quinta-feira, 2 de novembro de 2017


Silvana e Vittorio


Conheciam-se desde quando?  Podia dizer-se que desde muito antes de terem nascido!
Tanto dum lado quanto do outro as mães eram amigas já na escola primária e os pais tinham feito a faculdade juntos. Moravam em Verona a menos de duzentos metros uns dos outros, o que fazia que qualquer das casas era sempre a casa de todos. Além disso nas férias de verão estavam juntos também porque seus avós, vinhateiros ali nos arredores, tinham toda a campagna para correrem e brincar.
Dois dos filhos, e duas filhas, amigos de nascença, casaram no mesmo ano, com uma diferença de seis meses, e foram nascendo crianças a um casal e outro num ritmo que parecia combinado. Meia dúzia de cada lado, alternando-se apenas com o ritmo que marcou o nascimento no primeiro lado.
Esses filhos todos, juntos eram como irmãos, e assim cresceram, andaram nas mesmas escolas, até ao momento de cada um seguir a sua vida, casarem, e o afastamento físico e a vida de novas famílias não permitir a continuação das brincadeiras.
Todos agora, adultos, comprometidos, uns com mais outros menos filhos, à medida que se tornavam independentes começaram a se dispersar por outras cidades e pelo mundo, dois tinham seguido para a Argentina, um para os Estados Unidos e Vittorio, que participou da Segunda Guerra como tenente do exército italiano, quando viu que a política levava Itália ao desastre, desertou, atravessou o Mediterrâneo e foi oferecer-se ao exécito australiano. Acabada a guerra, condecorado, foi-lhe dada a cidadania australiana, por lá ficou e casou, o que tornou sempre e cada vez mais difícil o encontro com os irmãos e amigos de infância. Mas quando se encontravam, todos ou parte, a alegria era igual à que mostravam quando na meninice.
Silvana, casou, não saíu de Verona, teve quatro filhos e um dia o marido encantou-se por uma “gata” que se espavoneava como Julieta perdida em Veneza, deixou a mulher e filhos, tinha ela pouco mais de quarenta anos. Não voltou a casar, dedicou-se aos filhos e depois aos netos, levando uma vida um tanto amarga e solitária.
Os que emigraram, só de anos a anos apareciam na chamada “terrinha” onde, religiosamente procuravam reunir os amigos e fazerem a festa juntos.
Vittorio, o australiano, teve três filhos, produtor de vinhos, uma vida de trabalho, enviuvou com setenta e tanto, e a partir daí as visitas à família na Itália perderam muito do interesse, até porque irmãos e amigos ou já se tinham apagado ou estavam, a maioria, deixando-se apodrecer em casa, sendo difícil juntá-los para uma farra, mesmo de velhotes.
A instâncias dos filhos e netos, já com oitenta e cinco, lá o convenceram a meter-se num avião uma vez mais, para encontrar os que sobreviviam, recordar a juventude, se possível, e beber uns copos do que sempre apreciara. E até, diziam os filhos, “mostrar-lhes que o nosso vinho é tão bom ou melhor do que o deles!”
Aceitou, enfrentou a longa viagem, e muita alegria nos encontros que ia tendo. Recolha cedo ao hotel a meio da tarde cansado dos anos e da emoção.
Uma das amigas da meninice, Silvana, também passados os oitenta e três, há tempos tinha decidido deixar de ser “dona de casa” e hospedara-se num hotel, pequeno, mas muito simpático, à borda do Lago Di Garda. Não tinha mais que se preocupar com casa, empregada, cozinha, arrumação, etc. Nos fins de semana sempre apareciam alguns dos filhos ou netos, durante a semana dava os seus passeios tranquilamente pela orla do lago, descansava, enfim, tinha uma velhice calma e agradável.
Vittorio logo que soube do seu paradeiro telefonou-lhe. Grande alegria, “não sabia que estavas aqui”, “porque não vens almoçar comigo”, “há quantos anos não nos vimos”, etc.
Vittorio disse logo, “vou jantar hoje contigo, não janto nada, mas uma sopinha e uma fruta vai sempre bem. Por favor reserva aí um quarto no hotel porque só volto a Verona amanhã. Como se chama o hotel?” – “Corte Valier. Mesmo na borda do lago”.
Chegou de taxi, ao fim do dia, um resto de sol sumia entre os morros que circundam o lago e pouco se refletia já nas suas águas e, uma brisa que começava a refrescar enchia-lhe os pulmões e a cabeça de boas recordações, e o mais importante, o forte e saudoso abraço no encontro com a amiga de sempre, uma pequena lágrima do canto do olho de cada um, a habitual troca de perguntas “como estão os filhos, netos e bisnetos”, uma pequena caminhada de braço dado, bem agarrados, “lembras-te que nós, em pequenos, quando vínhamos todos para aqui, era sempre uma festa”.
