segunda-feira, 12 de setembro de 2016

 

De Angola, algumas histórias


1.- História quase triste
A Crise do Congo ex-belga entre 1960-1966 foi um período de imensa agitação que terminou com a tomada do poder por Mobutu. A crise tomou várias formas, entre elas as lutas anticoloniais (de uma forma geral os belgas eram detestados), conflitos tribais, uma guerra separatista no Katanga, um descalabro, com uma onda de violência e de selvajaria assolando todo o país, que causou a morte a mais de 100.000 pessoas.
Os brancos que lá viviam, muitos deles desde nascença, tiveram que fugir de qualquer modo. A Bélgica mandou buscar os seus súbditos. Portugal parece que até hoje não sabe o que são súbditos!
Um grupo de cerca de uma dúzia de pessoas, em dois jeeps, um deles carregando uma metralhadora, que felizmente não foi utilizada, conseguiu atravessar por pequenas picadas até Angola.
Desse grupo fez parte um casal, com dois filhos pequenos. Ele dizia que tinha trabalhado numa fábrica de cerveja e foi pedir emprego na Cuca, onde foi admitido para um departamento que se criou, de estatística.
Calado, cumpridor, mas sempre um ar de infelicidade. Volta e meia não ia trabalhar. O seu abatimento psíquico não recuperava com facilidade. Tudo quanto tinham haviam perdido. Agora estavam mais tranquilos, vida a refazer-se, crianças na escola, apesar de em Angola ter já começado o “terrorismo” que não se fazia sentir em Luanda.
Um belo dia o Dias – era este o seu sobrenome – sentiu-se pior e foi internado na casa de saúde com quem a Cuca tinha convénio.
Fomos visitá-lo. Estava abatido e o médico, um coimbrão inveterado, tratava-o de transtornos psíquicos. Todos os dias procurávamos saber da sua saúde, sem receber nenhuma notícia de melhora.
Uma tarde, estava eu a entrar para o meu carro para seguir para Nova Lisboa (Huambo) o porteiro vem a correr dizer que a esposa do sr. Dias queria falar comigo e era muito urgente. Fui atender.
“Só para informar que vou levar o meu marido para casa. Assim ele morre ao pé da mulher e dos filhos.”
Fiquei aterrado! O que se passaria? Ela disse que o médico não o tratava, que ela estava a vê-lo definhar e via que ele ia morrer logo.
Pedi-lhe para não fazer nada. “Vou já para aí.”
Já não fiz a viagem para o sul. Pedi na Companhia que procurassem o médico dele e que corresse para a casa de saúde, onde fui encontrar o doente com um aspecto horrível: muito magro, cor acastanhada, sofrendo.
O médico não apareceu; entretanto entrou o diretor da clínica, um bom cirurgião, a quem contei o que se passava. Respondeu-me que era responsabilidade do médico dele.
“Não, não é, doutor. É sua. O senhor é o diretor da clínica, e pode ter a certeza que se acontecer alguma coisa vou processá-los.” Foi ver o doente, e eu ao lado a acompanhar.
Levantou o lençol e viu que a barriga do doente parecia de um defunto. Septicemia, grave. Pediu os exames que deveriam ter sido feitos, e a enfermeira disse que não havia exames!
“Quero os exames.... (uma porção deles) prontos em meia hora. Chame o anestesista, porque vamos ter que operar já. Depois virou-se para mim e disse: “Eu não toco neste doente sem que o médico dele esteja aqui. Porque se ele morrer durante a operação ele é quem vai assumir a culpa.”
Sai um batalhão de gente à procura desse coimbrão. A sala de operações pronta: cirurgião, anestesista, auxiliares, e nada de começar.
O dr. coimbrão avisado da gravidade do caso em vez de ir ver o doente foi ver o futebol! A Académica jogava nesse dia em Luanda contra um clube de Luanda.
Um colega da Cuca descobriu-o ali, agarrou-o por um braço e levou-o para a clínica. Mal entrou puseram-lhe uma máscara, o cirurgião mandou-o ficar num canto, quieto, dizendo-lhe que se acontecesse alguma coisa ele iria ser responsabilizado.
Demorou uma hora a operação e quem estava lá, como a esposa do Dias, e mais dois colegas da Cuca, num total silêncio. Por fim o médico que o operou sai, chama-me e diz: “Se tivesse sido feito na hora, era uma facadinha e dois pontos. Assim tivemos que cortar um pouco do intestino, limpar tudo, e agora as primeiras 48 horas são fundamentais. Se as vencer pode ser que se recomponha.
Vivemos essas horas num sobressalto. Passadas, o médico volta a dizer que fica mais uma semana na clínica e se tudo correr bem poderá ir para casa!
Santo Deus! Que alívio. O Dias estava fora de perigo. A mulher chorava de comoção e eu consegui seguir para Nova Lisboa.

