Mais duas “Cartas do Brasil”
SAUDADE
DE ÁFRICA
Se não tivesse escrito estas “Cartas do Brasil”
estaria possivelmente a estas horas a escrevê-las ainda de Angola ou
Moçambique! Vivi, vivi muito intensamente naquelas paragens mais de vinte anos,
e até hoje guardo uma forte saudade daquele tempo, daquelas terras, daquelas
gentes. Até do clima de Luanda que era mais
bravo que o do Rio, com temperaturas menos altas mas teor de umidade mais
elevado. O que lhe valia eram aquelas praias e a Ilha, maravilhosas...
Quando os (des)governantes da revolução de Abril (os
meses escrevem-se mesmo com maiúscula) concluíram, na conferência de Alvor, que
os únicos representantes das colônias
eram os africanos, eu não tive dificuldade em verificar que, apesar do meu
coração vibrar por África, a minha pele era clara! Dei o fora. Vim para o
Brasil que me abriu as portas. Como um parente pobre, que tendo um só pão para
comer, sem regatear, o dividiu comigo. Nessas alturas o meu país considerava-me fascista só porque ao fim de vinte e cinco
anos de trabalho eu tinha atingido um escalão alto na hierarquia da minha
profissão! Achei que era melhor não me meter no meio duma briga, que eu
certamente acabaria por comprar, e aceitei o pão, suado, que o Brasil me
oferecia.
Comi pão duro, mas dado com carinho, e à medida que
a qualidade do pão foi melhorando procurei reparti-lo. Ao meu lado trabalham
hoje (sim, porque eu ainda trabalho! Os meus vinte anos de África... a
(in)segurança social portuguesa - tudo com minúsculas - não considera para me
aposentar! Um dia volto a falar nisto.) mas estava dizendo que ao meu lado
trabalha gente de todas as cores. Desde louros de olhos azuis, brasileiros há
tantas gerações que desconhecem as suas origens, até um angolano de M´Banza
Congo, que a fome fez imigrar há cerca de dois anos.
Como é de calcular, em mais de vinte anos de
trabalho em África, juntei alguma coisa, sobretudo apertei o cinto para comprar
uma casa. Casa, sendo um bem imóvel,
teve que ficar, lá onde foi construída. Para mim acabou sendo, não um bem, mas
um mal imóvel. Mais valia ter bebido
o dinheiro que ali, tão suado, chorado e desperdiçado, investi. E se havia onde
beber!
Mas os capitães de Abril, depois que enfiaram os
cravos nas espingardas, fotografaram-se em posição de conquistadores do mundo,
e... deixaram o país ao desgoverno. Total. Os líderes africanos, ao verem
tamanha falta de disciplina e vergonha, impuseram as suas condições para a
independência, como vencedores duma guerra que, para eles, não estava perdida,
quando muito empatada. Quem por fim capitulou, vergonhosamente, foi Portugal.
Abandonou os povos africanos e os timorenses ao seu triste destino e os
portugueses que lá viviam aos seus próprios cuidados.
Tinha que acabar a guerra colonial? Evidente. Nunca
devia ter começado. Mas não se podia ter virado costas. Uma página de vergonha
na história de Portugal. Para esquecer, o que é difícil.
Mas, esta deveria ser uma Carta do Brasil. A saudade
leva-me para África, e daqui a ter que me lembrar dos (in)capazes, os
(ir)responsáveis pelo tal (des)governo que teve consequências dramáticas.
Veio muita gente de Angola e Moçambique para o
Brasil. Não posso garantir se a maioria ficou ou acabou regressando a Portugal.
Os que ficaram, quando descobrem alguém que andou por aquelas terras, ganham
logo um novo amigo, e a conversa vai voando para as gambas de Luanda ou do
Alto Maé, uma pescaria na baía de Benguela ou em Vilanculos, o encontro dos
três mundos na Ilha de Moçambique, a beleza da Tunda Vala ou da Gorongosa, e
acaba sempre com uns finos, que aqui
são chopes! Há um não sei quê que
veio d´além-mar que envolve as pessoas ad aeternum e de onde não adianta fugir,
o que aliás ninguém quer. As recordações daquele tempo são muito fortes.
Ir à Bahia, onde veio viver e acabou morrendo o
grande pintor angolano e muito querido amigo Albano Neves e Sousa, é quase uma
viagem a Angola. Apesar da grande influência do Candomblé, trazido da região do
Benin, em cada canto há um jeito de ser angolano, um requebro, um ensaio de
capoeira. E, dando à cidade do Salvador um toque de magia, de conto de fadas,
as baianas, gordas ou magras, velhas ou novas, impecavelmente vestidas de
branco, só me lembram as mamanas de
Luanda, imponentes nos seus trajes impecavelmente pretos.
Estas vendiam legumes, frutas e pescado. Às vezes
uns doces que a garotada adorava. Aquelas vendem acarajé, um bolinho feito de
feijão fradinho, frito em azeite de dendê, servido com molho de pimenta, cebola
e camarão! Uma delícia afro-baiana.
Em todas o mesmo sorriso simpático, as mesmas
palavras carinhosas que nos deixam ficar suspensos no meio do Atlântico,
desejando voltar aos tempos de menino e pedir que uma Mãe Preta nos acarinhe e
cante uma cantiga de ninar!
Nestas condições eu até me proporia ser menino de
novo!
Jornal “ O Dia” - 01/06/99
***
ALÔ!
ALÔ! ESTÁ LÁ?
Lusíadas,
Canto III, 5
Além disso, o que a tudo enfim me obriga
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há-de ficar inda por dizer.
