Reprodução
de algumas “Cartas do Brasil” escritas em 1999 e publicadas no defunto jornal
“O Dia” de Lisboa.
Curioso
notar como os problemas, dezessete anos depois, permanecem, infelizmente,
atuais.
Dessas
“Cartas” fez-se um livrinho e, à laia de introdução escrevi o “Porquê” das
ditas.
Aqui
vão algumas.
O PORQUÊ
DESTAS “CARTAS”
Porquê? Primeiro, porque me apeteceu escrevê-las!
Elas representam a opinião de um imigrante português, a quem o Brasil, como sempre
e a todos, abriu as portas e os braços.
As fronteiras do mundo vão caindo, e mais do que
nunca qualquer cidadão, estrangeiro ou não, deve participar ativamente no
processo de desenvolvimento do país onde vive.
O convencional xenofobismo para com os portugueses,
desenvolvido basicamente durante o período do império, se foi desagradável, e ainda o é, mas já raro, para os patrícios, teve a virtude de unir à
volta da figura do imperador, sobretudo D. Pedro II, os dezoito estados de que
se compunha então o jovem país, uma monarquia perdida num mundo tropical, cheio
de problemas e de novos e revolucionários conceitos de liberdade e
republicanismo que estavam a conquistar o mundo. O Reino, aliás Império do
Brasil, pôde assim ter-se mantido como o maior país da América do Sul.
Se não se tivesse conseguido encontrar um inimigo comum, contra quem unir o povo,
o país talvez se tivesse dividido em mais dezoito republiquitas, algumas
miseráveis, como aconteceu com os territórios de língua castelhana.
Por essa razão, e só por essa, creio que foi útil
ter-se criado, muito artificialmente, o tal inimigo
público! Na ocasião era de bom tom mudar-se o nome de Costa, ou
Pereira ou Araújo para Ipiacaba, Paraguaçu ou Tibiriçá, para ser brasileiro autêntico, ignorando-se a
maioria da população negra, porque já não era de bom tom ter-se um Imperador de escravos!
Se deste modo o Brasil atingiu os objetivos que
ambicionava, ainda bem que descobriram um
inimigo dentro da família! Não houve
que dar satisfações a ninguém mais. Foi uma briga de família, que está sanada.
Apesar de tudo, e individualmente, o brasileiro
sempre teve, e tem, muito carinho pelos portugueses. Quem não tem um pai, tio,
avô, bisavô ou bisavó português?
Quem não está sempre sonhando em poder, um dia,
quando ?, visitar a terra dos seus antepassados, comer um bom chouriço e beber
um copo de vinho tirado da pipa?
No fundo, bem lá no fundo, todos têm esse sonho,
irrealizável, infelizmente, para a grande maioria da população.
O imigrante português tem uma característica que
possivelmente lhe é quase exclusiva: a terra que o acolhe é tão sua como a que
o viu nascer. Nela trabalha, luta, vibra, cria raízes e família e por ela dá a
sua vida.
Os problemas que a afligem tiram-lhe também o
sossego e o sono. Discute política e economia com o mesmo fervor que outro
qualquer natural. E porque não?
As opiniões manifestadas nas “Cartas”, que foram publicadas em jornais de Portugal, tiveram como
finalidade ajudar a denunciar e criticar a prepotência e erros dos mandões, sempre procurando deixar bem
clara a minha extrema simpatia por um povo simples e com um coração grande,
aberto, imenso, tal como as suas intermináveis fronteiras o configuram.
Por isso o Brasil é assim: AME-O OU DEIXE-O.
Dezembro, 1999
***
ALÔ! MEU BEM!
Ninguém sabe ao certo há quanto tempo o homem chegou
a estas regiões brasílicas. Dez mil? Vinte mil? Quinhentos mil anos? O que
importa? A culpa de tudo o que acontece é, efetivamente, de uma tal Eva,
africana, que terá sido a mãe de toda a humanidade!
Como devem calcular os queixumes e lamúrias deste
povo não vão tão longe, até porque não tem bem a certeza de que essa senhora
tenha sido sua antepassada! Mas os portugueses, esses sim, continuam sendo,
ainda hoje, 177 anos depois do grito que o senhor Pedro I / IV terá dado às margens do Ipiranga, por alguns
mentecaptos complexados, acusados de muitas das desgraças do país. Os
arrependidos destes antepassados suspiram: Ah!
se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses...