***
Histórias alegres
2.- O telegrama
Lá por volta do final dos anos 40 ou 50 do finado século XX, foi quando Portugal reparou que tinha territórios excepcionais no ultramar, e começou devagarinho, e a medo, a abrir as portas à “emigração” sobretudo para Angola e Moçambique.
Chamar emigração dentro do mesmo país...
Há absurdos na história que, hoje contados, as pessoas pensam que é mentira, como por exemplo ser necessário para ir para Angola, uma “Carta de chamada”, obrigando-se o “chamador” – empresa – a responsabilizar-se por devolver o cidadão à metrópole em caso de... nem se sabe mais do que!
São histórias que pertencem não ao século findo, mas na verdade aos séculos muito passados!
Vale contar duas historinhas:
- Um jovem português sai do pátrio lar e decide ir para Angola. Os pais, chorosos pedem-lhe insistentemente que assim que lá chegue dê notícias. África ainda era o continente onde cobras e leões se passeavam nas ruas das pequenas cidades, as doenças tropicais grassavam e matavam sem que o doente disso se apercebesse, e o terror ficava na família que, junto à lareira, chorava de saudades à espera de notícias.
O emigrante, a quem chamaremos Nuno (porque precisa de um nome) nunca mais disse nada, e os pais sofriam. A todos os conhecidos e até desconhecidos que iam para aquela terra pediam, pelo amor de Deus e dos anjos, que lhes dessem notícias do filho e, sobretudo, que lhe pedissem para escrever aos pais.
Os portadores dessa incumbência se encontravam ou não o “fugitivo” também pouco ou nada diziam, mas alguns insistiam: “Deixa de ser preguiçoso. Escreve aos teus pais. Estão a ficar velhotes e sofrem muito com a falta de notícias.”
Nuno dizia a tudo que sim, que tinham razão e iria escrever. Mas... nada.  
Um dia, depois de muito instado, Nuno tomou uma atitude heroica, apesar de passados já uns três ou quatro anos depois que chegara a Luanda.
Foi aos correios e mandou um telegrama aos pais:
- CHEGUEI  BEM  STOP  NUNO.
***
3.- O casamento
Outro emigrante, mais ou menos da mesma época. Os pais menos preocupados com o recebimento de notícias, mas com o ambiente que o filho iria encontrar, advertiam:
- Meu filho, quando começares a ver que as mulheres negras afinal não são tão escuras, toma cuidado.
- Meu pai, não precisa se preocupar. Vejo muito bem e jamais irei confundir as cores das peles.
Não passou muito tempo, mas como o Nuno, André, o novo personagem, também não era dado a escritas.
Recebe uma carta do pai que volta a aconselhá-lo que tomasse atenção ao olhar para as mulheres, e... “se vires que estão a ficar mais claras...”
André encheu-se de coragem e respondeu:
“Pai: não precisas ficar preocupado comigo. Sei muito bem distinguir o que me pretendes avisar. Quando aqui cheguei vi milhares de mulheres negras, por todo o lado, o que muito me impressionou. Mas não sei o que passou nesta terra porque desde há algum tempo que não vejo a não ser uma ou outra bem velhinha. De resto, podem não ser louras, mas não encontro mais mulheres negras. Todas têm uma pele linda, clara, muito mais bonita que as trigueiras dessa nossa terra.
E olha pai: já estou casado com uma linda senhora desta terra, tenho um filho, e vivo entusiasmado, para não dizer excitado ao ver todas as outras com quem me cruzo nas ruas, ou encontro nas lojas.”

Era assim.... em Angola.


8 / 09 / 2016

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