segunda-feira, 16 de julho de 2018


Interrompi um pouco este “encontro”, sonhado, com amigos, que continuam a fazer-me falta, para dar um grito de indignação com o descalabro administrativo, social e económico em que a gang esquerdista deixou o país (Brasil) e que continua com métodos bolcheviques a lutar para voltar e continuar a mamar no bolo da res publica.
Prefiro lembrar dos amigos. Cada um destes vale mais que toda a canalha política.

PROLEGÓMENOS e AMIGOS – 6


Ainda mais alguns que a vida ligou às agrícolas. Parece que nem um deles se dedicou muito à produção de trincadeira. Todos começaram por regentes agrícolas e só um nessa classe permaneceu. Um cuidou de filosofia e sociologia e um pouco de carneiros por causa da pele. Outro foi cuidando de árvores e celulose e depois passou para silvicultura. O terceiro começou logo a estudar agronomia, formou-se e acabou a vida profissional como professor em Évora.

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Sobre o primeiro já escrevi, há 20 anos no livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”.
O meu primeiro pouso em África foi em Banguela. Anos antes o meu avô, que por lá andou feito menino rico a gastar dinheiro tinha um amigo, grande comerciante e foi a ele que me dirigi, numa cidade em que não conhecia ninguém. Ernesto Lara, e logo me contou que o seu filho estava em Portugal a terminar o mesmo curso. Quando chegou não foi difícil criarmos amizade. Era um regente agrícola piradão. Angolano dos quatro costados, de Benguela, aquela cidade mulata, só tinha um defeito: era branco. Isso não o impediu de acérrimo defensor da independência de Angola, o que lhe valeu ser diversas vezes preso pela famigerada PIDE. Nunca demorou muito tempo preso. Não era nem político nem revolucionário.
Homem duma alegria e sensibilidade, muito especial. A melhor palavra que me ocorre para o definir seria: POETA. Um poeta que escreveu poemas lindíssimos, um poeta no seu modo de vida, descontraído e imensamente preocupado com o povo da terra onde nasceu.
Um poeta que amou, como só os poetas sabem amar.
E foi um amigo que o tempo não permite que me esqueça dele, sempre com a maior saudade.
O texto que se segue, escrito por um jovem de 25 anos, quando andava ainda pela Europa.
Irmão da grande poetisa angolana, Alda Lara, também branca, que cantou a miséria do nativo e o seu repudio aos métodos coloniais. A Alda, a PIDE nada pôde fazer porque infelizmente morreu muito nova.
Mas o Ernesto não era preso que interessasse à PIDE. Era um idealista, um sonhador, um poeta. Amigo do seu amigo, fosse ele da cor que fosse - era de Benguela! - inteligente, e com uma boa disposição e alegria contagiantes.
Andava sempre duro! O dinheiro queimava-lhe os bolsos e gostava de beber o seu copo.
A PIDE, sempre aquela droga de polícia que metia o nariz em tudo, dava até ordens ao governo, não tinha razões para manter o Ernesto preso, mas também não o queria junto de grandes centros para que as suas idéias libertárias, o seu amor a Angola, não perturbassem os indecisos, nem acirrassem mais os ânimos dos determinados, acabou por encontrar o lugar ideal para o colocar: no deserto de Moçâmedes, Namibe, como técnico da criação de carneiros Karacul, que estava crescendo com sucesso em Angola. Ali ele deveria ficar sossegado. Longe de tudo e todos.
Já depois de semi desterrado, teve que ir a Luanda onde ficou uns dias, e como era habitual, logo o dinheiro se lhe acabou. Pediu-me emprestado algum para o regresso.
- Depois to mando. Logo que receba o meu salário.
Passaram-se alguns meses e recebo uma carta:
...Aqui no meio do deserto onde se tratam melhor os animais do que os homens, finalmente consegui separar o dinheiro que te devo, e te ia mandar. Mas pensei: o Chico vai ficar chateado comigo se eu não beber um copo à saúde dele. O que seria infame da minha parte, porque a nossa amizade não merece isso. Assim, agarrei no dinheiro e bebi-o todo. Espero que a tua saúde esteja ótima. Um grande abraço...
Quanto vale uma carta destas, que guardo há tantos anos? Muito mais do que lhe emprestei!
Não saiu de Angola após a Independência e acabou morrendo atropelado numa das suas queridas cidades, Huambo, em 1977.