Acho que têm razão, porque se em vez de portugueses
aqui se tivessem estabelecido ingleses, holandeses, ou outros, os problemas
talvez nem teriam começado. Explico: em primeiro lugar a história mostra que o
único europeu que se aguentou neste clima bravo foi o português, o que não é de
todo verdade. Quem se aguentou mesmo foram os filhos que ele foi deixando,
cruzamentos com qualquer outra raça. Mamelucos e mulatos e depois a mistura
entre estes, que absorveram a cultura, pouca ou muita dos pais, a sua
determinação e grande adaptabilidade e a resistência e a afabilidade das mães,
naturais dos trópicos. E de toda esta mistura fez-se um povo que pode ter
muitos defeitos (quem não tem?) mas onde ninguém sequer vislumbra a menor
hipótese de um dia poder surgir um confronto racial. Desde o mais escuro, com
pele azulada ao mais branquela, tipo finlandês, Olhos escuros ou azuis, todos
bebem caipirinha, dançam o samba, dividem o mísero espaço das favelas, dos
bairros de classe média ou outros e são todos brasileiros.
Isto significa que se os tais pioneiros,
portugueses, não se tivessem aguentado e lutado bravamente para expandir até
aos Andes a sua área de atuação, o Brasil hoje seria... o quê?
Viver nos Estados Unidos, ou até em Portugal pode
ser muito melhor em termos econômicos, mas onde é que por esses lados se
encontra alguém, que nunca se viu e com quem se vai tratar de negócios, ou nos
atender numa loja ou somente vender o bilhete do ônibus e que, em vez de falar
secamente sem sequer nos olhar de frente, nos trata por Meu bem, Meu amor, envolvendo-nos numa doçura que nos faz pensar
sermos o Tarzan? E ninguém faz isto
com intenção maldosa ou inequívoca. É natural. É simpático. É humano. É Brasil.
Só esta ternura vale pelo calor que se sofre durante
o verão, e não só. Não alivia a miséria, mas atenua as agruras da vida,
parecendo que nesta terra sempre tem uma mãe extra para nos acarinhar.
Ainda hoje telefonei para uma empresa reclamando
sobre um disparatado aumento dos preços dos seus produtos, e a dona Lurdes, do
departamento de vendas que me atendeu, só me dizia: Meu bem, eu acho que eles (aqui o “eles” eram os seus patrões!) não sabem o que fazem. Eu se fosse cliente
deixava de comprar os nossos produtos e eles então iam ver! Olhe, meu amor, vou
lhe dar o telefone dum representante nosso que talvez o possa ajudar!
A dona Lurdes pode não ser a melhor escrava que a empresa precisa, mas é no
mínimo uma mulher corajosa, sensata e extremamente simpática! Não sei se alguma
vez vou ter oportunidade de conhecer pessoalmente esta senhora, mas amanhã vou
mandar-lhe uma rosa. A rosa aliás nada vale perto da sua simpatia!
Um dos grandes males deste país é a ganância. Todos
querem enriquecer, hoje! Pudera, não. O governo interfere constantemente na
economia, e não permite que se façam planos a médio prazo. O longo então é
inexistente.
A máquina administrativa além de ineficiente (como
em todo o lado tem funcionários ótimos, infelizmente minoria) cria leis para
complicar o empresário, o trabalhador e o próprio funcionário público,
beneficiando unicamente os fiscais, que como varejeiras proliferam nesta terra.
E inventam maneira de extorquir alguma coisa de quem quer trabalhar.
Uma dessas fiscalizações levou há dias de um
supermercado, mais de duzentas caixas de produtos alimentícios de um só
fabricante, para conferir se os pesos
estavam dentro do indicado! Diz a lei que podem levar até trinta, trinta,
peças de cada produto para estabelecer a média! Por aqui já se vê como é fácil!
Muito bem, no fim de exaustivo exame
oficiaram ao fabricante, mandando retificar a embalagem onde encontraram um
item passivo de autuação, por não estar de acordo com a lei: a abreviatura de grama não pode ser gr mas sim g. Assim se zela pela segurança do consumidor!
No mesmo dia uma senhora, para aproveitar uma destas
tardes frescas que de quando em vez tornam o Rio um paraíso de temperatura, foi
para um jardim em frente em sua casa passear com um netinho de um ano de idade.
Bebê no colo. De repente um impacto. Uma bala
perdida, vinda lá dum morro qualquer, acertou a criança que morreu. Incrível,
horroroso, inaceitável. Não adianta perguntar onde Deus estava naquele momento.
Em todos os momentos do dia, em toda a parte do mundo, parece que Deus não está
em lugar algum. Talvez esteja arrependido de ter descansado no sétimo dia. Algo
ficou imperfeito. O homem.
Os morros do Rio são uma desgraça. Onde nem o
exército entra. Os morros, as favelas, são territórios autônomos que vivem sob
o absoluto comando do tráfego de drogas, onde crianças de dez e doze anos
manejam metralhadoras de guerra como quem brinca com um carrinho de plástico.
Dinheiro para brinquedos para as crianças pode não haver. Mas não falta para
comprar qualquer tipo de armamento. Até lança mísseis já lá foram encontrados.
É o mundo cão.
No meio de tanta confusão quem não gosta de ouvir de
uma desconhecida, numa voz doce e melodiosa: Alô, meu bem!
Jornal “O Dia” - 12/05/99
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