Por fim, no canto dum pequeno restaurante não longe do hotel, porque nem estavam em idade de grandes caminhadas, a tal sopa e uma fruta, sem se esquivarem de, calmamente, irem bebendo uma garrafa de Soave, branco, uma das especialidades da região, que os deixou bem mais animados.
- Sabes que não consegui um quarto para ti lá no hotel! Tem um feriado qualquer e lotou. Mas não te preocupes porque no meu quarto tem duas camas, muitas vezes um neto ou filho vem ficar ali comigo, e tu podes muito bem dormir lá. Não temos satisfações a dar a ninguém e ainda por cima só nos conhecemos há oitenta e tantos anos!
- Silvana, mas eu não quero incomodar-te.
- Não estás bom da cabeça. Nós que em pequenos dormíamos ao monte, uns por cima dos outros, na nossa ou na vossa casa, agora é que vens com essa conversa! Não sejas tolo.
- É verdade. Aceito, sim.
Passearam mais um pouco, os anos e as pernas não ajudavam a grandes andanças, o friozinho da noite aconselhava a que se recolhessem e voltaram para o hotel. Ainda alguma conversa na sala do hotel, uma xícara de chá bem quentinho e logo acharam melhor ir para o quarto. Aqueles anos todos em cima, eram um peso razoável a carregar, mesmo parecendo, os dois, de muito boa saúde!
O quarto não era grande, bem arrumado, confortável, uma cama larga e outra de solteiro num canto meio separado, além do banheiro, que ambos usaram para se trocarem e vestir a roupa de dormir. Primeiro Silvana que logo se deitou, e quando Vittorio reaparece de pijama e se ia deitar na cama extra, ela diz-lhe:
- Vittorio. Deixa-te de cerimónias; dorme aqui ao meu lado. Esquece a outra cama. Estou velha e preciso de um abraço.
- !!!
Vittorio obedeceu, cerimonioso. Esperava qualquer coisa menos aquilo, tanto mais que durante toda a vida de ambos nunca houvera entre eles mais do que amizade sem a mínima sombra de namoro.
Assim que entrou na cama, Silvana encostou a cabeça no peito dele e disse-lhe:
- Há anos que vivo só para os filhos e netos. Agora estou por aqui sozinha, muito tranquila. Bem sei, o lugar é lindo, mas sinto-me como prisioneira, sem ter praticamente ninguém com quem conversar. A tua vinda foi um bálsamo, faz-me rejuvenescer ao nosso tempo de meninos. Estas recordações trazem-nos lágrimas de saudade e alegria. Fico a pensar como éramos alegres, traquinas, lembro muito os nossos pais e a sua longa e grande amizade, o quanto corríamos pelo campo, enfim, tudo o que acabou há tanto tempo.
E abraçava-o bem. Vittorio correspondeu ao abraço e beijou-lhe a testa.
Mesmo com a idade bem avançada sentiu que apesar de tudo estava abraçado a uma mulher e temeu que ela pudesse vir a sentir se ele se excitasse, o que seria pouco provável!
Com o passeio, o vinho e sobretudo a emoção do encontro, foi curta a conversa e não tardou a que os dois adormecessem.
O que se passou naquela noite e naquele quarto nunca se soube.
Já a manhã ia longa, um belo dia de sol a chamar para mais passeios ao longo do lago com toda a sua beleza natural, o dono do hotel estranhou que D. Silvana não tivesse ainda aparecido para o seu habitual café da manhã, o que fazia quase sempre à mesma hora. Receando que estivesse a passar mal foi, cuidadosamente, bater à porta do quarto. Ninguém respondia. Desceu, perguntou ao restante pessoal se tinham visto a senhora, e nada. Nem tinha tomado o café da manhã, nem o recepcionista a tinha visto.
Com a chave mestra, voltou ao quatro, novamente bateu à porta e como não obtivesse resposta, abriu para ver o que se passava.
O sol entrava com força pelas janelas. As luzes das mesas de cabeceira estavam acesas.
Na cama, ainda desarrumada, ninguém.
Onde estariam?
Com o sol a despontar, levantaram-se, saíram antes da troca do pessoal da recepção, e foram passear, abraçados, quase com os pés na água fria do Lago.
Em silêncio, gozando a beleza da manhã, e a companhia um do outro. Via-se que estavam felizes, e foram caminhando. O gerente do hotel ainda mandou alguém ver se os encontrava, mas nada! O emissário pareceu vê-los ao longe, mas uma densa neblina levantava-se das águas, e logo, bem aconchegados um ao outro, sumiram dentro daquela “nuvem”!
O emissário correu para os chamar, mas nada mais viu.
Não voltaram para o almoço, nem para o jantar, nem para dormir. A polícia foi alertada. Percorreram todas as estradas à volta do Lago. Não viram nada, ninguém os viu. Grande o alvoroço.
Telefonaram para os filhos e parentes que acorreram ao local. Ao fim do terceiro dia suspenderam as buscas.
Nunca mais foram vistos.


15/04/2014

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