Não podemos fechar este apontamento sem um pequeno poema que o poeta escreveu para a irmã:

Um dia quando voltares,
não mais encontrarás à tua espera
a nossa casinha de adobe da rua principal.
Quando voltares da Europa, irmã,
hás-de ver ainda como a cidade mudou...
(Lembras-te das promessas que fizemos?) [...]
Quando voltares não mais encontrarás poesia no quintalão do Zé Guerra
agora transformado atravessado assassinado por uma avenida transversal.
Quando voltares só verás como deixaste o Mercado Municipal. [...]
“Lembras-te da palmeira do quintal?
Foi abaixo com duas machadadas no tronco...
” Um dia, quando voltares,
não mais encontrarás a Benguela que conheceste menina ainda
e que aprendeste a amar.
(1959)

Nas vésperas de morrer ainda escreveu estes versos, “pré monitórios”:
Em teu chão regado pelo sangue dos que tombaram,
onde apodrecem cadáveres,
hão-de florir dálias roxas como as que colhi ontem
no meu quintal (…)

Foi considerado por certos críticos como “Escritor Maldito”, pela sua postura de boémio, por contradizer o status quo e o bom gosto da "elite intelectual" da época (e não só). Mesmo depois da independência Ernesto Lara Filho nunca abandonou o seu espírito inconformista, individualista.
Uma das grandes personalidades com que aquela terra presenteou o mundo.
Saravá, querido amigo Ernesto Lara.

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Outro regente que por lá andou, cuidando de eucaliptos para que não faltasse papel, casou e descasou, teve um filho e depois de 75, regressou a Portugal. Voltou a estudar e formou-se em silvicultura. Já não era mais menino, e retornado, sofrendo com a animosidade dos que não viveram em África, teve dificuldade em encontrar trabalho que se pudesse compatibilizar com o seu entorno geográfico.
Andou um pouco de “Herodes para Pilatos” nos Serviços de Agricultura, voltou a casar com uma ótima companheira, e ainda viu o filho seguir-lhe as pisadas e formar-se, também em agronomia.
Estudámos juntos, fomos do mesmo curso e lembro brincadeiras curiosas quando íamos até Évora para a farra. Gostava do seu copo (quem não gosta?), soltava a língua, desinibia-se um pouco, sempre foi um ótimo e tranquilo companheiro, mas a grana curta, curtíssima, não o deixava farrar mais descontraído.
Por fim trabalhava na Tapada de Mafra, mas a alegria dos tempos de rapaz tinha desaparecido.
Não teve tempo de se aposentar aos 70 anos, porque antes disso foi descansar.


O Rui Craveiro Feio merecia uma vida mais alegre e descontraída. Mas foi um grande amigo.

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Poe último, o mais novo de todos nós. Começou como regente, foi para Nova Lisboa, onde nasceu, hoje Huambo, e teve a sorte de pouco depois ali se ter instalado o Instituto de Agronomia. Trabalhava e estudava e formou-se depressa. Seguiu-se o mestrado e o doutoramento já depois de 75 e, em vez de cuidar de capins e flores dedicou-se à docência e foi professor na Universidade de Évora até se jubilar.
Mas chega até nós carregado de livros que publicou! Começa cedo, fundando com o colega e poeta Ernesto Lara Filho, a coleção Bailundo, em 1961.
Escritor, sociólogo e professor universitário, membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, da União de Escritores Angolanos e da Sociedade Portuguesa de Autores, deixou uma vasta obra em que o seu coração sempre escreveu sobre Angola, especialmente a sua terra Huambo.
O título de alguns dos seus livros mostram bem a linha de pensamento “Sou que nem uma Árvore Vinda de Angola”, “Ficava em Angola e chamava-se Nova Lisboa”, “Lamento de um Exilado”, onde na dedicatória que me faz escreveu “Para o Francisco Amorim, esta saudade feita de tanta ausência”.
Ainda docente nunca deixou de escrever e, com exceção dos assuntos técnicos, o seu coração nunca saiu de Nova Lisboa
Tive o privilégio de colaborar com ele durante os últimos nove anos, fazendo uns pequenos apontamentos desenhados, e chegando por vezes ao descaramento (eu) de dar alguma opinião!
Não convivemos muito. Ele estudou em Coimbra, eu em Évora, mais tarde em Nova Lisboa quando por razões profissionais nos encontrávamos, e depois de 75 ele ficou em Lisboa e eu exilei-me neste país sem futuro.
Mas o acaso nos uniu, sobretudo via Internet, e nos raros encontros em Lisboa.


O Inácio Rebelo de Andrade foi uma pessoa singular, e o fim da sua vida chegou cedo demais. Tinha ainda muito para nos dar, e até planos para isso.
Agora, vou relendo, com mais vagar e saudade aquilo que nos deixou.

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