns poucos e receber os que acabavam a comissão para regresso à Metrópole.
Várias destas vezes convidava-nos para esse magnífico passeio, sempre com mais um ou dois casais amigos. Embarcávamos pelas seis da tarde, comíamos um magnífico jantar, ficávamos na conversa até tarde e por fim dormíamos como “anjos” até que de manhã cedo o navio atracava no Lobito.
A descarga e a carga demoravam quase o dia todo, o que me ajudava a visitar o depósito da Cuca, e ao fim da tarde regresso a Luanda onde chegávamos ao nascer do dia! Foram passeios maravilhosos!
Voltámos a estar juntos em Lourenço Marques, o atual Maputo, onde voltou a ser o inspetor da companhia de navegação, onde, uma outra vez convivemos muito. Os dois casais e os nossos filhos.
Mais tarde, em Portugal, quando ainda tentei ali voltar a viver, o país, arrasado pela revolução dos cravos, tinha-se desfeito de toda a sua marinha mercante, e o meu querido amigo e primo sem nada para fazer.
Um dia, quando os libertadores da ditadura arrasaram a navegação, o bom comandante encontra-se na rua com um indivíduo, muito bem vestido, pasta de executivo na mão que se lhe dirige:
- Senhor comandante que prazer em encontrá-lo!
- Mas onde vais nessa figura?
- Olhe, senhor comandante, como sabe acabaram com os navios todos, entretanto convenceram-me a assinar uns papeis do Partido Comunista, mas havendo ainda na companhia assuntos para resolver e não tendo ninguém, nomearam-me administrador!
O Comandante no seu camarote no “Vera Cruz”!

O mais categorizado ex comandante da companhia, só conseguiu reagir com um “Oh!”. O novo administrador tinha sido admitido por ele, como padeiro a bordo, e confessava tristemente que sabia andar a fazer figura de palhaço, e que nada entendia de administração!
Um detalhe da famigerada revolução que destruiu a economia de Portugal.
O meu muito saudoso primo José de Azeredo e Vasconcelos, tendo sido expulso da Escola Naval, com a argumentação de ter demasiada personalidade, fez a sua vida na marinha mercante.
Grande comandante e, sobretudo, grande amigo.

23 jul. 18


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