Este intróito só pretende levar os leitores a
ficarem com maior certeza de que o que escrevo, pode ter mais ou menos
floreados, mas mentira não é. Pode ser inacreditável, anedótico ou triste conforme
o angulo ou a disposição de quem lê, mas é verdade.
A minha opinião sobre este imenso país está
expressa, impressa e divulgada. Tem um povo maravilhoso, mas... de vez em
quando, como diz um primeiro ministro muito conhecido nessa terrinha, isto parece a famigerada república das bananas.
No caminho do progresso e da desburocratização, o
governo tem privatizado tudo quanto pode. Bem ou mal vai deixando de ser
empresário, péssimo empresário aliás, para procurar centrar as suas atenções no
óbvio. Assim pensam muitos como eu que acham que o governo, quase sempre
desnecessário - a Itália já o demonstrou - tem que se preocupar com a saúde e
educação e pouco mais. O resto é acessório, como por exemplo justiça, já que as
leis dos homens... feitas pelos poderosos, dificilmente são igualitárias para
os pobres ou miseráveis.
Continuemos a privatizar. Privatizou-se a rede de
telefonia, dividindo-se o país em diversas áreas, separando-se a telefonia
tradicional, fixa, da celular, móvel, e passou-se esse serviço para empresas
concessionárias, entre as quais está um grupo português. Aplausos.
Há dias procedeu-se à separação do “que é de quem” introduzindo-se prefixos
vários dando a opção ao usuário de servir-se de uma ou outra prestadora desses
serviços.
Os jornais, tv, rádio, outdoors, indicavam mais ou menos: fale pelo 27 que é melhor, ou ligue
pelo 35 que é o máximo, etc. sem que alguma explicitasse qual ou quais as
vantagens de utilizar esta ou aquela servidora. Mas, tudo bem, brasileiro é
paciente e aguardou para ver o que a concorrência lhe proporcionaria, se é
que...
“Um... Dois...
Três!” A
partir das zero horas do dia “D”, felizmente na noite de sexta para um sábado,
entrou o novo sistema em ação. Foi o fim da macacada! O sistema embananou-se de tal forma que ninguém conseguiu fazer uma
ligação interurbana! Ligava-se para as informações e a resposta, mecanizada,
informatizada, respondia as mesmas parvoeiras que na véspera! Ligava-se para a
nova empresa e ela respondia o mesmo, isto é, nada. Todos perdidos. Um caos!
Ninguém se entendia. E assim se passou o sábado e domingo.
Segunda feira o assunto, como é evidente, era
manchete nos jornais, nos noticiários de tv, etc. Afirmava o presidente da
Anatel - Agência Nacional de Telecomunicações - órgão governamental encarregado
de supervisionar e fiscalizar o serviço das concessionárias, que a culpa era
das ditas. Estas, que era daquela. O ministro da justiça - letra minúscula é
melhor - atribuía o desastre ao Ministério das Comunicações, zangavam-se os
dois, e o problema, resolver-se é que nada.
Vai levar uma
semana a normalizar! informaram os órgãos de informação!
Ao fim de quase quatro dias, sexa, o Presidente da
República decidiu intervir, pessoalmente. E montou um circo. Informação
presente e os dois ministros em causa: Então
o que se passa com as ligações interurbanas? Quero isso pronto em 72 horas.
Brilhante! Já o público estava informado que as
empresas iam levar 72 horas para resolver a vergonha, quando o Presidente,
energicamente, exigiu o mesmo prazo.
Vejam lá se não é comovente! Dá a sensação que o governo durante os primeiros
quatro dias não sabia o que se
passava!
Dá para conceber um país de 180 milhões habitantes
ficar com os telefones todos, todos não, mas três quartas partes deles, sim,
sem conseguirem comunicar-se? Não dá.
O defeito
terá sido no programa do computador. Como sempre o computador é que paga! Mas
mexer num sistema que funcionava muito bem sem que se tivesse testado
exaustivamente primeiro um outro, não parece coisa de empresas de primeiro
mundo!
Três dias depois, as reclamações oficialmente
registradas - em Portugal seriam registadas -
eram só cento e
quarenta e quatro mil cento e oitenta e duas! Isto porque o brasileiro é bom,
calmo, paciente, e está já condicionado a ter que esperar, sofrer e, no fim...
pagar! Porque se fosse na Alemanha que tem só 60 milhões de habitantes, as
reclamações teriam sido 20 milhões, admitindo que cada lar tem três habitantes!
Nem um só se calaria. Exigiriam que o Bundesverfassungsgericht
propusesse ao Oberlandesgericht que demitisse
o Bundesregierung e ainda os membros
do Bundestag e do Bundesrat, e apoiariam em uníssono o
regresso de outro Hitler para arrumar a casa!
Mas aqui... não é a Alemanha, graças ao bom Deus que
será brasileiro, segundo se diz e até se acredita. Mesmo que se procurasse com
uma lupa não se encontraria nenhum Hitler, e se por milagre do demo aparecesse,
não estaria disponível! Mas no que tange a Bundes...
ahh! isso é outra história, porque enquanto na Alemanha as bundes parece pertenceram exclusivamente à política, aqui, como uma
ligeira tradução, bundas, são
altamente democratizadas. São de todo o povo, e por isso, neste país jamais
alguém se atreveria a demitir uma única bunda!
Pelo contrário.
Alô! Alô! Está lá?
Não. As Bundas estão cá!
Então? Deus é brasileiro ou não é?
Pequeno léxico para ajudar os menos práticos na
língua tedesco-política:
Bundesverfassungsgericht - Tribunal Federal
Constitucional
Oberlandesgericht
- Suprema
Corte
Bundesregierung - Governo Federal
Bundestag - Câmara baixa.
Bundesrat - Câmara alta.
Junho 1999
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